"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/02/2024

Jurisprudência 2023 (101)


Reconhecimento de dívida; título executivo;
excepção de não cumprimento


I. O sumário de RE 20/4/2023 (2188/18.5T8SLVA-A.E1) é o seguinte:

1. Constitui título executivo o documento particular autenticado que importe a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação.

2. A autenticação de documentos particulares pode ser realizada por advogado no âmbito do exercício das sua profissão, devendo constar do termo de autenticação, mormente a declaração da parte de que já leu o documento ou está perfeitamente inteirada do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade, observando-se, ainda, com as devidas adaptações, as formalidades comuns dos instrumentos notariais previstas nas alíneas a) a n) do n.º 1 do artigo 46.º do Código do Notariado.

3. Se o título executivo for um documento particular autenticado onde é reconhecida unilateralmente uma dívida, ainda que a mesma tenha como causa um contrato bilateral onde se discute o cumprimento parcial ou defeituoso do contrato, a exceção de não cumprimento desse contrato bilateral não constituiu fundamento para dedução de embargos de executado na execução titulada pelo referido documento particular autenticado.

4. A finalidade pressuposta nos artigos 662.º e 640.º do CPC ao conferirem à 2.ª instância poderes de sindicabilidade da decisão de facto saída do julgamento realizado no tribunal a quo, em ordem à formação de uma convicção própria, tem como finalidade última aferir se determinados factos relevantes para a decisão a proferir foram, ou não, corretamente julgados.

5. Se essa finalidade não se verifica no caso concreto, a apreciação da impugnação sobre a decisão de facto é um ato inútil, logo proibido (artigo 130.º do CPC), tanto mais que tal ato violaria os princípios da utilidade, economia e celeridade processual, não estando, consequentemente, o tribunal ad quem obrigado a apreciar tal impugnação (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC).

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A apelante discorda do modo como na sentença foi analisada e decidida a exceção de não cumprimento, defendendo que, na procedência da alteração da decisão de facto peticionada no recurso, deve ser reconhecida a existência de danos por via dos defeitos da obra, julgando-se procedente a exceptio com a consequente inexigibilidade das prestações, juros e cláusula moratória.

Na apreciação desta alegação, cabe sublinhar que se impõe, em termos lógicos, aferir em primeiro lugar se, no caso, a embargante podia fundamentar os embargos invocando a exceção de não cumprimento, pois, só perante a resposta positiva a esta questão, se justifica apreciar o pedido de alteração da decisão de facto que se reporta na sua totalidade à questão da existência do cumprimento defeituoso do contrato de empreitada por via dos alegados defeitos da obra.

A sentença recorrida em relação à admissão da invocação da exceção de não cumprimento decidiu do seguinte modo:

«Nos termos do n.º 1 do art.º 428º do CPC Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.

É manifesto que tal alegação não faz sentido no caso dos autos.

Os embargantes parecem olvidar-se que o documento que funda a execução se trata de uma confissão de dívida.

A confissão de dívida trata-se de um acto unilateral. Esta circunstância só por si já afastaria a aplicação da excepção de não cumprimento.

Por outro lado também importa notar que no caso concreto não está em causa a existência da dívida.

O argumento utilizado pelos embargantes e a factualidade que se prende com tal alegação relevará numa outra acção, necessariamente declarativa, que vise a eliminação dos defeitos da obra (ou qualquer uma das outras alternativas à disposição do dono da obra em caso de cumprimento defeituoso do contrato de empreitada). De resto, resulta dos articulados que tal acção já terá sido interposta.»

Contrapõe a apelante que não sendo o título executivo uma sentença pode alegar na oposição à execução o que poderia alegar na contestação da ação declarativa, ou seja, tanto por impugnação como por exceção, incluindo a exceção de não cumprimento.

Vejamos, então.

Não sendo o título executivo uma sentença, como efetivamente não é, estipula o artigo 731.º do CPC que na oposição à execução «(…) podem ser alegados quaisquer outros [fundamentos] que possam ser invocados como defesa no processo de declaração.»
Assim, a invocação de exceções corresponde a um possível fundamento da oposição à execução.

Como se menciona no Acórdão do STJ de 08-09-2021 [Proc. n.º 2266/16.5T8ACB-B.C1.S1 (Cura Mariano), em www.dgsi.pt], remetendo para a correspondente doutrina, a exceção de não cumprimento pode ser qualificada como uma exceção perentória modificativa, ou como uma exceção dilatória de direito material, sendo certo que apenas tem como efeito legitimar uma recusa temporária do cumprimento da obrigação nos contratos bilaterais, o que expressamente se encontra estipulado no n.º 1 do artigo 428.º do Código Civil, ao prescrever «Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo

Em sede de interpretação do artigo 428.º do Código Civil, no Acórdão do STJ de 06-09-2016 [Proc. n.º 6514/12.2TCLRS.L1.S1 (Garcia Calejo), em www.dgsi.pt] é caraterizada a exceptio nos seguintes termos:

«A exceptio non adimpleti contractus de que trata a disposição, é própria dos contratos bilaterais. Para que a excepção se aplique, não basta que o contrato crie obrigações para ambas as partes, sendo também preciso que as obrigações sejam correspectivas, correlativas ou interdependentes, isto é, que uma seja sinalagma da outra. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (in C.Civil Anotado Tomo I, pág. 405) “a exceptio non adimpli contractus a que se refere este artigo pode ter lugar nos contratos com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante de outra. É o que se verifica nos contratos tradicionalmente chamados bilaterais ou sinalagmáticos. É necessário ainda que não estejam fixados prazos diferentes para as prestações, pois, neste caso, como deve ser cumprida uma delas antes da outra, a exceptio não teria razão de ser. Acrescentam, por outro lado estes autores (in mesma obra, pág. 406), que “a exceptio não funciona como uma sanção, mas apenas como um processo lógico de assegurar, mediante o cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assente o esquema do contrato bilateral … E vale tanto para o caso de falta integral do cumprimento, como para o de cumprimento parcial ou defeituoso, desde que a invocação não contrarie o princípio geral da boa fé consagrado nos artigos 227º e 762º nº 2».

É, pois, caraterístico da exceptio poder ser invocada nos contratos bilaterais ou sinalagmáticos nos quais existe um sinalagma (genético) ou correspetividade entre prestações.

Será assim no caso do contrato de empreitada (artigo 1207.º e seguintes do Código civil), enquanto contrato bilateral ou sinalagmático do qual resultam prestações correspetivas ou correlativas, ou seja, por um lado, a obrigação de executar a obra e, por outro, a do pagamento do preço. As prestações apresentam-se, assim, como interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra e intercedendo entre ambas um nexo de causalidade e de reciprocidade. [...]

No caso em apreço, o título executivo encontra-se consubstanciado num documento particular autenticado de reconhecimento de dívida, com indicação da respetiva causa, enquadrando-se substantivamente no disposto no artigo 458.º do Código Civil, resultando a sua natureza executiva da tipologia taxativa do artigo 703.º do CPC, subsumindo-se, no caso, ao n.º 1, alínea b), do preceito, como já acima dito.

O reconhecimento de dívida é um ato unilateral (não é um contrato), quer quanto à sua formação, quer quanto aos seus efeitos, presumindo-se a existência e a validade da relação fundamental ou causal, admitindo-se, contudo, prova em sentido oposto.

Para que sirva como título executivo é entendimento pacífico que, ou a relação causal se encontra mencionada no documento que enforma o referido ato unilateral de reconhecimento de dívida ou, então, carece a mesma de ser alegada em sede de requerimento executivo.[4]
O facto do reconhecimento de dívida inserta num documento autenticado constituir uma declaração unilateral com eficácia vinculativa para quem emite a declaração e, simultaneamente, constituir título executivo de suporte à execução visando a cobrança coativa da dívida, não transforma a natureza unilateral da obrigação.

Ora, a exceção de não cumprimento, como já dito, é suscetível de ser invocada apenas nos contratos bilaterais e não nos negócios unilaterais, pelo que se encontra afastada a possibilidade de nos embargos de executado deduzidos à execução onde é apresentado como título executivo um ato unilateral, terem como fundamento a exceção de não cumprimento. [...]

O que, estando em causa uma situação de alegado cumprimento defeituoso no âmbito de um contrato de empreitada, significa que o dono da obra pode opor-se ao cumprimento da sua prestação enquanto a contraparte (empreiteiro) não eliminar os defeitos da mesma.

Quando no artigo 731.º do CPC se estipula que a oposição se pode fundar na alegação de factos que poderiam ser invocados como defesa no processo de declaração, aí se incluindo a exceção de não cumprimento, a norma tem de ser interpretada como reportando-se às situações em que legalmente a lei prevê a possibilidade de invocação da exceção de não cumprimento, ou seja, quando no processo de declaração (ou na fase declarativa dos embargos de execução) esteja em causa um contrato bilateral.

O que não sucede quando o título executivo é um ato unilateral de reconhecimento de dívida. A ação declarativa (ou oposição aos embargos com base nesse título) a que a lei se reporta seria a que tivesse como causa de pedir o questionamento do reconhecimento da dívida, ou seja, onde estivesse em discussão a existência e validade daquele reconhecimento e não a ação declarativa que constituiu a causa da emissão do documento onde se reconhece a dívida e onde se discute o cumprimento defeituoso da obrigação emergente de um contrato bilateral.

Em resumo, se o título executivo for um documento particular autenticado onde é reconhecida unilateralmente uma dívida, ainda que a mesma tenha como causa um contrato bilateral onde se discute o cumprimento parcial ou defeituoso do contrato, a exceção de não cumprimento desse contrato bilateral não constituiu fundamento para dedução de embargos de executado na execução titulada pelo referido documento particular autenticado.

Quer isto dizer, que a exceptio pode ser deduzida no âmbito da discussão do contrato bilateral que originou a emissão do reconhecimento da dívida, dada a natureza bilateral do contrato em causa (artigo 428.º do Código Civil), mas não pode ser invocada em relação a atos unilaterais como ocorre com o reconhecimento de dívida previsto no artigo 458.º do Código Civil."

[MTS]