"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/02/2024

Jurisprudência 2023 (109)


Contrato de arrendamento; cessação;
valor da causa*


1. O sumário de RC 24/1/2023 (343/19.0T8ACB.C1) é o seguinte:

I - A exigência de redução a escrito dos arrendamentos urbanos, constante do artº 1069 nº1 do C.C., constitui uma formalidade ad probationem, podendo o documento escrito ser substituído, para efeito de prova, ao abrigo do artigo 364.º do CC, por confissão expressa, quando invocado pelo senhorio, uma vez que a excepção constante do seu nº2, apenas se mostra estabelecida a favor do arrendatário.

II - Esta exigência não se mostra suprida pela cominação decorrente da revelia absoluta da parte R., pois que a confissão de factos dela decorrente, conforme decorre do disposto no artº 567, nº2, do C.P.C., é uma confissão ficta, abrangendo apenas os factos que não sendo indisponíveis, não exijam qualquer forma especial para a sua prova, conforme decorre expressamente do disposto no artº 568, alínea d), do C.P.C.

III - Nessa medida, resultando dos autos que foi concedido o gozo de uma fracção, pelo seu proprietário, para habitação de um terceiro, mediante o pagamento de uma contrapartida pecuniária mensal, deve considerar-se que estes factos integram o tipo contratual de locação de prédio urbano para habitação, nulo, por não se verificarem os requisitos de forma previstos no artº 1069 nº1 do C.C., nulidade esta de conhecimento oficioso (artsº 220 e 286 do C.C.)

IV - Interposta acção tendo como objecto a celebração de contrato de arrendamento para habitação, cuja resolução é peticionada nos autos, com o consequente despejo da arrendatária, a fixação do valor deve obedecer ao disposto no artº 298 nº1 do C.P.C., não obstando a tal a declaração de nulidade deste contrato.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Da nulidade deste contrato e suas consequências.

Devendo o contrato de arrendamento ser celebrado por escrito e não estando junto aos autos este documento, nem podendo ser substituído por outro meio de prova que não a confissão expressa, deve considerar-se que o acordo referido no ponto 3, integra o tipo contratual de locação para habitação, sem obediência aos requisitos de forma previstos no artº 1069 nº1 do C.C. e assim nulo, por não poder aproveitar ao pretenso senhorio a excepção contida no nº2 deste preceito.

Ora, o pedido de resolução do contrato formulado, pressupõe a existência de um contrato válido que produziu os seus efeitos, embora estes venham a ser destruídos por via da resolução legal (com salvaguarda dos efeitos já produzidos e não objecto de restituição e que correspondem grosso modo, nos contratos de arrendamento, à fruição do locado e ao pagamento da renda).

Assim sendo, a peticionada entrega do locado, não se funda no incumprimento do contrato e sua resolução (muito menos na sua caducidade como invoca a decisão recorrida) mas antes na declaração de nulidade do contrato de arrendamento. Esta declaração de nulidade tem os efeitos previstos no art.º 289º, nº 1, do Cód. Civil, ou seja, efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

A restituição do imóvel é assim consequência da nulidade do contrato e do dever de restituição da coisa ao seu proprietário (artsº 289 e 1311 do C.C.), mas este dever de restituição da coisa incide apenas sobre aquele que a detém ilicitamente.

Conforme a doutrina do então Assento nº 4/95, hoje com valor de AUJ, quando o tribunal conhecer da nulidade do negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, devem retirar-se as consequências da invalidade do contrato, ou seja, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no nº 1 do art.º 289º do Cód. Civil., mesmo que o não haja sido peticionado, que no caso em apreço foi.

Resta o pedido de pagamento das quantias fixadas como contrapartida do gozo da fracção em causa. Não tendo estas quantias como fonte o contrato de arrendamento, pois que um contrato nulo é insusceptível de gerar obrigações, decorre, no entanto, da utilização e gozo da fracção, que não podem ser já objecto de restituição. Como salienta CASTRO MENDES [Ac. do STJ de 25.03.2021, proferido no proc. nº 11189/18.2T8LSB.L1.S1], contratos há que no momento em que se põe o problema da sua nulidade foram já cumpridos prática e economicamente em termos de não ser possível desfazer retroactivamente tal prestação.

Para o efeito é irrelevante que a 1ª R. não habite o imóvel, pois que não procedeu à entrega das chaves à sua proprietária, mantendo-se este imóvel na sua disponibilidade, sendo assim devido o pagamento das quantias acordadas como contrapartida da fruição deste imóvel e até sua efectiva entrega à proprietária, por força do regime da nulidade do contrato, mas sem aplicabilidade quer do disposto no artº 1045 do C.C., quer das sanções constantes do artº 1041 do C.C. que pressupõem a existência de um contrato válido e a mora do arrendatário no pagamento das rendas e na restituição do locado, logo que cesse o contrato. Acresce que, no seu petitório, a A. não peticionou o pagamento das sanções previstas nestes preceitos, mas apenas o pagamento em singelo das quantias devidas a título de rendas, não podendo em sede de recurso ampliar o pedido, ou formular novos pedidos ou suscitar questões não abrangidas nem objecto da decisão recorrida, exceptuadas as de conhecimento oficioso.

De igual modo, a nulidade deste contrato, sempre acarretaria a nulidade da fiança que nele tivesse sido prestada (artº 632 nº1 do C.C.), também esta de conhecimento oficioso e, não podendo embora este tribunal alterar o já decidido e que constitui res judicata, impõe-se a absolvição da 2ª R. do demais peticionado e não abrangido por esta decisão.

Do valor da causa

Também neste conspecto não tem o A. razão.

O valor processual da causa consubstancia a sua utilidade económica, configurada na petição inicial, tendo em conta a causa de pedir e os pedidos formulados (artºs 296 e 297 e 299 do C.P.C.)

A fixação do valor da causa, deve considerar não só a situação existente ao tempo da propositura da acção (nº1 do art. 299º do CPC), mas os critérios gerais e especiais, se aplicáveis, previstos os primeiros no artº 297 e os segundos no artº 298 do C.P.C.

Os primeiros mandam atender ao valor do pedido formulado em primeiro lugar, no caso de serem formulados pedidos subsidiários (nº 3 do artº 297), sendo absolutamente irrelevante para a decisão do valor, a absolvição dos RR. de algum dos pedidos, uma vez que apenas relevam no que concerne ao valor processual da causa, os decorrentes dos actos processuais constantes dos nºs 3 a 4 do artº 299 C.P.C.

Os segundos estabelecem critérios especiais de fixação do valor, quando estiver em causa determinados interesses.

A causa de pedir do A. na presente acção consistia na alegação de um contrato de arrendamento válido celebrado com a 1ª R., incumprido por esta quanto à obrigação do pagamento da renda e do dever de uso efectivo do locado (artº 1072 do C.C.), peticionando na alínea c) que seja ordenado o despejo da 1ª R. (consequência afinal da resolução do contrato por via do artº 1083 nº 2 d) do C.C.) e a restituição do locado à A.

A acção em causa não constitui uma acção de reivindicação, em que se discute e pretende afirmar um direito de propriedade sobre a coisa imóvel, violado pela contraparte, a que corresponderia a fixação processual do valor da coisa nos termos previstos no artº 302 do C.P.C.

Corresponde e integra pedidos próprios de uma acção em que a par do pagamento das rendas se pretende a de declaração de cessação do contrato de arrendamento, constituindo o pedido de entrega do locado a consequência da cessação do contrato, sem autonomia face aos pedidos e à causa de pedir.

O valor da acção determina-se assim de acordo com o disposto no artº 298 do nº 1 do C.P.C., coincidente com o valor fixado na decisão recorrida. [Como referido por TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel, blog do IPPC, C.P.C. Online, “O critério enunciado no n.º 1 deve ser aplicado, por analogia, às acções nas quais o arrendatário pretende obter a entrega do imóvel arrendado. Pela falta de um critério alternativo viável, o critério constante do nº 1 também deve ser utilizado quando se discuta a validade do contrato de arrendamento (LF I (2018), nº 2) ou quando o objecto da acção seja a caducidade desse contrato (dif. STJ 22/11/2018 (408/16)).”]

*3. [Comentário] Para mais fácil compreensão do decidido importa referir que o conhecimento da nulidade do contrato de arrendamento surgiu apenas na 2.ª instância. Um dos pedidos iniciais formulado pelo autor era o de que fosse "declarada a cessação do contrato de arrendamento celebrado entre o A. e as RR. com fundamento no abandono do locado".

MTS