"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/02/2024

Jurisprudência 2023 (105)


Documentos estrangeiros:
legalização; força probatória


1. O sumário de STJ 11/5/2023 (10421/15.9T8VNG.P2.S1) é o seguinte:

I. É justificada a junção de documentos na fase de recurso de apelação quando estes visem a prova de factos cuja relevância para a decisão a parte não pudesse, razoavelmente, antever antes de proferida decisão do Tribunal da Relação que anulou a sentença para o esclarecimento, por via documental, de determinada discrepância.

II. Quando considere que não há falta ou insuficiência de prova, o Tribunal pode, no exercício dos seus poderes de livre apreciação da prova, dar por demonstrada a veracidade do documento, ainda que a veracidade do documento seja impugnada por uma das partes.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Do alegado valor indevidamente atribuído aos documentos

As requeridas / ora recorrentes contestam ainda a valoração dos documentos feita pelo Tribunal recorrido. Afirmam elas que esta valoração desrespeita o disposto nos artigos 374.º e 376.º do CC bem como o disposto no artigo 445.º do CPC [cfr., designadamente, conclusões H) e I)].

O Tribunal a quo atribuiu valor aos documentos nos termos seguintes:

Os documentos em causa mostram-se emitidos por entidade estrangeira (Republica Boliveriana da Venezuela) e “autenticados” pelas autoridades desse país.

No domínio da Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961 a legalização do documento estrangeiro faz-se através da aposição duma apostilha pela entidade pública que o Estado de origem para o efeito tenha designado.

Para poderem valer como tal em Portugal, isto é como documentos autênticos ou autenticados, deveriam os documentos juntos ter sido objeto de reconhecimento por aplicação da Convenção de Haia de 5.10.1961, já que a Venezuela, assim como Portugal, aderiram a esta Convenção Internacional.

O reconhecimento do ato notarial estrangeiro está com efeito, previsto na Convenção de Haia, de 5-10-61, aprovada por ratificação do DL n.º 48.450 de 24 de Junho de 1968, exigindo-se-lhe – art. 3º e 4º - a oposição da apostilha passada pela autoridade competente do Estado donde emana o documento.

De acordo com o Artigo 2.º do Despacho n.º ...09, de 14 de Agosto - REGULAMENTO DO SERVIÇO DE APOSTILA, (versão atualizada):

1 - A apostila é a formalidade pela qual uma autoridade competente do Estado Português reconhece a assinatura, a qualidade em que o signatário do ato público atuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do ato público.

2 - A apostila atesta apenas a autenticidade da assinatura, a qualidade em que o signatário do ato atuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do ato.

Apesar de não ter sido aposta a Apostilha nos documentos que o Requerente juntou aos autos, tal não tem como consequência a sua inadmissibilidade, como defendem as Apeladas.

Também não significa que tais documentos não sejam idóneos a produzir prova.

A Apostilha confere apenas a autenticação do documento. O art. 365º do Código Civil determina:

“1. Os documentos autênticos ou particulares passados em país estrangeiro, na conformidade da respetiva lei, fazem prova como o fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal.

2. Se o documento não estiver legalizado, nos termos da lei processual, e houver dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento, pode ser exigida a sua legalização.”

Por sua vez, o 440º do CPC estabelece que:

“Legalização dos documentos passados em país estrangeiro

1 - Sem prejuízo do que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os documentos autênticos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, consideram-se legalizados desde que a assinatura do funcionário público esteja reconhecida por agente diplomático ou consular português no Estado respetivo e a assinatura deste agente esteja autenticada com o selo branco consular respetivo.

2 - Se os documentos particulares lavrados fora de Portugal estiverem legalizados por funcionário público estrangeiro, a legalização carece de valor enquanto se não obtiverem os reconhecimentos exigidos no número anterior.”

A este respeito escrevem José Lebre de Freitas, A. Montalvão e Rui Pinto: “A legalização não é indispensável para que o documento passado em país estrangeiro faça prova em Portugal.

O art. 365º do CC confere a tal documento, seja autêntico seja particular, desde que elaborado em conformidade com a lex loci, a mesma força probatória que têm os documentos da mesma natureza elaborados em Portugal; e só se houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade, ou da autenticidade do reconhecimento, é que pode ser exigida a sua legalização nos termos do art. 540º”.A legalização não é indispensável para que um documento passado em país estrangeiro faça prova em Portugal. Desde que seja elaborado de acordo com a lex loci, o documento reveste a mesma força probatória que detém os documentos da mesma natureza elaborados em Portugal, só tendo de exigir a respetiva legalização se houver fundadas dúvidas sobre a sua autenticidade ou da autenticidade do seu reconhecimento”.

No caso em apreço, as Apeladas limitam-se a impugnar genericamente os documentos, sendo que, a nosso ver os mesmos não suscitam dúvidas fundadas quanto á sua autenticidade.

Assim podem e devem ser analisados no contexto probatório.

Isto posto, resta analisar a prova produzida. [...]

Considerando que a prova testemunhal produzida não se mostrou relevante para a prova da identidade do Apelante, que saiu muito novo de Portugal, não sendo por isso reconhecível pelas pessoas com quem privou em criança e adolescente e tendo por naturais as imprecisões do seu depoimento atento o tempo decorrido, a impossibilidade de realização de exame de DNA, por recusa injustificada das Requeridas, a prova documental mostra-se a nosso ver agora suficiente para podermos concluir que o Apelante é o ausente, cuja morte foi declarada por presunção.

Em consequência, determina-se a procedência parcial da impugnação da matéria de facto efetuada pelo Apelante, alterando-se a resposta dada ao facto 3 da sentença, do elenco dos factos não provados que passa a ser provado.

Acrescenta-se assim ao elenco dos factos provados o seguinte facto: 10. O requerente é o ausente”.

Antes de responder à questão, cumpre observar que o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece, em regra, de matéria de direito. No que toca à matéria de facto, os poderes do Supremo Tribunal de Justiça sofrem, com efeito, muitas limitações: apenas é admissível ao Supremo conhecer da decisão sobre a matéria de facto a título residual, com o propósito de garantir a observância das regras de Direito probatório material ou de ampliar a decisão sobre a matéria de facto, conforme resulta das disposições do n.º 3 do artigo 674.º e do n.º 3 do artigo 682.º do CPC [---]

Mais precisamente, e como se diz no primeiro destes dispositivos, “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais não pode ser objecto de recurso de revista”, só podendo o Supremo Tribunal de Justiça alterar a decisão proferida pelo tribunal recorrido no respeitante à matéria de facto quando, nessa fixação, tenha havido “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”.

Quer isto dizer, por outras palavras, que o Supremo Tribunal só pode intervir quando tenha sido dado como provado determinado facto sem que tenha sido produzido o meio de prova de que determinada disposição legal faz depender a sua existência, quando tenha sido dado como provado determinado facto por ter sido atribuído a determinado meio de prova uma força probatória que a lei não lhe reconhece ou quando tenha sido dado como não provado determinado facto por não ter sido atribuído a determinado meio de prova a força probatória que a lei lhe confere [---]

É entendimento corrente que, além disto, o Supremo Tribunal de Justiça tem ainda a possibilidade de apreciar o uso que o Tribunal da Relação faz dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC, sendo o “mau uso” [Partilha-se a expressão usada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.07.2015, Proc. 284040/11.0YIPRT.G1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).] (uso indevido, insuficiente ou excessivo) susceptível de configurar violação da lei de processo e, portanto, de constituir fundamento do recurso de revista, nos termos do artigo 674º, nº 1, al. b), do CPC [Sobre isto cfr., entre muitos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2016, Proc. 907/13.5TBPTG.E1.S1, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2019, Proc. 156/16.0T8BCL.G1.S2, relatado pela presente relatora.].

Nada disto significa – insiste-se – que o Supremo Tribunal esteja autorizado a controlar a decisão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto ou a “imiscuir-se” na valoração da prova feita pelo Tribunal recorrido segundo o critério da sua livre e prudente convicção. Estas são actividades que estão e permanecem interditos a este Supremo Tribunal [---]

Posto isto, volte-se à questão.

O que está em causa é saber se o Tribunal podia ter atribuído o valor que atribuiu aos documentos ou se, pelo contrário, ao fazê-lo, incorreu como as recorrentes alegam, em violação de alguma norma legal, nomeadamente dos artigos 374.º e 376.º do CC e do artigo 445.º do CPC. Recorde-se que foi na sequência da junção daqueles documentos que o Tribunal recorrido alterou a decisão sobre a matéria de facto ou, mais precisamente, aditou à factualidade provada o novo facto 10.

A disposição fundamental sobre os documentos passados em país estrageiro está contida no artigo 365.º, n.º 1, do CC, com o teor seguinte:

1. Os documentos autênticos ou particulares passados em país estrangeiro, na conformidade da respectiva lei, fazem prova como o fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal.

2. Se o documento não estiver legalizado, nos termos da lei processual, e houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento, pode ser exigida a sua legalização”.

Comentando esta norma, dizem Pires de Lima e Antunes Varela:

A obrigatoriedade da legalização dos documentos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, foi, em princípio, abolida. Os tribunais, como quaisquer repartições públicas, devem, pois, atribuir a esses documentos todo o seu valor probatório, independentemente de legalização. Esta, porém, pode tornar-se obrigatória, se vierem a suscitar-se dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento (…)”.

O artigo 365.º do CC remete, de forma implícita, para o artigo 440.º do CPC, sobre legalização de documentos passados em país estrangeiro, onde se diz:

1 - Sem prejuízo do que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais [---] os documentos autênticos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, consideram-se legalizados desde que a assinatura do funcionário público esteja reconhecida por agente diplomático ou consular português no Estado respetivo e a assinatura deste agente esteja autenticada com o selo branco consular respetivo.

2 - Se os documentos particulares lavrados fora de Portugal estiverem legalizados por funcionário público estrangeiro, a legalização carece de valor enquanto se não obtiverem os reconhecimentos exigidos no número anterior”. [...]

É ponto assente que os documentos não se encontram legalizados. Mas, como se explicou de forma clara no Acórdão recorrido, o facto de os documentos não se encontrarem legalizados, nos termos do artigo 440.º do CPC, não significa que eles sejam destituídos de força probatória.

Como também se afirmou no Acórdão recorrido, o facto de as requeridas / ora recorrentes contestarem de forma genérica o valor dos documentos não cria, sem mais, uma situação de fundadas dúvidas quanto à sua autenticidade de forma a que se torne exigível a sua legalização, nem tão-pouco impede o Tribunal de lhes atribuir valor probatório.

A alegada impugnação da genuinidade dos documentos por parte das requeridas, contida nas suas contra-alegações de apelação, residiu, essencialmente, no seguinte:

RRR) (…) nos termos do previsto no número 2, do artigo 444º, do Código de Processo Civil, por se tratarem de documentos particulares e constituir este um momento admissível, as recorridas impugnam os documentos juntos pelo recorrente, na sua alegação, com os números 1 e 2.

SSS) Desta forma, nos termos do previsto no artigo 374º, do Código Civil impugna-se a letra e assinatura dos documentos em questão, e a exatidão da reprodução mecânica daqueles dessa forma apresentados, bem como o teor de todos eles bem como o alcance que se pretende extrair dos seus conteúdos”.

Apesar de nestas alegações se reproduzirem os termos do n.º 1 do artigo 444.º do CPC – ou, porventura, por isso mesmo –, elas não tiveram a virtualidade de criar no Tribunal fundadas dúvidas sobre a autenticidade do documento.

Relativamente ao valor ou significado que o Tribunal recorrido atribui aos documentos, deve recordar-se que, no âmbito da decisão sobre a matéria de facto, vigoram as seguintes regras: quanto aos factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, o juiz está sujeito a essa prova vinculada; quanto aos demais factos necessitados de prova, vigora o princípio da livre apreciação do juiz das restantes provas legalmente admissíveis (cfr. artigos 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC), sem prejuízo da relevância dos factos que não carecem de alegação ou de prova (cfr. artigo 412.º do CPC).

Note-se que a prova por documentos sem valor probatório pleno é um dos casos de prova não vinculada, ou seja, sujeita à livre apreciação do juiz. [---]

Significa isto, por outras palavras, que o problema do ónus da prova, no seu segundo momento, se põe apenas quando se verifique falta ou insuficiência de prova.

Sucede que, como se viu, o Tribunal recorrido deu como demonstrada a veracidade do documento, independentemente da prova do requerido.

Chegados aqui, resta concluir que o Tribunal recorrido procedeu à avaliação dos meios de prova sujeitos à sua livre apreciação e decidiu em atenção à prova produzida, na sua globalidade [---].

Segundo o princípio da livre apreciação das provas, “o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas. O que decide é a verdade material e não a verdade formal [Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, [Coimbra, Coimbra Editora, 1979,], p. 384.].

A convicção atingida através destes meios de prova pelo Tribunal não é, justificadamente, objecto de sindicância, a não ser quando ocorra a violação de normas legais no que a estas provas respeita, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, do CPC, em particular, no caso de recurso de revista, do artigo 674.º, n.º 3, do CPC.

O Supremo Tribunal de Justiça não pode nem deve, assim, intervir neste conspecto."

[MTS]