"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/02/2024

Jurisprudência 2023 (111)


Abuso de direito;
tu quoque


1. O sumário de RL 30/5/2023 (84365/20.6YIPRT.L1-7) é o seguinte:

I. A introdução de factos complementares, decorrentes da instrução da causa (Artigo 5º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil ), só é possível no decurso do julgamento em primeira instância, mediante iniciativa da parte ou oficiosamente, sendo que, neste último caso, cabe ao juiz anunciar às partes que está a equacionar utilizar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto, sob pena de proferir uma decisão-surpresa.

II. Não tendo a apelante desencadeado tal mecanismo de ampliação fáctica nem tendo o mesmo sido utilizado oficiosamente pelo tribunal de primeira instância, está precludida a ampliação da matéria de facto com tal fundamento em sede de apelação porquanto o conteúdo da decisão seria excessivo por envolver a consideração de factos essenciais complementares ou concretizadores fora das condições previstas no art.º 5º.

III. Num contexto em que a empresa administradora do condomínio praticou graves irregularidades (v.g., levantamento de quantias em numerário no montante total de 16.990€; realização de quotização extraordinária para realização de obras, não tendo tais obras sido realizadas; pagamentos em numerário sem emissão de recibos pelo fornecedor; omissão de pagamento a fornecedor de € 18.114), a reclamação pela empresa administradora do pagamento das faturas de prestação de serviços correspondente aos últimos meses de contrato (€ 4.797), neste específico contexto contratual, deverá ser paralisada pelo instituto do abuso de direito na modalidade de tu quoque.


2. Na fundamemntação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Resulta da matéria de facto provada que, em 27.9.2011, a autora e o Réu celeberam um contrato de prestação de serviços de gestão de condomínio. Trata-se de um contrato de prestação de serviços, ao qual se aplicam as disposições dos Artigos 1154º e 1156º do Código Civil, aplicando-se subsidiariamente o regime do mandato.

Em função da matéria de facto que persiste provada, a Autora reclama o pagamento de três faturas de junho a agosto de 2019 atinentes a honorários da gestão do condomínio.

O contrato de prestação de serviços só cessou em 3.9.2019 (cf. facto 4), razão pela qual, em princípio, o pagamento dos honorários seria devido.

Está provado que o Réu não procedeu ao pagamento de tais faturas em virtude de se considerar lesado em montante muito superior.

E, de facto, resulta da matéria de facto provada sob 3 e e 5 que, durante a prestação do seu serviço ao Réu, a Autora incorreu na prática de inúmeras irregularidades que prejudicaram o Réu, adotando más práticas de administração que passaram:

§ Pelo levantamento de quantias em numerário, no montante total de 16.990€, sem apresentar justificação documental para o efeito;
§ Pela realização de uma quotização extraordinária, para realização de obras para reparação e substituição das portas de acesso e vãos adjacentes da entrada e substituição do videoporteiro de algumas fracções, não tendo tais obras sido realizadas;
§ Por pagamentos em numerário, em montantes não concretamente apurados, sem que tenha ocorrido a correspondente emissão de recibos pelo fornecedor;
§ Pela omissão de pagamento ao fornecedor Tyssen, responsável pela manutenção dos elevadores do condomínio, entre Novembro de 2016 e Junho de 2019, no valor total de 18.114€.

Afigura-se-nos que a reclamação pela Autora do pagamento das faturas de prestação de serviços, neste específico contexto contratual, deverá ser paralisada pelo instituto do abuso de direito, na modalidade de tu quoque.

Nos termos do Art.º 334º do Código Civil, «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.»

O abuso de direito é de conhecimento oficioso, devendo o tribunal apreciá-lo enquanto obstáculo legal ao exercício do direito, quando, face às circunstâncias do caso, concluir que o seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.12.2022, Aguiar Pereira, 8281/17).

«O abuso do direito, nas suas múltiplas manifestações, é um instituto puramente objetivo. Quer isto dizer que ele não depende de culpa do agente nem, sequer, de qualquer específico elemento subjetivo. Evidentemente: a presença ou a ausência de tais elementos poderão, depois, contribuir para a definição das consequências do abuso» (Menezes Cordeiro, “Do abuso de direito: Estado das questões e perspetivas”, in ROA, 2005, Vol. II, 20.III., acessível no portal da Ordem dos Advogados). [...]

No caso em apreço, entendemos que a modalidade de abuso de direito que ocorre é o tu quoque.

Ensina Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo I, 1999, Almedina, p. 209, que «A ideia básica reside no seguinte: aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partido da violação exigindo a outrem, o acatamento de consequências daí resultantes: turpitudinem suam allegans non auditur. Caso o pretendesse fazê-lo, a sua atuação seria detida pela exceção tu quoque.» Há que exigir um nexo muito estrito entre a situação violada pelo abusador e aquela de que este se pretende prevalecer. Refere-se a este propósito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2011, Silva Gonçalves, 2018/07, que «a fórmula tu quoque traduz, com generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído; está em jogo um vetor axiológico intuitivo, expresso em brocardos como ”turpitudinem suam allegans non auditur” [ninguém, alegando a sua própria torpeza, deve ser ouvido] ou “equity must come with clean hands” ». Numa outra formulação, ocorre abuso de direito na modalidade tu quoque quando alguém desrespeita um contrato e vem depois exigir à outra parte o seu cumprimento – cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6.10.94, Silva Pereira, 0077262

É esse precisamente o caso em apreço.

Consoante se viu supra, a Autora incorreu em incumprimento, grave e reiterado, do contrato de prestação de serviços, adotando comportamentos que manifestamente contrariam os propósitos subjacentes à celebração do contrato, causando prejuízos relevantes ao réu Condomínio. Num contexto desta índole, e não estando o réu ressarcido dos prejuízos causados por tais atuações, integra abuso de direito a conduta da autora de vir exigir o pagamento de mensalidades do contrato de prestação de serviços em causa, como se a autora tivesse cumprido o mesmo sem sobressaltos.

A consequência que mais se adequa a este abuso de direito é a paralisação da pretensão da autora, julgando-se a ação improcedente."

[MTS]