"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/02/2024

Jurisprudência 2023 (120)


Providência cautelar;
fumus boni iuris; periculum in mora*


1. O sumário de RE 25/5/2023 (496/22.0T8CTX.E1é o seguinte

Se a requerente da providência cautelar alega que é titular do direito de propriedade plena, mas apenas integra a sua esfera jurídica patrimonial a compropriedade, não se mostra preenchido um dos requisitos para o decretamento da providência, a aparência da existência do direito alegado na sua titularidade.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A recorrente alega que o tribunal a quo se fundamentou numa mera declaração da junta de Freguesia que não consta dos autos; que prescindiu da audição de testemunhas; que fixou como única matéria a decidir a união de facto da recorrida e o consequente direito de residir na casa de morada de família; não se debruçando acerca da nulidade do registo do direito real de habitação promovido pela recorrida; que o prejuízo da recorrente é igual ao dano da recorrida.

Por seu lado, o tribunal a quo considerou que, não obstante a recorrente ter em seu benefício a presunção da propriedade conferida pelo artº 7º do Registo Predial, da matéria de facto provada resultou que a recorrida viveu em união de facto com o falecido e comproprietário da casa de morada de família, duramente mais de 10 anos.

O que implica ter a recorrida integrado na sua esfera jurídica um direito real de habitação do imóvel, de uso do recheio e de preferência na venda da casa, ao abrigo do que dispõe o artº 3º/ a), 5º/1 e 9º da Lei 7/2001, de 11-05.

Daqui decorre a constituição de um legado ope legis, a favor da recorrida, no momento do falecimento do unido de facto, sendo, nesta medida, sucessora do de cujus (artº 2030º/1 do CC).

Conclui ainda a sentença em crise, que o direito real de habitação da recorrida é oponível ao direito de propriedade da recorrente, pelo que não se verifica um dos requisitos de que depende a decretação da providência – a probabilidade séria da existência do direito na esfera jurídica da recorrente –, ou seja, o seu direito de propriedade encontra-se onerado com um direito de habitação anteriormente registado.

Quid iuris?

Quanto à prova da união de facto, a recorrida, em .../.../2022, juntou aos autos um atestado emitido pela Junta de Freguesia ... e Vale da Pinta, datado de 12-06-2020, onde se atesta a união de facto da recorrente desde .../.../2009 até à data do falecimento do unido de facto, .../.../2020.

Em 28-11-2022, a recorrente pronunciou-se sobre os documentos juntos pela recorrida, pelo que se não entende a afirmação de que tal declaração não foi junta aos autos.

Por outro lado, a lei 7/2002, permite a prova da união de facto “por qualquer meio legalmente admissível.”, sendo que o documento em causa constituiu também prova suficiente para que a Segurança Social concedesse os benéficos atinentes à recorrida.

Para além disso, a matéria de facto fixada pela primeira instância não se mostra impugnada, como o obriga o disposto no artº 640º do CPC, pelo que não mais poderá ser impugnada em recuso ordinário.

Quanto à decisão proferida, adianta-se, desde já, que não nos merece qualquer censura.

Com efeito, mostrando-se provada a união de facto entre o falecido e a recorrida, a questão a decidir era a de saber se na esfera jurídica da recorrente existia uma aparência do direito que invocou para que a providência tivesse sucesso.

Ora, como bem decidiu o tribunal a quo, a Lei das Uniões de Facto (LUF) acima referida, confere ao unido de facto a proteção da casa de morada de família (artº 3º/a)) e, em caso de morte do membro da união, proprietário da casa de morada e família e respetivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de 5 anos, como titular de um direito real de habitação periódica e de um direito de uso do recheio (artº 5º/1).

No caso dos autos, apesar de o registo não ser constitutivo de direitos, o unido de facto sobrevivo registou o seu direito real de habitação e recheio, em momento anterior ao registo da propriedade plena efetuado pela recorrente.

Contudo, a recorrente tinha na sua esfera jurídica patrimonial a compropriedade da casa de morada de família, porque foi casada com o unido de facto falecido, mas nunca foram partilhados os bens após o divórcio.

Assim sendo, no momento do óbito apenas foi legado à recorrida o direito de usar a compropriedade do imóvel que existia na esfera jurídica do falecido.

A questão que se coloca agora é a de saber se, para além da propriedade plena e a compropriedade entre os unidos de facto, a compropriedade apenas do falecido unido de facto também confere, ao unido sobrevivo, a proteção da casa de morada de família nos termos em que dispõe o artº 3º/a) e 5º/1 da LUF.

A resposta só pode ser afirmativa.

A compropriedade é uma das formas que pode revestir o direito de propriedade, havendo uma pluralidade de titulares do direito sobre a mesma coisa.

Os comproprietários são titulares de uma quota, não sabendo em que parte da coisa se situa a sua quota parte.

Por isso, se não houver o acordo quanto ao uso da coisa ela pode ser usada por qualquer dos comproprietários, desde que não faça dela um uso diferente daquele a que a cosia se destina e não prive os outros comproprietários de igualmente a usarem (artº 1406º do CC).

Se, mesmo assim, o desacordo se mantiver, o comproprietário que não usa a coisa pode pedir a sua divisão, judicial ou extrajudicialmente, demonstrando os autos que tal não ocorreu, quer o uso partilhado da coisa, quer o pedido de divisão (artº 925º do CPC) desde o divórcio até ao falecimento.

Ora, a recorrente alega que é titular da propriedade plena da casa de morada de família.

Contudo, esta propriedade plena só foi constituída após o decesso do unido de facto, seu ex comproprietário da casa, o que significa que, após o falecimento, dois direitos reais se confrontaram, protegidos com a mesma força jurídica porque beneficiam ambos de uma das características essencial dos direitos reais – a tipicidade.

O direito de compropriedade da recorrente e o direito real de habitação da recorrida, que nasceu no momento do decesso.

Assim sendo, atendendo a que nos interessa aqui, apenas, saber se a recorrente possuía a aparência do direito que se arroga – o direito de propriedade plena, no momento em que ocorreu o dito confronto de direitos – e tendo-se demonstrado que não o possuía, a conclusão a que chegamos é a de que não beneficia do fumus boni iuris legalmente exigido para a decretação da providência (artº 362º do CPC)."

*3. [Comentário] a) O acórdão merece duas breves observações.

b) O acórdão não é muito claro, mas parece assentar no pressuposto de que um comproprietário não pode obter uma providência cautelar contra um terceiro. Atendendo ao disposto no art. 1405.º, n.º 2, CC, isso parece ser muito discutível, dado que, se um comproprietário pode reinvindicar a coisa de um terceiro, também há-de poder obter uma providência cautelar contra um terceiro. Acresce que o art. 397.º, n.º 1, CPC, em matéria de embargo de obra nova, aceita que um comproprietário possa requerer esta providência cautelar. Porque terá de ser diferente quanto a uma providência comum?

Além disso, parece que se deveria ter dado relevância a que, sendo o unido de facto falecido apenas comproprietário da fracção do imóvel, o direito real de habitação da unida de facto sobrevivente não pode valer como se aquele unido fosse proprietário pleno da coisa. Aliás, o art. 5.º, n.º 1, L 7/2001, de 11/5, dispõe o seguinte:

"Em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada da família e do respectivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio."

Não querendo discutir se o direito real de habitação também se constitui no caso de o unido falecido ser apenas comproprietário da casa de mora de família, parece que a compropriedade há-de ter algum reflexo no direito real de habitação de quem conviveu em união de facto apenas com um dos comproprietários. Seria estranho que esse direito se constituísse ignorando a compropriedade da casa de morada da família e exactamente do mesmo modo tal como se o unido falecido fosse proprietário dessa casa.

c) Nas suas alegações a Recorrente afirma o seguinte:

"n) Até à anulação do registo a Requerente tem o prejuízo de não poder retirar uma renda decorrente do arrendamento do imóvel.

o) Pelo que, justifica-se assim o decretamento da providência cautelar requerida, devendo a Requerida ficar obrigada a pagar uma renda nunca inferior a 500,00€ pela ocupação ilícita do imóvel e até que seja restituída a posse do mesmo à Requerente."

Supõe-se que a Recorrente lavra num equívoco quanto à função das providências cautelares. Como decorre do disposto no art. 2.º, n.º 2, CPC, as providências cautelares destinam-se a "acautelar o efeito útil da acção" principal. É por essa razão que as providências cautelares exigem um periculum in mora, que decorre do receio de um direito sofrer uma lesão grave e dificilmente reparável se a sua tutela tiver de aguardar pela acção principal (art. 362.º, n.º 1, CPC). O periculum in mora é textualmente -- e nao é outra coisa -- o perigo que o direito corre se tiver se de esperar pela acção principal para o tutelar. A providência cautelar fornece uma tutela provisória para que a tutela definitiva não se torne inútil.

Ora, como se compreende facilmente, o alegado pela Recorrente não demonstra esse periculum in mora, dado que não alega qualquer facto do qual se conclua que o seu (eventual) direito a receber uma renda mensal não pode aguardar pela apreciação da questão numa acção.

É por esta razão, indepentemente de tudo o mais, que a providência cautelar nunca poderia vir a ser decretada.

MTS