"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/02/2024

Jurisprudência 2023 (103)


Recurso de revista;
oposição de julgados; questão fundamental de direito


1. O sumário de STJ 16/5/2023 (20104/22.8T8LSB.L1.S1) é o seguinte:

I - Os acórdãos proferidos em procedimentos cautelares não são, em regra, suscetíveis de recurso de revista, como dispõe o art. 370º, n. 2 do CPC.

II - Para efeitos da oposição de acórdãos exigida pelo art.629º, n.1, alínea d) do CPC não basta que se identifiquem dois arestos que proferiram decisões de sentido oposto sobre o mesmo tipo de matéria em procedimentos cautelares. É necessário que essa divergência decorra de um diferente modo de interpretar determinada norma e que as factualidades que basearam as diferentes decisões sejam tipicamente equiparáveis. Se o acórdão fundamento decretou a providência cautelar de arresto por ter entendido que a factualidade provada era suficiente para justificar o “justo receio de perda da garantia”, e o acórdão recorrido entendeu que não se haviam provado factos suficientes para concluir pela existência desse “justo receio”, não existe oposição de acórdãos quanto ao alcance normativo da mesma disposição jurídica, mas apenas diversidade das bases factuais que sustentaram os acórdãos em confronto.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

1.1. Entendeu-se na decisão reclamada que:

«- Procedendo ao confronto entre o acórdão fundamento (respeitante a um caso onde a providência de arresto foi decretada) e o acórdão recorrido (no qual o arresto não foi decretado), constata-se que a razão da divergência decisória não assentou numa diferente interpretação dos pressupostos legais da figura do arresto, previstos no artigo 391º do CPC, ou seja, não assentou numa divergência “sobre a mesma questão fundamental de direito”, mas sim sobre a existência de factualidades distintas.

Os acórdãos em confronto não divergiram sobre o modo de interpretar o “justificado receio de perder a garantia patrimonial” invocado pelos credores em cada um dos casos. O entendimento que ambos os acórdãos revelam sobre os requisitos da figura do arresto não é divergente. Não existe, portanto, qualquer divergência sobre a mesma questão fundamental de direito.

O que divergiu foi a conclusão sobre a suficiência, ou insuficiência, da factualidade alegada e provada para se concluir que aqueles requisitos se encontravam preenchidos.

Efetivamente, no acórdão fundamento deu-se como provado que o imóvel que havia sido objeto do contrato celebrado entre as partes (que se considerou não ser, em rigor, um contrato-promessa, mas sim um acordo prévio), e que havia sido posto à venda, era o único bem imóvel conhecido à devedora [vd. facto provado n.11, referido nesse aresto].

Diversamente, no caso a que respeitam os presentes autos, como expressamente se afirma no acórdão recorrido, não existe prova de que o imóvel prometido vender fosse o único bem do património da devedora, por isso se entendeu não se encontrar demonstrado o justo receio de perda de garantia patrimonial. A recorrente sustenta-se na sua perceção subjetiva de que esse seria o único bem da devedora. Todavia, tal perceção subjetiva não pode ser equiparada à existência de um facto objetivamente demonstrado. O acórdão recorrido entendeu, assim, que o facto de ser o único bem que a recorrente conhece não significa que seja, efetivamente, o único bem da devedora suscetível de garantir o crédito.

Por outro lado, na fundamentação do acórdão recorrido, colhe-se o seguinte entendimento quanto à factualidade alegada pela requerente:

«(…) no requerimento inicial a apelante havia alegado, em termos diversos, o seguinte:

 “53º A requerente teme que, no caso de condenação da requerida, como confiadamente se espera, esta não tenha os meios para pagar o montante que vai ser peticionado.

58º A requerente desconhece qualquer outro bem imóvel que pertença à requerida, ou património que possa responder pela sua dívida.

59º A requerente desconhece a situação pessoal e financeira da requerida, sabendo que esta tem alguma idade, será possivelmente reformada e recebeu o imóvel prometido vender por partilha subsequente a divórcio.”

A apelante assumiu de forma inequívoca o seu desconhecimento em relação ao património da requerida, à sua situação pessoal e financeira, tendo formulado meras conjeturas, configurando um receio subjetivo da apelante

E acrescentou-se, conclusivamente, que:

«Em suma, não foram indicados quaisquer outros factos sobre os quais pudesse vir a recair prova, nomeadamente quanto à situação económico-financeira da requerida que impossibilitaria a satisfação do eventual crédito, assim inviabilizando qualquer juízo, ainda que indiciário, sobre o perigo de subtração do seu património aos credores.

Mais acresce que a requerente não alegou – nem se vislumbra – qualquer dificuldade na obtenção de elementos sobre a situação económica da requerida, a qual reside em Portugal. [...]»

O acórdão recorrido entendeu, portanto, não ser possível concluir pela existência do justo receio de perda da garantia patrimonial, dada a ausência de indicação, no requerimento inicial do procedimento cautelar de arresto, de factos sobre os quais pudesse vir a recair prova.

- Na resposta à notificação a que respeita o art. 655º do CPC, veio a recorrente afirmar que:

«A ser ordenado o prosseguimento da providência cautelar requerida, como confiadamente se espera, é perfeitamente possível que se venha a demonstrar, ainda que indiciariamente, que a requerente, para além do imóvel que prometeu comprar à requerida, “desconhece qualquer outro bem imóvel que pertença à requerida, ou património que possa responder pela sua dívida”, facto em tudo semelhante ao que se deu como indiciariamente assente no acórdão fundamento (…)».

Ora, a pretensão da recorrente traduzir-se-ia numa inversão metodológica, na medida em que a revista teria de ser admitida, determinando-se o prosseguimento dos autos, para posteriormente se fazer prova de factos que, a montante, já deviam ter integrado os pressupostos de admissibilidade da revista.

Para se concluir que existe a oposição de acórdãos que justifica a admissibilidade do recurso de revista com base no art.629º, n.2, alínea d) do CPC essa oposição tem, obviamente, que se verificar no momento em que se procede ao confronto entre acórdão fundamento e acórdão recorrido. Ora, no momento presente, no qual se procede ao juízo de admissibilidade do recurso, essa oposição não se verifica, sendo, portanto, irrelevante se uma hipotética produção de prova poderia conduzir à existência de factualidades equiparáveis entre os acórdãos em confronto. De todo o modo, importa ter presente o que se afirma no acórdão recorrido, sobre a ausência de alegação de factos pela requerente, para além da sua perceção pessoal de que a requerida não teria outros bens além do imóvel prometido vender. E ainda que este facto se encontrasse provado, sempre existiria uma significativa diferença entre o relevo normativo a atribuir ao facto de não ser conhecido (em termos objetivos) qualquer outro bem à devedora (como no acórdão fundamento) ou a requerente não ter conhecimento (em termos pessoais ou subjetivos) de que existissem outros bens.

 - Em suma, constata-se, portanto, que entre os acórdãos em confronto não existe qualquer divergência quanto ao modo de interpretação dos pressupostos da figura do arresto, que justifique a intervenção do STJ no sentido de orientar a jurisprudência, pois não existe divergência sobre uma “questão fundamental de direito”. Existem apenas dois acórdãos que se pronunciaram sobre factualidades distintas e, por isso, não equiparáveis para efeitos de divergência normativa.

Deste modo, o recurso de revista não será admissível, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos cumulativos exigidos pela alínea d) do n.2 do art.629º do CPC.»

*

1.2. Na sua reclamação para a Conferência, a recorrente insiste em afirmar o seu convencimento de que os acórdãos em confronto decidiram a mesma questão jurídica, ou seja, a questão de saber o que deve entender-se por justificado receio de perda da garantia, para efeitos do art. 391º e seguintes do CPC.

Todavia, não lhe assiste razão. Tal como se entendeu na decisão reclamada, não se pode concluir que entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento exista alguma divergência frontal quanto ao modo de decidir uma determinada questão jurídica, encontrando-se essa decisão em sintonia com o que tem sido entendido pela doutrina e jurisprudência sobre o modo de aferir a contradição jurisprudencial relevante para efeitos do art.629º, n.2, alínea d) do CPC.

Como afirma Abrantes Geraldes [em anotação à alínea d) do n.2 do art.629º]: «O apuramento e o relevo da “contradição jurisprudencial” obedecerão a critérios semelhantes aos que se referiram quanto à previsão da al. c) do n.2 do art.629º ou aos que são utilizados para efeitos da admissibilidade da revista excecional (art.672º, n.2, al.c)) ou do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência (art.688º, n.1).» [Recursos no Novo Código de Processo Civil (4ª edição), página 56].

Por outro lado, como se entendeu no Acórdão do STJ, de 11.11.2014 (relator Abrantes Geraldes), no processo n. 542/14.0YLSB.L1.S1:

«Nos procedimentos cautelares, a admissibilidade do recurso de revista está condicionada pela verificação de alguma das excepções previstas no art. 629º, nº 2, do NCPC.

Ao abrigo da previsão da al. d) do referido normativo, apenas releva a verificação de uma contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão da Relação relativamente a uma questão de direito que se tenha revelado verdadeiramente decisiva para os resultados declarados em qualquer dos acórdãos

À luz desta doutrina e jurisprudência, facilmente se concluiu que, tendo os acórdãos em confronto analisado a questão de saber se existia, ou não, “justificado receio de perda da garantia”, para efeitos de arresto de bens dos devedores, nos termos do artigo 391º e seguintes do CPC, os respetivos sentidos decisórios não assentaram em entendimentos divergentes quanto ao alcance normativo dessas disposições, mas sim na suficiência ou insuficiência da factualidade provada em cada um dos casos."

[MTS]

Nota de actualização: procedeu-se à emenda do número do processo.