"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/02/2024

Jurisprudência 2023 (115)


Decisão-surpresa;
nulidade*


1. O sumário de RE 20/4/2023 (2650/17.7BELSB.E1) é o seguinte:

Uma decisão-surpresa é um vício que afeta a própria decisão, tornando-a nula nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, na medida em que através dela o tribunal pronuncia-se sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes interessadas sobre a matéria.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A decisão recorrida consiste num despacho saneador-sentença que conheceu do mérito da ação, julgando procedente a exceção perentória da falta do pressuposto previsto no artigo 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro [---], diploma legal que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.

No seu recurso o apelante começa por arguir a nulidade daquela decisão (cfr. artigo 13.º da motivação de recurso) decorrente de uma nulidade processual prevista no artigo 195.º do Código de Processo Civil, concretamente a inobservância do princípio do contraditório. Defende o apelante que o tribunal recorrido entendeu ser aplicável o disposto no artigo 13.º/2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidade Públicas e que no caso não existia prévia revogação da decisão, acrescentando que não foi ouvido sobre tal matéria «que, por sinal, não era consensual entre as partes, posto que na sua réplica o autor, ou dito de outro modo, na Contestação da contraparte tal não resultava claramente expressa a invocação da exceção perentória» e que «mesmo que se entenda que do artigo 597.º resulta que não tem de existir uma decisão expressa a dispensar a audiência prévia, o que até se pode admitir, deve ser dado sempre oportunidade às partes para se pronunciarem sobre tal. E tal notificação não se basta com um mero despacho genérico onde se refere que o tribunal entende que dos autos já constam todos os elementos».

Vejamos se lhe assiste razão.

No processo comum de declaração, em princípio, é obrigatória a realização de uma audiência prévia. Com efeito, proferido despacho pré-saneador ao abrigo do disposto no artigo 590.º do CPC e após praticados os atos em execução daquele despacho, ou, não tendo lugar o despacho pré-saneador, o processo é concluso ao juiz no final da fase dos articulados, o qual designará data para a realização da audiência prévia, destinada a algum ou alguns dos fins previstos nas várias alíneas do artigo 591.º, n.º 1, do CPC. Esta é, portanto, a regra, sendo para aquela diligência convocados os mandatários das partes e as próprias partes quando o objeto da ação se contenha no âmbito dos direitos disponíveis.

Há, porém, situações em que a lei prevê a não realização de audiência prévia: são os casos contemplados nas alíneas a) e b) do artigo 592.º do Código de Processo Civil) [---]; e há também as situações em que a lei permite ao julgador dispensar a realização daquela diligência, dando assim expressão ao princípio da gestão processual: é o que pode acontecer quando a audiência prévia se destina apenas aos fins enunciados nas alíneas d) a f) do artigo 591.º/1 do CPC [---] (cfr. artigo 593.º do Código de Processo Civil).

Em suma, a audiência prévia pode ser dispensada pela lei (artigo 592.º) ou pelo juiz (artigo 593.º).

Refira-se, ainda, que o artigo 597.º do Código de Processo Civil, para as ações de valor não superior a metade da alçada da Relação e uma vez terminada a fase dos articulados, coloca à disposição do tribunal várias opções quanto à tramitação subsequente dos autos, permitindo-se ao julgador, ao abrigo do normativo em referência, avançar diretamente para a audiência final sem realizar uma audiência prévia. Porém, a consagração no preceito supra mencionado do princípio da adequação formal, veículo para a agilização da tramitação das ações, não pode implicar a derrogação de princípios estruturantes do processo civil, como o é o princípio do contraditório. Por conseguinte, e ainda que porventura não haja factos controvertidos, designadamente porque os factos necessários à solução da causa se encontram já assentes por confissão, admissão por acordo ou por documento, ainda assim, deve ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões de direito que a solução do caso convoca, tudo em obediência ao princípio do contraditório e, em última análise ao princípio do processo equitativo.

É consabido que o processo pode terminar no despacho saneador, seja com uma absolvição da instância em resultado da procedência de alguma exceção dilatória, seja com uma decisão sobre o mérito da causa (absolvição ou condenação no pedido), sempre que se mostre desnecessário qualquer ato de instrução (cfr. artigo 595.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC).

Quando o tribunal se proponha conhecer da questão de fundo, a sua decisão deve ser precedida de discussão ou de debate sobre a matéria de facto e de direito (cfr. artigo 591.º, n.º 1, alínea b), 2.ª parte, do CPC e artigo 593.º, n.º 1, do CPC).

A audiência prévia das partes, possibilitando a estas a pronúncia, em debates orais, sobre a matéria de facto que consideram provada e aquela que consideram não provada, bem como sobre os fundamentos de direito invocáveis para sustentar as pretensões de cada uma, permite evitar, justamente, as decisões surpresa, que estão vedadas pelo disposto no artigo 3.º/3 do Código de Processo Civil.

O artigo 3.º/3 do Código de Processo Civil dispõe que «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».

Explicam Lebre de Freitas/Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Almedina, p. 7.] que o referido preceito legal consagra o princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão-surpresa, acrescentando que «não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção. Este direito de fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão» (itálicos nossos).

O princípio do contraditório – que é uma decorrência do princípio do processo equitativo consagrado no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição – exige, assim, que antes da apreciação final do(s) pedidos, o tribunal permita às partes se pronunciarem sobre os fundamentos de facto provados e não provados e de exporem os últimos argumentos de direito convocáveis para fundamentar as suas pretensões.

No caso sub judice o tribunal a quo proferiu decisão sobre o fundo da causa pois julgou procedente uma exceção perentória, tendo, consequentemente, absolvido o réu Estado Português do pedido.

Resulta dos autos – e não é controvertido – que o tribunal proferiu aquela decisão sem que, previamente, tivesse anunciado às partes a sua intenção de conhecer do mérito da causa em sede de despacho saneador ou anunciado previamente a sua intenção de dispensar a realização da audiência prévia, não lhes tendo dado, portanto, quer por via da realização de debates orais, quer por via de alegações escritas, uma derradeira oportunidade de se pronunciarem de facto e de direito antes da prolação daquela decisão e, nomeadamente, sobre a verificação da exceção perentória invocada pelo tribunal recorrido para absolver o Estado do Pedido quando na própria decisão recorrida o julgador a quo referiu expressamente que o Ministério Público na Contestação não a mencionou expressamente.

A decisão sob recurso surgiu, assim, como uma decisão-surpresa, logo, violadora do princípio do contraditório e, por via dela, também da garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio e de um processo equitativo.

O desrespeito do princípio do contraditório, quando ele deva ser observado, constitui uma nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC pois trata-se de omissão de uma formalidade que a lei prescreve destinada a evitar decisões-surpresa. Já Anselmo de Castro ensinava que, no que deva entender por “irregularidade suscetível de influir no exame (instrução e discussão) ou na decisão da causa”, «não restam quaisquer dúvidas de que a fórmula legal abrange todas as irregularidades ou desvios ao formalismo processual que atinjam o próprio contraditório» e que, para além disso, «só caso por caso a prudência e a ponderação dos juízes poderão resolver» [Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 109.].

As nulidades processuais devem ser arguidas pelos interessados perante o juiz, como resulta do disposto nos artigos 196.º e 197.º do CPC, sendo a decisão que recair sobre a respetiva arguição impugnável por via recursiva.

Todavia, uma decisão-surpresa é um vício que afeta a própria decisão, tornando-a nula na medida em que através dela o tribunal pronuncia-se sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes interessadas sobre a matéria.

Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume II, AAFDL Editora, p. 90, referem que «a falta de audição prévia (e, portanto, a violação pelo tribunal do dever de consulta) implica que o despacho saneador que venha a ser proferido é nulo por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d)): o tribunal conhece de matéria que, nas circunstâncias em que o faz (omissão do dever de consulta), não pode conhecer».

Assinala Teixeira de Sousa, in https: //blogippc.blogspot.pt., que ainda que a falta de audiência prévia constitua uma nulidade processual por violação do princípio do contraditório, aquela é consumida por uma nulidade de sentença por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão. Pelo que a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso fundamentado na nulidade da própria decisão.

Em face de todo o exposto, alcança-se a conclusão de que a decisão recorrida é nula nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC e, consequentemente, há que anulá-la e determinar que os autos regressem à primeira instância para que o tribunal possibilite às partes a discussão de facto e de direito da causa antes da prolação da decisão sobre o mérito da causa."

*3. [Comentário] 1. O acórdão adopta a posição que, depois de alguma resistência inicial, corresponde à orientação estabilizada na jurisprudência sobre a nulidade das decisões-surpresa.

2. A acção foi proposta ainda antes de estarem em vigor as alterações introduzidas no CPC pela L 117/2019, de 13/9. 

Na altura, a exigência da prévia revogação da decisão levantava sérios problemas, não só porque não se compatilizava com o direito europeu, mas também porque era uma exigência impossível de satisfazer se a decisão proviesse do STJ ou do STA. O disposto nos actuais art. 696.º, al. h), 696.º-A e 701.º, n.º 1, al. e), CPC procurou solucionar o problema.

MTS