Processo de inventário; partilha;
sentença homologatória; título executivo
1. O sumário de RE 11/5/2023 (47/20.0T8NIS.E1) é o seguinte:
I – A execução comum é o meio próprio para o exequente obter coercivamente o preenchimento do respetivo quinhão hereditário.
II – A sentença homologatória da partilha é título executivo, nos termos do artigo 703.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
III – Não constando na sentença homologatória da partilha uma condenação expressa dos interessados a qualquer pagamento, ela há de ser necessariamente complementada com o mapa da partilha, porque é este que corporiza a repartição do acervo hereditário pelos interessados, que será submetida à subsequente homologação, por sentença, pelo juiz, que por esta via «transforma os direitos de cada um dos herdeiros sobre o património indiviso em direitos individualizados sobre bens determinados».
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Invocando que a interessada cabeça-de-casal não cumpriu o acordado no transcrito ponto 1.º da transação que a tal respeito foi homologada por via da sentença constante da ata de 02.11.2021, verba que lhe foi adjudicada na proporção de ½, conforme decorre da ata da conferência de interessados de 07.12.2021, devidamente homologada por sentença, o exequente, com base nas indicadas sentenças, pretende que tem a haver da executada a quantia de 8.000,00€ (sendo 6.000,00€ da quantia depositada na conta, e 2.000,00€ a título de metade das rendas pagas pela arrendatária), acrescida dos respetivos juros de mora vencidos e vincendos, até integral pagamento, valor que pretende obter coercivamente por via da presente execução.
Conclusos os autos, o tribunal a quo, louvando-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.05.2020, (Proc. 3519/18.3T8LOU-A.P1), indeferiu liminarmente o requerimento executivo, nos termos do artigo 726.º, n.º 2, alínea a), por manifesta falta de título executivo, alinhando os seguintes fundamentos:
«Compulsado o título executivo que foi apresentado à presente execução, constata-se que o exequente ofereceu à execução duas sentenças homologatórias prolatadas nos autos principais, a saber no incidente de reclamação à relação de bens, e na partilha do inventário, para obter o pagamento do que refere ser o seu quinhão hereditário por parte da cabeça de casal.Ora, e desde logo, constata-se que o exequente incorre em erro manifesto quando considera que a sentença homologatória da transacção ocorrido no incidente de reclamação à relação de bens constitui título executivo para obter da executada qualquer espécie de pagamento.Efectivamente o incidente de reclamação à relação de bens constitui uma fase introdutória do processo de inventário, por via do qual, se define qual o acervo hereditário, que será subsequentemente alvo de partilha, não tendo qualquer valor extraprocessual.Por outro lado, o pagamento das tornas tem que ser reclamado no próprio processo de inventário – o que o exequente não fez –, e os bens que possam ser vendidos para possibilitar tal pagamento não são os bens próprios do devedor, à escolha do credor, mas os que lhe foram adjudicados na partilha (cfr. artigo 1122.º, n.º 2 do NCPC).Desse modo, a sentença homologatória de partilha só constitui título executivo para pagamento das tornas, caso a venda, no processo de inventário, de todos os bens que preenchem o quinhão hereditário do devedor, não tiverem sido suficientes para as satisfazer integralmente. (…)». [...]
Vejamos.
Em primeiro lugar, a decisão recorrida parte do pressuposto errado que a pretensão do exequente respeita ao pagamento de tornas quando, como aquele refere, «a descrição dos factos no requerimento executivo é inequívoca: (…) para preenchimento do respetivo quinhão, ao exequente assiste o direito de receber da executada as quantias de 6000,00 euros e 2000,00 euros, a título de metade das rendas pagas pela arrendatária dos prédios da herança, conforme transacionado e judicialmente homologado». Portanto, o exequente pretende ver coercivamente satisfeito o valor do seu quinhão hereditário, e não o valor das tornas a que tem direito (e que, aliás, afirma no recurso já ter recebido, como documentado nos autos de inventário).
Não obstante, mesmo que esta fosse a pretensão executiva, ao invés do que se entendeu na decisão recorrida, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a afirmar que o facto de, no processo de inventário ser previsto um procedimento executivo, incidental e simplificado, que atualmente se encontra previsto no n.º 2 do artigo 1122.º do CPC, na redação da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro (e anteriormente se encontrava no n.º 3 do artigo 1378.º do antigo CPC), em nada altera a natureza substantiva do crédito de tornas e da correspondente dívida, e «não preclude a possibilidade de lançar mão da execução comum nem dos meios de conservação da garantia patrimonial» [Cfr. neste sentido e para maior desenvolvimento, Acórdãos STJ de 23.01.2020 (proc.798.18.0T8PNF.P1.S1), e de 14.10.2021 (proc. 23723/19.6T8PRT-A.P1.S1).].
No mais recente aresto do nosso mais Alto Tribunal concluiu-se que «não sendo o crédito de tornas dos exequentes (como não é) uma dívida da herança, mas, sim e apenas, uma dívida dos executados/embargantes, o recurso à execução comum é perfeitamente admissível para lograrem obter a satisfação do remanescente do seu crédito de tornas, sendo que o facto de já terem feito uso, no processo de inventário, do procedimento especial ínsito no nº 3 do art. 1378º do CPC (então vigente) não consubstancia qualquer alteração da natureza do crédito de tornas e da correspondente dívida».
Este entendimento é também expresso por ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE SOUSA [In CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Vol. II, 2.ª edição, ALMEDINA 2022, pág. 648.], ao referirem em anotação ao artigo 1122.º do CPC que a partir do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha «os interessados com direito a tornas podem promover a venda de bens que tenham sido adjudicados ao devedor em situação de incumprimento (nº 2), procedimento que, por razões pragmáticas, pode ser enxertado no próprio processo de inventário se o credor assim o requerer, aplicando-se as normas atinentes à venda executiva (art. 549º, nº 2 do CPC), mas que não obstará a que se sigam as regras gerais».
E se assim é quanto ao crédito de tornas ou seu remanescente, obviamente também será quanto ao preenchimento do respetivo quinhão hereditário, sendo o título executivo a sentença homologatória da partilha, nos termos do artigo 703.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
Trata-se, aliás, de entendimento há muito expresso pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, como ilustra o Apelante com a citação do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.11.1992, no qual se afirmou que se o cabeça-de-casal se recusar a entregar aos interessados os bens que a estes foram adjudicados pela sentença homologatória do mapa da partilha, esta servirá de título executivo para obter essa entrega. Por este meio se forçará o cabeça-de-casal a cumprir as suas obrigações, a realizar o direito (que) aquela sentença definiu por forma definitiva, cessada que está a administração da herança que até aí lhe competia – artigos 2079 do Código Civil e 1382, do CPC – e uma vez que é ele que está na posse dos bens.
Mais recentemente, afirmou-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.05.2017, que a sentença homologatória da partilha proferida em processo de inventário sempre deveria, no que respeita à sua exequibilidade, ser equiparada a uma decisão condenatória proferida em processo comum.
Este é igualmente o entendimento da mais atual doutrina.
Afirmam os citados autores que «o mapa da partilha (art. 1120º), ou da partilha parcial (art. 1112º), associado à sentença homologatória, servirá para (…), se necessário, sustentar o cumprimento coercivo da obrigação de entrega de bens (art. 1096º) ou de pagamento das tornas (art. 1122º, nº 2)» [In Obra citada, pág. 647.]. E mais adiante precisam: «a sentença homologatória (ainda que apenas contenha uma condenação implícita) vale como título executivo para pedir a entrega dos bens contra o herdeiro que esteja na posse dos mesmos (…) e também para que o credor exija o cumprimento coercivo da obrigação pecuniária (artigo 1106º, nº 1)» [In Obra citada, pág. 649]
Neste mesmo sentido, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, CARLOS LOPES DO REGO, ANTÓNIO ABRANTES GERALDES e PEDRO PINHEIRO TORRES [in “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, ALMEDINA, pág. 133.], defendem que “a sentença homologatória da partilha constitui título executivo para a imposição coerciva dos direitos que nela são reconhecidos (art. 703º, nº 1, al. a)). É certo que, em relação a muito do que nela é decidido, não se verifica a condenação expressa de um interessado, mas isso não impede que se possa considerar que a sentença homologatória, ao reconhecer certos direitos contém uma condenação implícita na sua satisfação» (…).
Revertendo estes ensinamentos ao caso em presença, vemos que o exequente juntou a sentença homologatória da partilha e respetivo mapa, e ainda a sentença que homologou o acordo entre os interessados a respeito do âmbito da relação de bens. Ou seja, não foi esta sentença singela que o exequente deu à execução. Apresentou-a juntamente com a sentença homologatória da partilha, sendo o conjunto de ambas, o título executivo em que o exequente funda a sua pretensão.
Com efeito, não constando na sentença homologatória da partilha uma condenação expressa dos interessados a qualquer pagamento, ela há de ser necessariamente complementada com o mapa da partilha, porque é este que corporiza a repartição do acervo hereditário pelos interessados, que será submetida à subsequente homologação, por sentença, pelo juiz.
Na verdade, «o mapa da partilha constitui um documento-síntese que se desdobra em três elementos: enunciação do ativo e do passivo da herança; indicação da quota de cada interessado, tendo por base a forma à partilha anteriormente fixada nos termos do art. 1110º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a); preenchimento dos quinhões de cada interessado com bens ou lotes de bens. Concretiza o que tiver sido decidido ou acordado relativamente aos direitos de cada interessado, com integração não apenas dos ativos patrimoniais, mas também do passivo; corporiza, através de verbas ou de lotes, os bens que a cada um serão atribuídos, de acordo com as avaliações e licitações efetuadas, das dívidas, legados e encargos a considerar e da proporção das quotas de cada interessado» [Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE SOUSA, obra citada, pág. 642.]. Assim, subsequentemente, «a sentença homologatória da partilha transforma os direitos de cada um dos herdeiros sobre o património indiviso em direitos individualizados sobre bens determinados» [Idem, pág. 647.], daí a complementaridade entre ambos.
In casu, para que se possa aquilatar do âmbito da verba n.º 1, o exequente juntou ainda com o requerimento executivo o acordo lavrado em 02.11.2021, onde consta: a) a quantia monetária de € 12.000,00 (Doze mil Euros) depositada na conta bancária melhor identificada no requerimento da Cabeça de Casal de 20 de julho de 2021 com a referência 1865033, sem prejuízo das posteriores quantias monetárias transferidas pela arrendatária dos prédios rústicos, melhor identificada sob a verba 1(um) e 2(dois), em cumprimento do contrato até efectiva partilha.
Tendo este acordo sido homologado por sentença, é com base neste que o exequente deduz a pretensão exequenda na parte respeitante à quantia de 2.000,00€, que corresponde à liquidação que efetua das rendas entregues entretanto pela arrendatária, afirmando que as quantias que correspondem a metade da verba 1 (6000,00 euros + 2000,00 euros), até à data, o recorrente nada recebeu da cabeça-de-casal, sendo que tais quantias se encontram depositadas em conta bancária exclusivamente titulada por esta e, a que somente esta tem acesso (vem identificada no anexo respetivo do requerimento executivo e foi requerida a respetiva penhora).
Conclui-se, portanto, que o despacho de indeferimento liminar da execução não pode subsistir, uma vez que a presente execução constitui meio processual próprio para o interessado obter coercivamente a satisfação do seu crédito decorrente da composição dos quinhões, nos termos acordados, e a sentença homologatória da partilha constitui título executivo que in casu, para além do mapa da partilha, que concretiza o que foi acordado relativamente aos direitos de cada interessado, é ainda complementado com a sentença homologatória da transação ocorrida no incidente de reclamação contra a relação de bens, a respeito da composição da verba n.º 1, a cuja liquidação procedeu.
Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, procede o presente recurso."
[MTS]
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