"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/02/2024

Jurisprudência 2023 (112)


Transacção;
vício da vontade; recurso de revisão


1. O sumário de RG 25/5/2023 (3067/21.4T8BRG.G1) é o seguinte:

- O recurso da sentença homologatória duma transação apenas pode incidir sobre um vício da própria decisão homologatória, não cabendo no objeto do recurso a apreciação de eventual vício da vontade.

- Pretendendo-se arguir a nulidade ou peticionar a anulação da transação, tendo em vista que o processo em que foi proferida a sentença homologatória da transação seja reaberto, o meio adequado é o recurso de revisão.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A recorrente coloca a questão do vício de vontade na declaração emitida aquando da transação, o que remete para a apreciação da questão colocada pela Exmª PGA no seu parecer, relativa à idoneidade do meio.

Nos termos do art. 1248º C.Civil: “1. Transação é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões. 2. As concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido.”

Como se refere no douto parecer, “como contrato que é, a transação está sujeita ao regime geral dos negócios jurídicos estabelecido nos arts. 217º e ss C.Civil. Por sua vez, de acordo com o art. 291º CPC, a transação pode ser declarada nula ou anulada como os outros atos da mesma natureza, dispondo o nº 2 que o trânsito em julgado da sentença proferida sobre a transação não obsta a que se intente ação destinada à declaração de nulidade ou à anulação desta ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação.”

O recurso da decisão visa os vícios da própria decisão, erro de julgamento, de facto ou de direito, ou outros – vd. artigos 627º, 633º, 635º, 636º, 639º, 640º -; não podendo apreciar-se questões não colocadas e apreciadas em primeira instância, ou que deveria ter apreciado.

A sentença homologatória fiscaliza a regularidade e validade do acordo efetuado, conforme artigo 290 do CPC (nº 3: Lavrado o termo ou junto o documento, examinar-se-á se, pelo seu objeto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, a confissão, desistência ou transação é válida, e, no caso afirmativo, assim será declarado por sentença, condenando-se ou absolvendo-se nos seus precisos termos.  Nº 4. A transação pode também fazer-se em ata, quando resulte de conciliação obtida pelo juiz. Em tal caso, limitar-se-á este a homologá-la por sentença ditada para a ata, condenando nos respetivos termos). Resulta daqui que a resolução do conflito foi efetuada mediante o acordo efetuado. O tribunal não chega a apreciar o fundo da causa. 

Consta do artigo 291º do CPC:

Nulidade e anulabilidade da confissão, desistência ou transação
 
1 - A confissão, a desistência e a transação podem ser declaradas nulas ou anuladas como os outros atos da mesma natureza, sendo aplicável à confissão o disposto no n.º 2 do artigo 359.º do Código Civil.

2 - O trânsito em julgado da sentença proferida sobre a confissão, a desistência ou a transação não obsta a que se intente a ação destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação. (…)

Note-se que sobre o assunto importa oferecer e produzir as provas pertinentes tendo em vista convencer da verificação do vicio que for invocado, o que não caberia sequer em sede de recurso, onde se apreciam as provas apresentadas em primeira instância, salvas as exceções legalmente previstas.

Assim, em caso de vício da vontade, pode ser intentada ação tendo em vista a declaração de nulidade ou anulação, independentemente do transito da decisão homologatória e sem prejuízo da caducidade do direito à anulação.

Pretendendo-se, como será o caso, a continuação do processo a que a transação respeita, deverá propor-se recurso de revisão de sentença – 696 – d) do CPC -.

Sobre esta questão refere o Ac. RL de 17/3/2015, processo nº 51/15.0YLPRT.L1-2, disponível na net;

“ A parte interveniente na transação para lograr o objetivo que a apelante parece pretender no presente recurso – que se reabra a discussão no processo, de modo a que venha a conhecer-se do pedido em função dos factos constantes do mesmo - tem que, fora deste, lograr, por um lado, a destruição dos efeitos substantivos da transação e o processual resultante do caso julgado atribuído a esses efeitos pela homologação da transação, e por outro, a destruição do efeito processual decorrente da extinção da instância no processo em que foi produzida a sentença homologatória.

A destruição daqueles efeitos substantivos obtê-la-á a parte, em processo autónomo, alegando e provando a existência de vícios da vontade nos outorgantes, ou vício no objeto do negócio jurídico em que se traduz a transação – cfr Ac RL 3/2/2009 - e pedindo a declaração da nulidade ou a anulabilidade desse negócio jurídico (no caso desta, sem prejuízo da caducidade correspondente), servindo-se para o efeito do regime geral dos negócios jurídicos.

Por isso o nº 1 do art 291º CPC refere que «a (…) transação pode ser declarada nula ou anulada como os outros atos da mesma natureza», querendo com isso tornar claro que se pretende neste particular remeter para o regime jurídico do negócio jurídico – arts 285/289º CC - como o salienta Lebre de Freitas [Código de Processo Civil Anotado», Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Vol I, 3ª ed, p 571].

A destruição do efeito de extinção da instância produzido pela sentença homologatória só pode obtê-lo através da interposição de recurso de revisão.

Desde o DL 38/2003 - que no âmbito do CPC deu ao então nº 2 do art 301º a redação que hoje consta do nº 2 do art 291º do atual CPC – que a parte que pretenda um e outro dos referidos objetivos os pode obter interpondo meramente recurso de revisão, e não já, como anteriormente, através da propositura de dois processos.

Referindo-se a essa situação referem Lebre de Freitas/Isabel Alexandre: «Esta duplicidade de meios (ação e recurso) fundava-se na distinção entre os efeitos (negociais) do ato de confissão do pedido, desistência ou transação e os efeitos (processuais) da sentença que o homologa (…) Mas sendo desnecessariamente complexa, melhor seria um esquema, como o do CPC de 1939, que se contentasse com um único meio processual para a impugnação simultânea do ato das partes e do ato jurisdicional». Acrescentando: «Este esquema vigora de novo desde o DL 38/2003; a ação prévia ao recurso de revisão é dispensada (art 696-d); o recurso de revisão tem de ser interposto no prazo de 60 dias contado a partir do momento em que a parte tem conhecimento do fundamento de nulidade ou anulabilidade do negócio de auto composição do litígio, mas não depois do prazo de cinco anos sobre o trânsito da sentença homologatória - art 697º/2. (…) O nº 2 prevê em alternativa ao recurso de revisão, a proposição de ação destinada à declaração de nulidade ou à anulação da confissão, desistência ou transação. Tem-se assim em conta a eventualidade de se pretender atacar apenas o negócio jurídico de auto composição e não também a sentença que o homologou, sem prejuízo da responsabilidade do autor pelas custas - art 535º/1-d). O único prazo que a ação terá de respeitar é o da caducidade do direito à anulação». (…)”
*
Consequentemente improcede o recurso, meio inadequado para a apreciação do vício invocado, nada se apontando à decisão homologatória em si mesma."

[MTS]