Reg. 650/2012;
testamento; forma; lei aplicável
I. O Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, prevalece sobre as normas dos Artigos 62º a 65º do Código Civil e revogou tacitamente o Artigo 2223º do Código Civil.
II. Um testamento manuscrito no Canadá, em 16.5.2018, respeitando a lei local, é válido e deve ser reconhecido no subsequente inventário em Portugal, tendo o óbito ocorrido em 1.7.2018 e havendo que considerar que o inventariado tem residência habitual em Portugal.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O inventariado EF tinha nacionalidade portuguesa e faleceu em Ponta Delgada, a 1 de julho de 2018.
O Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, é aplicável às sucessões abertas a partir de 17.8.2015 (cf. Artigo 83º, nº 1). Ora, tendo a sucessão por óbito de EF sido aberta em 1.7.2018, tal Regulamento aplica-se à respetiva sucessão, sendo competentes os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito (Artigo 4º do referido Regulamento).
Na definição do conceito de residência habitual haverá que ter presente o conteúdo do Considerando (23) do Regulamento onde se consignou o seguinte:
«Tendo em conta a mobilidade crescente dos cidadãos e a fim de assegurar a boa administração da justiça na União e para assegurar uma conexão real entre a sucessão e o Estado-Membro em que a competência é exercida, o presente regulamento deverá prever como fator de conexão geral, para fins de determinação da competência e da lei aplicável, a residência habitual do falecido no momento do óbito. A fim de determinar a residência habitual, a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento.»
Para este efeito, importa também atender ao Considerando (24) do Regulamento, nos termos do qual:
«Em certos casos, poderá ser complexo determinar a residência habitual do falecido. Poderá ser esse o caso, em particular, quando o falecido, por razões profissionais ou económicas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de aí trabalhar, por vezes por um longo período, mas tenha mantido uma relação estreita e estável com o seu Estado de origem. Nesse caso, o falecido poderá, em função das circunstâncias, ser considerando como tendo ainda a sua residência habitual no Estado de origem, no qual se situações o centro de interesses da sua família e a sua vida social. Outros casos complexos poderão igualmente ocorrer quando o falecido tenha vivido de forma alternada em vários Estados ou tenha viajado entre Estados sem se ter instalado de forma permanente em nenhum deles. Caso o falecido fosse um nacional de um desses Estados ou tivesse todos os seus principais bens num desses Estados, a sua nacionalidade ou o local onde se situam esses bens poderia ser um fator especial na apreciação global de todas as circunstâncias factuais.»
Nos termos do Artigo 21º do Regulamento:
1. Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito.2. Caso, a título excecional, resulte claramente do conjunto das circunstâncias que, no momento do óbito, o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplicável nos termos do nº 1, é aplicável à sucessão a lei desse outro Estado.
Este regime do nº 2 é particularmente pertinente para países como o nosso, em que emigrantes passam grande parte da vida ativa noutro país da União Europeia, mantendo a intenção de regressar. «A conexão manifestamente mais estreita com outro país só existirá se o de cujus se limitar a ter no país da residência habitual o centro dos seus interesses – local de trabalho, de morada e da família -, sem que sobreviessem outros laços de diferente natureza (patrimonial, cultural, social). Apenas nessas circunstâncias haverá uma manifesta (percetível para todos) maior ligação com outro país, apesar do centro de vida estar estabelecido no Estado da residência. (…) Importa saber se as ligações sentimentais do falecido (as datas especiais, as férias, a intenção de regressar), o ambiente cultural e social em que vive integrado e a circunstância de a maioria do património se situar em Portugal revelam uma ligação manifestamente mais estreita com o país da nacionalidade.” (Afonso Patrão, “Problemas práticos na aplicação do regulamento europeu das sucessões», no BFDUC, vol. XCIV, t. II, 2018, pp. 1195-1196 e 1197).
No caso em apreço, existem elementos suficientes para afirmar que o inventariado tinha a sua residência habitual – interpretada nos precisos moldes preconizado no Regulamento e seus considerandos – em Portugal. Com efeito, o inventariado era português e faleceu em Ponta Delgada, sendo natural da ilha de São Miguel. E, sobretudo, o inventariado deixou como único bem a partilhar a sua residência sita na Ilha de São Miguel na freguesia (…). Mesmo que estivesse provado que, nos últimos anos de vida, o inventariado coabitou com a filha no Canadá a fim de ser tratado por esta (conforme parece pressupor-se no que é afirmado no testamento), o demais circunstancialismo fáctico é suficiente para afirmar que o mesmo tinha residência habitual em São Miguel, para efeitos da aplicação do Regulamento nº 650/2012.
Posto isto e no que tange ao âmbito do Regulamento, conforme se refere em Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2ª ed., 2022, Almedina, p. 591:
«O Reg. da UE veicula regras uniformes de competência internacional, lei aplicável e reconhecimento de decisões estrangeiras em matéria de sucessões internacionais, aplicando-se a relações sucessórias plurilocalizadas na União Europeia (com exceção do Reino Unido, Irlanda e Dinamarca) que têm pontos de contacto relevantes com mais de um país, nomeadamente por via da existência de bens sitos em vários países. A transnacionalidade da situação jurídica pode advir da sua conexão com um Estado-membro e com um país terceiro, ou seja, não tem de ser uma transnacionalidade contida dentro dos limites da União Europeia (RL 19-11-19, 28325/17). O art.º 20º consagra a aplicação universal das normas do Reg., o que, conjugado com o primado do direito comunitário, significa que as normas de conflitos do Reg. prevalecem sobre as normas dos art.ºs 62º a 65º do CC. Outra decorrência do carácter universal das normas é que, “através do funcionamento das respetivas conexões, as normas de conflitos tanto podem designar como aplicável o direito material de um Estado-membro como de um Estado terceiro” (Gomes de Almeida, “Apontamentos sobre o novo direito de conflitos sucessório”, Revista do CEJ, nº 2, pp. 35-36). O Reg. segue o modelo da sucessão unitária, aplicando-se uma única lei a toda a sucessão (art. 23º, nº 1), sem prejuízo de, no domínio do reenvio, a lex domicilii adotar o sistema da cisão (cf. art.º 34º; Afonso Patrão, “Problemas práticos na aplicação do Reg. europeu das sucessões”, BFDUC, vol. XCIV, t. II, 2018, pp. 1187-1188).»
Também Helena Mota, em Cristina Araújo Dias (Coord.), Código Civil Anotado, Livro V, Direitos das Sucessões, Almedina, 2018, p. 335, afirma que:
«Donde poderemos concluir que o art.º 2223º foi tacitamente revogado pelo Regulamento das Sucessões Internacionais e que qualquer testamento feito de forma escrita por português em país estrangeiro será formalmente válido se forem observadas as exigências formais determinadas por qualquer uma das leis indicadas supra no artº. 27º do Regulamento, não se lhe aplicando as demais exigências formais previstas na lei portuguesa, nomeadamente a intervenção de autoridade pública na sua feitura ou aprovação.»
Nos termos do Artigo 27º do Regulamento:
1. Uma disposição por morte feita por escrito é válida do ponto de vista formal se a sua forma respeitar a lei:
a) Do Estado onde a disposição foi feita ou o pacto sucessório celebrado; (…)
Para determinar se o testador ou uma das pessoas cuja sucessão é objeto do pacto sucessório tinham ou não o seu domicílio num determinado Estado aplica-se a lei desse Estado.(…)
2. Para efeitos do presente artigo, considera-se que diz respeito a questões de forma qualquer disposição legal que limite as formas autorizadas das disposições por morte referentes à idade, nacionalidade ou outras características pessoais do testador ou das pessoas cuja sucessão é objeto de um pacto sucessório. É aplicável a mesma regra às características que devem possuir quaisquer testemunhas exigidas para a validade de uma disposição por morte.
No que tange à validade formal das disposições por morte feitas por escrito, esta norma estabelece uma conexão alternativa que cria múltiplas possibilidades para favorecer essa validade (Luís de Lima Pinheiro, Direito Privado Internacional, Vol. II – Direito de Conflitos – Parte Especial, 2015, p. 287).
Ora, o testamento lavrado pelo inventariado no Canadá, em 16.5.2018, respeitou a forma exigível localmente, consoante decorre da atestação notarial junta aos autos.
Nessa precisa medida, e sem necessidade de outras considerações, tal testamento tem de ser atendido e relevado no inventário pendente no processo principal, a correr termos em Portugal."
[MTS]
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