Acção de simples apreciação;
interesse processual
1. O sumário de RL 1/6/2023 (3531/21.5T8FNC.L1-2) é o seguinte:
I) Na medida em que o interesse processual delimita o perímetro do correto exercício do direito de ação, ele deverá ser analisado à luz dos princípios constitucionais do acesso ao Direito e à Justiça, de modo a que não vede o acesso necessário ou útil, nem permita o acesso inútil.
II) O interesse processual define-se como o interesse da parte ativa em obter a tutela judicial de um direito subjetivo através de um determinado meio processual, desdobrando-se num interesse em demandar, que se afere pelas vantagens decorrentes dessa tutela e avalia-se pelas desvantagens impostas ao réu pela atribuição daquela tutela à contraparte.
III) A necessidade ou carência de tutela judicial, que conforma o interesse processual, deve ser aquilatada à data em que a ação é proposta, por referência ao objeto processual definido pelo autor na sua petição inicial.
IV) A questão carecida de tutela judicial terá de ser séria ou justificada e atual, devendo o interesse em agir ser aferido, objetivamente, pela posição alegada pelo autor que tem de demonstrar a necessidade do recurso a juízo como forma de defender um seu direito.
V) A incerteza do demandante deve ser objetiva (devendo resultar de comportamentos inequívocos e contemporâneos do demandado, incompatíveis com a subsistência prática da posição jurídica em causa, que se alega estar perigada, não bastando a dúvida subjetiva do demandante ou o seu interesse puramente académico em ver definido o caso pelos tribunais) e séria (no sentido de ser prejudicial para os interesses do autor, comprometendo o valor da relação jurídica, a sua negociabilidade ou a sua livre fruição, devendo tal prejuízo ser atual e não meramente potencial).
VI) Nas ações de simples apreciação, o interesse processual prende-se com um estado de objetiva incerteza acerca da existência de dada relação jurídica e do exato conteúdo dos direitos e das obrigações que dela emergem, que acarrete um prejuízo concreto e atual para o demandante, de forma a que a remoção do referido estado de incerteza constitua um resultado útil, juridicamente relevante e impossível de ser atingido sem a intervenção do juiz.
VII) Alegando o autor, Caixa Geral de Aposentações, ter recebido informação através da Segurança Social, de que a ré vive em união de facto com outra pessoa, o que a ré veio a negar, subsiste uma dúvida séria e atual sobre se a ré vive, ou não, em união de facto com outrem, fundando-se, nessa dúvida, o interesse processual (em agir) do autor, com respaldo normativo, na previsão contida no artigo 47.º, n.º 1, al. a) do Estatuto das Pensões de Sobrevivência (preceito segundo o qual, a qualidade de pensionista se extingue, dentre outras circunstâncias, se se verificar uma situação de união de facto, conceito a que se reporta o n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio), tudo justificando a instauração da presente ação de simples apreciação positiva, com vista a definir tal situação.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Estatui o artigo 2.º, n.º 2, do CPC que, “a todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação”.
Trata-se do denominado princípio da “correspondência” (ou da adequação) entre o direito a ação (assim, Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil; Vol. II, 2015, Almedina, p. 16).
Esta adequação também se exprime em função da necessidade ou utilidade da tutela jurídica.
De facto, os tribunais não poderem ser chamados a dirimir litígios meramente hipotéticos, pois, o demandante apenas poderá obter tutela de direitos efetivamente existentes, não perspetivados como meramente eventuais, embora se admitam ações de simples apreciação que tenham por objeto direitos sujeitos a uma condição suspensiva ainda não verificada.
Nessa linha, estabelece o n.º 2 do artigo 30.º do CPC que, “o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha”.
Conforme refere Miguel Teixeira de Sousa (As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa; Lex, Lisboa, 1995, pp. 107-108), exprime que este preceito – referindo-se o autor ao correspondente e precedente artigo 26.º do CPC anterior – contém uma previsão de interesse em agir ou processual, pressuposto processual autónomo da legitimidade (previsto no n.º 3), mas com o qual mantém alguma relação: “o interesse processual é aferido relativamente à parte à qual é concedida a faculdade de propor ou de contestar uma determinada acção, isto é, à parte com legitimidade activa ou passiva para essa acção”.
O interesse processual define-se como “o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de um direito subjectivo através de um determinado meio processual”, desdobrando-se num “interesse em demandar” que se afere “pelas vantagens decorrentes dessa tutela” e avalia-se pelas desvantagens impostas ao réu pela atribuição daquela tutela à contraparte” (assim, Miguel Teixeira de Sousa; O Interesse Processual na Acção Declarativa, Lisboa, 1989, p. 6).
Nas palavras de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil; Coimbra Editora, 1993, pp. 79-80), o interesse processual (ou interesse em agir) “[c]onsiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece”.
“Tal requisito costuma justifica-se por duas ordens de razões:
- uma de interesse público: só quando um direito substantivo estiver carecido de tutela dos tribunais se justifica lançar mão de um processo judicial, pois de outro modo ia-se sobrecarregar, a já muito sobrecarregada, actividade dos tribunais, sem qualquer efeito útil;- outra de interesse particular: se sem um interesse justificado fosse possível lançar mão de um processo ia-se inutilmente impor a quem quer que fosse demandado o encargo de suportar todos os incómodos resultantes de um processo judicial, nomeadamente, o de ter de se defender.
Uma demanda inútil não aproveita a nenhum das partes e vai dar desnecessariamente trabalho a um órgão estadual que, por mero capricho, é posto em movimento (…)” (assim, Fernando B. Ferreira Pinto; Lições de Direito Processual Civil; Elcla Editora, 1997, pp. 120-121).
A necessidade de tutela judicial, que conforma o interesse processual, deve ser aquilatada à data em que a ação é proposta, por referência ao objeto processual definido pelo autor na sua petição inicial.
Conforme explica Daniel Bessa de Melo (“O interesse em agir no processo cível. Em especial, nas ações de simples apreciação”, in Julgar on line, dezembro de 2021, p. 23): “a questão submetida à apreciação dos tribunais terá de ser, necessariamente, séria e atual; o próprio thema decidendum haverá de espelhar um litígio contemporâneo, real e tangível entre demandante e demandando, não uma mera querela de opiniões e sensibilidades pessoais nem muito menos ancorar-se numa simples previsão de uma altercação, à qual se vise antecipadamente dar solução”.
Por outra parte, “o interesse em agir deve ser aferido, objetivamente, pela posição alegada pelo autor que tem de demonstrar a necessidade do recurso a juízo como forma de defender um seu direito” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-11-2009, Pº 6161/05.5TVLSB.L1-8, rel. FERREIRA DE ALMEIDA).
Conforme dá nota Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado; Vol. I, Almedina, 2018, p. 121) “a falta de utilidade da ação apenas merece por parte do sistema processual uma consequência processual autónoma quando não seja consumida (à semelhança, aliás, da ilegitimidade material) por outros mecanismos processuais”, tendo uma relevância normativa casuística.
O pano de fundo da falta de interesse processual é o autor usar o direito de ação sem que o réu tenha dado causa, logo, sem necessidade de acesso aos tribunais.
A função do interesse processual é a de evitar, antecipadamente, ou de cominar, a posteriori, que os tribunais sejam usados sem necessidade: “se o exercício sem causa do direito de ação não é lícito pode ser desestimulado” (assim, Rui Pinto; Código de Processo Civil Anotado; Vol. I, Almedina, 2018, p. 129).
De facto, o interesse processual traduz a necessidade de usar o processo, exprimindo “a necessidade ou a situação objectiva de carência de tutela judiciária por parte do autor, face à pretensão que deduz, ou do réu, à luz do pedido reconvencional que tenha oportunamente formulado. Esta situação de carência tem, de facto, de ser real, justificada e razoável. (…) Essa situação de carência de tutela exprime-se na concreta utilidade da concessão dessa mesma tutela judiciária para a parte que formula a pretensão” (assim, J. P. Remédio Marques; Acção Declarativa à Luz do Código Revisto; 2.ª ed., Coimbra Editora, 2009, p. 393).
Mas, não basta uma qualquer necessidade. O interesse em agir determina a existência de uma necessidade justificada, razoável e fundada de lançar mão de um processo ou de fazer prosseguir uma ação.
“A incerteza deve ser objectiva e grave. Não basta a dúvida subjectiva do demandante ou o seu interesse puramente académico em ver definido o caso pelos tribunais. Importa que a incerteza resulte de um facto exterior; que seja capaz de trazer um sério prejuízo ao demandante, impedindo-o de tirar do seu direito a plenitude das vantagens que ele comportaria (…). O facto exterior pode ser a negação dum direito do demandante (…) ou a afirmação de um direito (…) contra ele, mesmo que negação ou afirmação apenas verbal (diffamatio ou jactatio). Pode traduzir-se ainda, por ex., em actos do adversário tendentes a fazer valer a sua pretensão (…); na negação de uma autoridade pública (ou até dum tribunal) a reconhecer para qualquer efeito a posição jurídica do demandante; na existência dum documento falso ou de um contrato simulado ou inválido por outro motivo. Por outro lado, a incerteza – costuma acentuar-se – não deve estar em condições de o Autor poder dirimi-la solicitando uma providência judiciária de efeito mais enérgico” (assim, Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Ed., Coimbra, Reimp., 1993, pp. 81-82).
A incerteza será objetiva quando “brota de factos exteriores, de circunstâncias externas, e não apenas da mente ou dos serviços internos do autor. As circunstâncias exteriores geradoras da incerteza podem ser da mais variada natureza, desde a afirmação ou negação dum facto, o acto material de contestação de um direito, a existência dum documento falso até a um acto jurídico (…)” (assim, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora; Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 186-187).
A objetividade da incerteza deverá resultar de comportamentos inequívocos e contemporâneos do demandado incompatíveis com a subsistência prática da posição jurídica em causa, que se alega estar perigada.
“Não será suficiente, para o efeito, a mera dúvida ou incerteza subjetiva do autor, que assim lança mão da tutela declarativa com vista a um “descargo de consciência”, ou um singelo auspício de que outrem contesta o seu direito, quer na sua existência, quer no seu conteúdo, sem qualquer aparente respaldo na realidade; como se lê num aresto, “não basta a mera previsibilidade de uma actuação material desfavorável aos interesses dos Autores ou a mera previsibilidade de um acto lesivo (…)” (cfr., Daniel Bessa de Melo; “O interesse em agir no processo cível. Em especial, nas ações de simples apreciação”, in Julgar on line, dezembro de 2021, p. 36).
Deverá, assim, o autor alegar uma certa materialidade praticada por terceiros inconciliável com o direito cuja titularidade ele arroga, no qual se baseará o seu interesse no suprimento do estado de incerteza, não bastando alegar qualquer situação subjectiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito, “havendo o estado de incerteza de ancorar-se em factos do mundo exterior aptos a suscitar a qualquer sujeito medianamente razoável uma relutância acerca da titularidade ou conteúdo de determinada relação jurídica” (assim, Daniel Bessa de Melo; “O interesse em agir no processo cível. Em especial, nas ações de simples apreciação”, in Julgar on line, dezembro de 2021, p. 38).
Por seu turno, a gravidade da dúvida ou incerteza “mediar-se-á pelo prejuízo (material ou moral) que a situação de incerteza possa criar ao autor” (cfr., Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora; Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 186).
Ou seja: O referido estado de incerteza deverá ser prejudicial para os interesses do autor, no sentido de comprometer o valor da relação jurídica, a sua negociabilidade ou a sua livre fruição, no sentido de que, a indefinição de uma situação jurídica, cuja clarificação pode ter repercussões prejudiciais para uma parte, permite a esta a propositura da ação (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07-11-2019, Pº 935/18.4T8PTG-1.E1, rel. PAULO AMARAL). Tal prejuízo deverá ser atual e não meramente potencial, embora não seja necessário que, ao tempo da propositura da ação, o prejuízo já se tenha concretizado em toda a sua extensão.
Conforme salienta J. P. Remédio Marques (Acção Declarativa à Luz do Código Revisto; 2.ª ed., Coimbra Editora, 2009, p 394), “[e]ste pressuposto processual assume especial relevo nas acções de simples apreciação. É que, nestas acções, a situação de incerteza quando à afirmação ou à negação do direito ou do facto por parte do réu tem que ser uma situação de incerteza objectiva – que brote de factos exteriores, de circunstâncias externas e não apenas da mente do autor – e, sobretudo, de incerteza grave, que não se traduza num mero capricho. E será grave essa incerteza se for considerável o prejuízo material ou extrapatrimonial causado pela manutenção dessa incerteza”.
As acções de simples apreciação são aquelas que se destinam a definir uma situação tornada incerta.
Nestas acções, “o autor visa apenas obter a simples declaração (munida da força especial que compete às acções judiciais) da existência ou inexistência dum direito (próprio ou de outrem, respectivamente) ou dum facto jurídico. No 1º caso, dizem-se de simples apreciação (ou mera declaração) positiva; no 2º caso, de simples apreciação negativa (…)” (assim, Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Ed., Coimbra, Reimp., 1993, p. 6; em igual sentido; Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora; Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 186).
O interesse em agir nas ações de simples apreciação tem lugar quando se verifica um estado de incerteza sobre a existência ou inexistência do direito a apreciar (cfr., Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil; Coimbra Editora, 1993, p. 81).
“Nas acções de simples apreciação positiva, esse interesse provém da situação de incerteza em que se encontra o direito, resultante normalmente da sua negação pelo réu. Assim, a acção de simples apreciação positiva só é admissível quando o autor visa afastar a situação de incerteza criada pela conduta do réu (cfr., v.g., RL – 12/3/1992, CJ 92/2, 128). Por exemplo: o autor tem interesse para intentar uma acção de simples apreciação para obter a declaração da sua propriedade sobre um imóvel que é reivindicado (extrajudicialmente) pelo réu” (assim, Miguel Teixeira de Sousa; As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa; Lex, Lisboa, 1995, p. 114).
Conforme refere Daniel Bessa de Melo (“O interesse em agir no processo cível. Em especial, nas ações de simples apreciação”, in Julgar on line, dezembro de 2021, pp. 34-35), “nas ações de simples apreciação o interesse processual prende-se com um estado de objetiva incerteza acerca da existência de dada relação jurídica e do exato conteúdo dos direitos e das obrigações que dela emergem, que acarrete um prejuízo concreto e atual para o demandante, de forma a que a remoção do referido estado de incerteza constitua um resultado útil, juridicamente relevante e impossível de ser atingido sem a intervenção do juiz. (…). Objetividade e prejudicialidade do estado de incerteza e imprescindibilidade da intervenção jurisdicional para a sanar são, assim, os requisitos que insuflam o interesse processual nas ações de mera apreciação. Não havendo qualquer estado de incerteza, ou não sendo este objetivo nem apto a acarretar um prejuízo para o autor, o juiz deverá abster-se de conhecer do mérito da ação, proferindo antes decisão de absolvição do réu da instância”.
O pedido de declaração da existência de um direito deve, assim, “decorrer da sequência da alegação de uma determinada situação de conflitualidade entre as partes ou da alegação de um estado de incerteza objectivamente determinado, passível de comprometer o valor da relação jurídica e que se não traduza num mero capricho, ou em um puro interesse subjectivo, para obter uma decisão jurídica” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-10-1999, proc. n.º 99S137, rel. ALMEIDA DEVEZA).
[MTS]