Acidente de viação; indemnização;
excepção de caso julgado*
1. O sumário de RG 15/6/2023 (6685/22.0T8BRG.G1) é o seguinte:
I - O lesado não tem legitimidade para pedir, numa ação por si interposta, indemnização pelos danos sofridos (perda de salários) pela mulher para lhe prestar assistência na sequência de acidente de viação.
II - O caso julgado visa garantir, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica, destinando-se a evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, venha a contrariar na decisão posterior o sentido de decisão anterior, pretendendo assim obstar a decisões concretamente incompatíveis, que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas.
III - Porque as ações indemnizatórias decorrentes de acidente de viação têm uma causa de pedir complexa integrada pela culpa/risco e pelos danos, inexiste identidade de causa de pedir e de pedido entre duas ações sobre o mesmo acidente em que os prejuízos alegados e peticionados não são coincidentes.
IV - O lesado não se encontra obrigado a peticionar na primeira ação todos os danos decorrentes do acidente de viação de que foi vítima, pois sobre o autor não incide nenhum ónus de concentração de todas as causas de pedir na ação que proponha, e se o não fizer não preclude o direito de o poder fazer em ação posterior.
V - O que não pode é peticionar em ambas as ações, a anterior (transitada em julgado) e a posterior, indemnização pelos mesmos danos, sob pena de se concluir pela repetição da mesma causa e pela verificação da exceção do caso julgado, impeditiva de nova decisão de mérito.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A Ré veio [...] invocar a exceção de caso julgado em face da decisão, transitada em julgado, proferida no processo n.º 3513/17.1T8GMR no qual o Autor deduziu pedido indemnizatório com base no mesmo acidente de viação em que baseia a sua pretensão indemnizatória nos presentes autos.
Pelo tribunal a quo foi julgada procedente a exceção de caso julgado material relativamente aos pedidos formulados nas alíneas a) e c) por entender que a presente ação é uma repetição da que correu termos sob o n.º 3513/17.1T8GMR.
É contra este entendimento que se insurge o Recorrente salientando que na decisão recorrida se partiu do pressuposto de que a propositura da ação 3513/17.1T8GMR era impeditiva de o Autor, em nova ação, pedir o que ora pediu, com o que não concorda, invocando a decisão proferida no incidente de revisão de incapacidade, a correr por apenso, aos autos do processo 3513/17.1T8GMR onde foi liminarmente indeferida a sua pretensão por se considerar que só por via de nova ação declarativa poderia o lesado alegar e demonstrar a ocorrência de circunstâncias supervenientes determinantes do agravamento da incapacidade fixada por sentença/ acórdão transitada/o em julgado, proferido em processo declarativo comum.
Sustenta ainda que alegou factos supervenientes e juntou documentos que confirmam o agravamento do dano biológico o que, só por si, é capaz de suportar o argumento de que não pode ocorrer a procedência da exceção do caso julgado.
Mais alega que o dano agravado não tinha sido indemnizado na ação anterior e que o Autor ficou a padecer de uma incapacidade permanente total para o exercício de qualquer profissão que antes era parcial e só se refletia na sua atividade de motorista, o que refuta o que ficou determinado na decisão anterior e é motivo, mais do que suficiente, para ser apreciada a presente demanda.
Vejamos então se lhe assiste razão, adiantando desde já que a decisão recorrida não é merecedora da censura que lhe é dirigida pelo Recorrente, mostrando-se a questão da exceção de caso julgado aí tratada de forma correta.
Como é consabido, transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decide do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º, conforme decorre expressamente do disposto no artigo 619º do CPC.
Por força do efeito de caso julgado material a definição dada à relação controvertida não pode ser alterada em qualquer nova ação; esse efeito é ditado “por razões de certeza ou segurança jurídica e de prestígio dos tribunais; a instabilidade jurídica seria verdadeiramente intolerável se não pudesse sequer confiar-se nos direitos que uma sentença reconheceu” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/02/2019, Processo n.º 4043/10.8TBVLG.P1.S1 Relator Pinto de Almeida, disponível em in www.dgsi.pt).
O caso julgado material visa garantir, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica, destinando-se a evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, venha a contrariar na decisão posterior o sentido de decisão anterior. [...]
O caso julgado pretende assim obstar a decisões concretamente incompatíveis, que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas.
O n.º 1 do artigo 580º do CPC esclarece ainda que o caso julgado (à semelhança da litispendência, mas esta pressupõe uma ação ainda em curso) pressupõe a repetição de uma causa e a causa repete-se, conforme preceitua o n.º 1 do artigo 581º, quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
A exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade de caso julgado: pela excepção, visa-se o efeito negativo da admissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; já a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 2.º Volume, p. 325).
Assim, enquanto a excepção do caso julgado torna necessário que se verifique a tríplice identidade (de sujeitos, de causa de pedir e do pedido), já a autoridade do caso julgado pode efectivamente funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade referida, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.
Os efeitos do caso julgado material desdobram-se, por isso, em duas vertentes: o efeito negativo da inadmissibilidade duma 2ª acção ou a proibição de repetição (excepção do caso julgado) e o efeito positivo de decisão anteriormente proferida como pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito ou a proibição de contradição (autoridade do caso julgado) de forma a que o já decidido não pode ser contraditado ou apontado por alguma das partes em acção posterior.
No caso concreto interessa-nos a exceção do caso julgado, a qual torna necessário que se verifique a tríplice identidade: de sujeitos, de causa de pedir e do pedido. [...]
In casu, o Tribunal a quo julgou verificada, em concreto, a tríplice identidade exigida pela exceção do caso julgado e absolveu a Recorrida da instância quanto aos pedidos formulados em a) e c).
Tais pedidos são os seguintes:
“a) Condenar a Ré no pagamento de uma indemnização por responsabilidade civil pelos danos agravados acrescidos ao Autor/Requerente, conforme artigo 680 fixada no valor de € 285.600,00 euros. (…)c) Pelos danos não patrimoniais, o valor de € 35.600,00 euros conforme artigo 720, respetivamente”.
Tal como definido pelo próprio Recorrente na petição inicial, em causa na presente ação está, a atualização do montante indemnizatório que lhe foi já atribuído na ação anterior, por força do agravamento dos danos, pretendendo a revisão dos pontos de incapacidade por se verificar o agravamento da sua incapacidade permanente, e a reapreciação atualizada do seu estado de saúde.
Vejamos então.
No caso concreto não se suscitam quaisquer dúvidas sobre a identidade dos sujeitos: Autor e Ré são os mesmos na presente ação e na ação n.º 3513/17.1T8GMR.
Quanto ao pedido julgamos também não se suscitarem dúvidas sobre a sua identidade.
De facto, a identidade de pedidos não implica que o pedido feito na ação posterior corresponda exatamente ao pedido feito na primeira ação, mas que possa considerar-se que o pedido formulado na segunda ação está contido, incluído ou englobado no pedido formulado e decidido na primeira, que numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
Ora, em ambas as ações, e relativamente aos pedidos em causa, o Autor pretende obter o mesmo efeito jurídico: uma indemnização pelos danos futuros decorrentes do défice funcional permanente, que na presente ação alega ter-se agravado, e uma indemnização pelos danos não patrimoniais dai decorrentes.
E quanto à causa de pedir?
A primeira nota a salientar é que nas ações de responsabilidade civil emergente de acidente de viação estamos perante uma causa de pedir complexa ao pressupor a existência de um facto humano voluntário, ilícito e culposo, que seja produtor de um dano e que entre este e aquele ocorra uma relação de causalidade adequada; a causa de pedir é integrada não só pelo acidente e pela culpa (ou pelo risco), mas também pelos prejuízos, alegados e peticionados.
Nestas ações, em que a causa de pedir é complexa, o mesmo acontecimento histórico pode permitir a existência de mais do que uma ação, entre os mesmos sujeitos, sem que ocorra uma situação de litispendência ou de caso julgado, desde que a causa de pedir e o pedido não sejam coincidentes.
Entendemos, por isso, que, integrando os danos a causa de pedir nestas ações, se não houver coincidência entre os prejuízos alegados e peticionados numa e noutra ação, não existirá a referida tríplice identidade, e não se verificará a exceção do caso julgado.
Por outro lado, a propositura de ação anterior não é impeditiva, por si só e em abstrato, do lesado em nova ação, baseada no mesmo acidente de viação, pedir danos que não tinha peticionado na ação anterior.
O lesado não se encontra obrigado a peticionar na primeira ação todos os danos decorrentes do acidente de viação de que foi vítima, e se o não fizer não preclude o direito de o poder fazer em ação posterior; o que não pode é peticionar em ambas as ações, a anterior e a posterior, indemnização pelos mesmos danos, sob pena de se concluir pela repetição da mesma causa e pela verificação do caso julgado ou da litispendência, consoante tenha já sido ou não proferida sentença transitada em julgado.
Esta posição é acompanhada por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (ob. cit. p. 668), que afirmam também que as ações indemnizatórias decorrentes de acidente de viação têm uma causa de pedir complexa integrada pela culpa/risco e pelos danos, inexistindo, por isso, identidade de causa de pedir e de pedido entre duas ações sobre o mesmo acidente em que os prejuízos alegados e peticionados não são coincidentes, concluindo ainda que, contrariamente ao que ocorre com o réu que deve concentrar todos os meios de defesa na contestação, “[s]obre o autor não incide nenhum ónus de concentração de todas as causas de pedir na ação que proponha” (também neste sentido o Acórdão desta Relação de 04/11/2021, já citado; v. ainda Miguel Teixeira de Sousa, in Preclusão e Caso Julgado, disponível em https://blogippc.blogspot.pt ).
É neste sentido também o entendimento vertido na decisão recorrida onde se conclui que a norma do artigo 566º n.º 2 do Código Civil não obsta a que “os danos que sobrevenham ao momento temporal ali definido sejam exigidos numa nova ação, arrimada no mesmo facto gerador da responsabilidade, pois só assim se respeita a função compensatória da obrigação de indemnizar, consagrada no art. 562, e os princípios que dela se extraem: o princípio da reparação total e o princípio da proibição do enriquecimento que apontam, no dizer de Maria de Lurdes Pereira, Direito da Responsabilidade Civil cit., p. 60, “para a relevância de todas as alterações ou, numa formulação negativa, para a inexistência de um limite temporal do cômputo do dano indemnizável. A solução mantém-se ainda que tais danos, que no referente temporal da indemnização fixada na ação pretérita, ainda não eram presentes, fossem previsíveis, uma vez que sobre o lesado não recai qualquer ónus de pedir a indemnização por danos futuros, ainda que previsíveis. Apenas lhe assiste a faculdade de o fazer.”
Por conseguinte, o que importa determinar é se o Recorrente na ação n.º 3513/17.1T8GMR invocou e peticionou indemnização por todos os danos que sofreu decorrentes do acidente de viação de que foi vítima no dia 30 de abril de 2012, no ..., se não o fez e os vem agora peticionar na presente ação, ou se, pelo contrario, vem pedir uma indemnização relativamente aos mesmos danos.
Ora, na ação n.º 3513/17.1T8GMR, conforme já referimos o Autor peticionou uma indemnização pelos danos futuros decorrentes do défice funcional permanente e uma indemnização pelos danos não patrimoniais, e nesta ação peticiona, de igual modo, uma indemnização pelo dano decorrente do défice funcional permanente que alega ter-se agravado, e uma indemnização pelos danos não patrimoniais.
Não obstante o Autor invocar um agravamento dos danos, a verdade é que está em causa o mesmo dano futuro (previsível) invocado e ressarcido na ação anterior, cuja decisão transitou em julgado após prolação do Acórdão proferido por esta Relação, conferindo à decisão ali proferida o efeito preclusivo do caso julgado material.
Por outro lado, ainda que o Recorrente invoque que estão em causa factos supervenientes demonstrativos de que se agravou o dano biológico, a verdade é que logo na petição inicial alegou, ainda que com alguma ambiguidade como se salienta na decisão recorrida, que o agravamento já se verificava “em bom rigor desde a data fixada como consolidação dos danos, 30/06/2013”, pelo que, conforme afirma o tribunal a quo, “na data do encerramento da discussão na ação n.º 3513/17.1T8GMR (21 de outubro de 2020), aquela agravamento, ainda que porventura não exaurido, já tinha passado do estádio da previsibilidade para o da certeza”, nem sequer estando em causa, pelo menos nessa parte, factos supervenientes.
Acresce dizer, não obstante o Recorrente o omitir, que na ação n.º 3513/17.1T8GMR, já invocara o agravamento no futuro das sequelas decorrentes do acidente que se iriam traduzir num aumento da sua incapacidade permanente geral, o que não logrou provar (veja-se o ponto 18 dos factos aí julgados não provados).
Na referida ação o Recorrente pugnou, e foi objeto do recurso por si interposto, pelo facto de não ser dado como provado que as lesões sofridas pelo Autor estabilizaram em 30/06/2013, não se encontrando sequer estabilizadas, mas agravadas, e de ser dado como provado que está dependente de terceiros para as atividades da vida diária, que as lesões não se consolidaram e que o último relatório médico lhe atribuía uma IPP de 66%.
Ora, no acórdão proferido por esta Relação foi julgado improcedente o recurso do Autor na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto.
Tendo por base a necessária interpretação do conteúdo do acórdão proferido, incluindo os fundamentos que aí se apresentem como pressupostos da decisão temos de concluir que a decisão proferida por esta Relação na ação n.º 3513/17.1T8GMR e que alterou, elevando, os valores indemnizatórios a título de dano patrimonial futuro e danos não patrimoniais, teve por base os factos tal como fixados em 1ª Instância, ou seja, que as lesões haviam já estabilizado em 30/06/2013 e que não ficara provado que as sequelas tivessem agravamento no futuro e nem que fosse ter um aumento da sua incapacidade, o que também já estivera pressuposto na sentença aí proferida.
Conforme já referimos, o Autor não logrou demonstrar na primeira ação que intentou contra a aqui Ré, o agravamento no futuro das sequelas decorrentes do acidente que aí alegara e nem que se iriam traduzir num aumento da sua incapacidade permanente geral.
Permitir que o Autor em nova ação viesse peticionar outra vez uma indemnização pelo mesmo dano, cujo agravamento futuro e aumento da incapacidade não provou na primeira ação, seria, e permita-se-nos a expressão popular, “deixar entrar pela janela aquilo que não se quis deixar entrar pela porta”, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual no que toca aos danos em causa.
A este propósito escreve João António Álvaro Dias (Dano Corporal – Quadro Epistemológico e Aspetos Ressarcitórios, Coleção Teses, Almedina, 2001, p. 330-331, que: “Tudo isto boas razões para se dar como adquirido e certeiro que não é legítima a invocação pura e simples da regra do n.º 2 do art. 567 do Código Civil para, a pretexto duma qualquer interpretação extensiva ou integração analógica, sustentar a apreciação e reparação de novos danos corporais, por via do agravamento, em ação já julgada e transitada. E o mesmo se diga da entidade pagadora (lesante ou seguradora) que não pode invocar a melhoria da vítima, após a fixação da incapacidade permanente, para obter o reembolso em proporção maior ou menor da quantia e capital que haja pago.”
É, pois, acertada a conclusão constante da decisão recorrida de que “os factos que agora se pretendem trazer à discussão – os que evidenciam o agravamento presente dos danos-prejuízo – já foram, afinal, discutidos na ação pretérita. E foram numa dupla dimensão temporal: por um lado, enquanto danos presentes; por outro, enquanto danos que, sendo presentes, previsivelmente sofreriam agravamento no futuro”.
De todo o exposto decorre que deve concluir-se pela verificação da exceção do caso julgado, impeditiva de nova decisão de mérito e determinativa da absolvição da instância relativamente aos pedidos formulados nas alíneas a) e c).
A exceção de caso julgado é uma das exceções dilatórias expressamente elencadas no artigo 577º do CPC, concretamente na alínea i), que obsta a que o tribunal conheça do mérito e dá lugar à absolvição da instância (artigo 576º n.º 2 do CPC), pelo que não merece censura o Tribunal a quo ao ter julgado procedente a excepção de caso julgado e absolvido a Ré da instância."
*3. [Comentário] Não é impossível que sobre o mesmo evento danoso possam ser propostas duas acções, dado que não é impossível que na primeira acção não sejam indemnizados danos que, em relação a essa acção, devam ser considerados supervenientes. Em função dos dados disponíveis, não era essa a situação no caso em análise no acórdão da RG.
MTS
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