"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/02/2024

Jurisprudência 2023 (102)


Revista excepcional;
"interesses de particular relevância social"

1. O sumário de STJ 24/5/2023 (283/18.0T8CLD.C1.S2) é o seguinte: 

Não se podem ter como verificados os requisitos da relevância jurídica ou da relevância social, justificativos da amissibilidade da revista excepcional, quando o que resulta da alegação de recurso é a discordância quanto ao seu preenchimento, tendo em conta o resultado da prova definitivamente fixada.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4. O desenvolvimento das razões pelas quais a recorrente considera que as questões que justificariam a admissão da revista excepcional – das quais apenas se mantém a que respeita ao alegado erro de julgamento por violação de lei substantiva – consta, como a própria recorrente afirma, das págs. 24 a 30 das alegações de recurso.

Lidas atentamente as referidas páginas 24 a 30, verificamos que a recorrente liga o referido erro à nulidade do acórdão recorrido e à invocada violação de lei de processo, vícios cuja ocorrência foi afastada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 899. “Os restantes fundamentos do presente recurso de Revista”, escreve a recorrente a fls. 28 das alegações, “incidem essencialmente sobre os erros de julgamento, de natureza eminentemente jurídica, perpetrados pelo tribunal a quo na leitura, interpretação e aplicação das normas legais substantivas (...), erros estes que não podem ser analisados indissociavelmente do supramencionado comportamento omissivo da Relação nos presentes autos.”

Todas as alegações de recurso, aliás, assentam na ideia de que o julgamento de direito resultou de omissão de pronúncia do acórdão recorrido e de não uso ou mau uso, pela Relação, dos poderes de controlo da matéria de facto previstos no artigo 662.º do Código de Processo Civil. Recorde-se a conclusão XLVIII e segs., em particular as conclusões XLVIII a LII, atrás transcritas.

Todavia, a recorrente alega ainda erros de direito relativos à interpretação e aplicação, à luz da matéria de facto provada, do disposto nos artigos 16.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 50/2015, de 25 de Fevereiro (em síntese, quanto a saber se o equipamento em causa nos autos cumpria ou não as exigências definidas neste preceito), 14.º, n.º 1, a e b) e 18.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (culpa do sinistrado e responsabilidade agravada do empregador).

5. Recorre-se à síntese efectuada no acórdão deste Supremo Tribunal de 1 de Fevereiro de 2023, www.dgsi.pt, proc.n.º 474/21.6/8TMTS.P2.S2 para recordar qual tem sido o entendimento do que sejam questões “cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito” (al. a) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil):

«10. Nos termos e para os efeitos do art. 672.º, n.º 1, a), reclamam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça as questões “cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, como tal se devendo entender, designadamente, as seguintes:

– “Questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.” (Ac. do STJ de 06-05-2020, Proc. n.º 1261/17.1T8VCT.G1.S1, 4.a Secção).

– Quando “existam divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda quando o tema se encontre eivado de especial complexidade ou novidade” (Acs. do STJ de 29-09-2021, P. n.º 681/15.0T8AVR.P1.S2, de 06-10-2021, P. n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 13-10-2021, P. n.º 5837/19.4T8GMR.G1.S2).

– “Questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do STJ possa contribuir para a segurança e certeza do direito.” (Ac. do STJ de 06-10-2021. P. n.º 474/08.1TYVNG-C.P1.S2).

– “Questões que obtenham na jurisprudência ou na doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação com elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, suscetíveis, em qualquer caso, de conduzir a decisões contraditórias ou de obstar à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais.” (Ac. do STJ de 22-09-2021, P. n.º 7459/16.2T8LSB.L1.L1.S2).

– Questão “controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito, estando em causa questionar um relevante segmento de determinada área jurídica” (Ac. do STJ de 13-10-2009, P. 413/08.0TYVNG.P1.S1).

– “Questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclame aturado estudo e reflexão, ou porque se trata de questão que suscita divergências a nível doutrinal, sendo conveniente a intervenção do Supremo para orientar os tribunais inferiores, ou porque se trata de questão nova, que à partida se revela suscetível de provocar divergências, por força da sua novidade e originalidade, que obrigam a operações exegéticas de elevado grau de dificuldade, suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias, justificando igualmente a sua apreciação pelo STJ para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam surgir.” (Ac. do STJ de 02.02.2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1).

Não se pode ter como verificado este requisito de admissibilidade de revista excepcional no caso concreto. Embora esteja em causa um acidente indiscutivelmente grave e a recorrente alegue errada interpretação de preceitos centrais para a caracterização/descaracterização de acidentes de trabalho ou da responsabilidade agravada do empregador, na realidade, o que resulta da sua alegação de recurso é a discordância quanto ao preenchimento dos requisitos exigidos pelos preceitos legais já indicados, tendo em conta o resultado da prova que vem fixada.

6. Como em breve resumo se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 2022, www.dgsi.pt, proc.º n.º 423/20.9TBBRR.L2.S2, para determinar se estão em causa “interesses de particular relevância social” (al. bdo n.º 1 do citado artigo 672.º do Código de Processo Civil), “deverá apelar-se à generalizada repercussão e ao invulgar impacto que a controvérsia acarreta para o tecido social, pondo em causa a eficácia do direito e minando a sua credibilidade, de modo a motivar a atenção de relevantes camadas de população e a extravasar, de forma inequívoca, os meros interesses particulares das partes ou o inerente objeto do processo”.

Também aqui se verifica, bem vistas as coisas, que o que a alegação da recorrente mais uma vez revela é a discordância no que respeita à verificação dos requisitos exigidos pelos preceitos legais referidos, tomando em consideração o resultado da prova.

Não pode assim dizer-se que estejam em causa interesses que, inequivocamente, “extravasem os interesses particulares das partes”, como se tem entendido na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que tratou de concretizar o conceito indeterminado da “particular relevância social” – cfr., a título de exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Março de 2023, www.dgsi.pt, proc. n.º 1400/13.ITTPRT.P1.S1 («Os interesses de particular relevância social respeitam a aspectos fulcrais da vivência comunitária, susceptíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos colectivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação»), de 15 de Dezembro de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 4714/20.T8FNC-A.L1.S1 («O requisito da al. b) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil tem ínsita a aplicação de preceito ou instituto a que os factos sejam subsumidos e que possa interferir com a tranquilidade, a segurança ou a paz social, em termos de haver a possibilidade de descredibilizar as instituições ou a aplicação do direito»), ou de 17 de Março de 2022, www.dgsi.pt, proc. n. 28602/15.3T8LSB.L2.S2 («A recorrente no que concerne ao fundamento da relevância social sustenta que a eventual procedência da presente ação terá um impacto muito negativo, não só para os trabalhadores e colaboradores da Ré como para toda a comunidade por si apoiada, podendo mesmo levar à sua extinção e ao encerramento dos estabelecimentos de ensino administrados pela Ré. (...) As razões indicadas pela recorrente no que se refere aos alegados interesses de particular relevância social não se sobrepõem ao caso concreto, pois o que invoca é o impacto negativo da condenação no seu património»)."

[MTS]