Decisão-surpresa;
título executivo; sucessão na obrigação
1. O sumário de RE 25/5/2023 (3547/17.6T8LLE-C.E1) é o seguinte:
I. O tribunal emite uma decisão-surpresa quando conhece oficiosamente de questões adjetivas ou substantivas, não suscitadas pelas partes, sem que as mesmas tenham tido a oportunidade de previamente exercer o princípio do contraditório, ou quando conhece de questões suscitadas pelas partes, mas fá-lo de forma absolutamente inopinada e apartado da factualidade provada e do pertinente enquadramento jurídico, adotando uma solução jurídica que as partes não quiseram submeter à sua apreciação, apresentando-se o decidido como imprevisível em face dos contornos da lide.
II. A exequibilidade da prestação cuja realização coativa é pedida em sede executiva, depende de dois requisitos: a) o dever de prestar deve constar de um título – o título executivo (artigos 10.º e 703.º do CPC) –, o que corresponde a um requisito específico de ordem formal e que condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da ação executiva; b) a prestação deve mostrar-se certa, exigível e líquida (cfr. artigo 713.º do CPC), o que corresponde a pressupostos específicos de caráter material, que intrinsecamente condicionam a exequibilidade do direito, na medida em que sem eles não é admissível a satisfação coativa da prestação.
III. O artigo 54.º, n.º 1, do CPC estabelece um desvio à regra do artigo 53.º, n.º 1, do CPC, conferindo legitimidade para ser demandado como executado, o adquirente que, por compra e venda, sucedeu na obrigação da pessoa que figura no título executivo como devedor, devendo o exequente no próprio requerimento executivo deduzir os factos constitutivos da sucessão.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O Apelante vem alegar que se verifica violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, por ter sido emitida uma decisão-surpresa, sem ter sido ouvido, previamente à prolação da sentença recorrida no que diz respeito à condenação do recorrente a demolir a sua moradia geminada construída no referido Lote 4, onde reside com o seu agregado familiar, sem ordenar uma perícia com vista a determinar a exata localização do prédio da ora Recorrida.
Vejamos.
Estipula o artigo 3.º, n.º 3, do CPC, que «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.»
Sendo que a proibição da decisão-surpresa prende-se com o conhecimento de questões de direito adjetivo ou substantivo, não suscitadas pelas partes, mas que são de conhecimento oficioso, pois as suscitadas pelas partes devem ser objeto de apreciação, sob pena de nulidade da decisão por omissão de pronúncia.
Admitindo-se, contudo, mesmo em relação a questões suscitadas pelas partes que possa haver uma decisão-surpresa se o juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado da factualidade provada e do pertinente enquadramento jurídico, adote uma solução jurídica que as partes não quiseram submeter a apreciação, apresentando-se o decidido como imprevisível em face dos contornos da lide. [Neste sentido, entre outros, veja-se Ac. STJ de 13-07-2022, proc. n.º 14281/21.2T8LSB.P1-A.S1, em www.dgsi.pt]
Na situação em apreciação, a execução foi instaurada com base num título executivo de natureza judicial tendo a Exequente alegado que «(…) pretende mandar fazer, sob a sua orientação e vigilância, as obras e trabalhos necessários ao cumprimento da douta decisão do Venerando Tribunal da Relação de Évora», sendo que as mesmas constam da parte dispositiva do dito Acórdão do seguinte modo: «(…) suspender de imediato a obra e a proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição».
O ora Apelante ao deduzir embargos de executado suscitou a questão da falta e inexequibilidade do título executivo alegando que a pretensão da Exequente/Embargada em relação ao Executado/Embargante não tem suporte no título executivo, bem como a questão da sua ilegitimidade para ser executado, precisamente pelas mesmas razões, alegando, ademais, que o seu imóvel construído no Lote 4 «não consta» da sentença exequenda e dela não resulta qualquer obrigação para o Embargante relacionada com aquele imóvel.
A sentença recorrida pronunciou-se sobre as questões supra referidas que enunciou expressamente como questões a resolver, decidindo a certo passo, em relação à alegada falta e inexequibilidade do título executivo:
«(…) a exequente dispõe de título executivo válido (acórdão condenatório proferido pelo Tribunal da Relação de Évora) e esse título executivo é perfeitamente exequível, bastando os executados procederem à reconstrução das paredes e do telhado do prédio da exequente, nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição.»
E em relação à questão da ilegitimidade do Executado/Embargante, decidiu também em sentido positivo louvando-se no disposto no artigo 54.º, n.º 1, do CPC, e no decidido, quer Acórdão proferido no procedimento cautelar, quer na decisão final proferida no processo que se seguiu interposto pelos Requeridos com vista à inversão do contencioso (que foi julgada totalmente improcedente), lendo-se na fundamentação na sentença recorrida, reportando-se ao Acórdão desta Relação proferido na providência cautelar de embargo de obra nova tramitado sob o n.º 789/16.5T8FAR.E1, o seguinte:
«(…) a autoridade do caso julgado, ou seja, do decidido no douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora, nomeadamente na parte de sujeição a que sejam reconstruídas as paredes e o telhado da edificação existente no prédio da exequente nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição levados a cabo pela “Radical Red Holdings LLC” e CC, estendem-se aos actuais detentores das moradias geminadas edificadas no prédio da exequente, e daí a legitimidade desses detentores para a execução.»
Decorre, pois, do que vem sendo dito que, em face dos fundamentos da oposição apresentada pelo Embargante, conhecidos e decididos na sentença recorrida, que as obrigações emergentes do título executivo, seu alcance e âmbito, foram objeto de discussão e decisão, não se verificando, pois, a prolação de uma decisão-surpresa.
Sendo que não se descortina que houvesse outras questões a conhecer de modo oficioso. Sublinhando-se, ademais, que apesar do ora Apelante alegar que o título executivo não ordena a demolição da sua moradia e que nem sequer decidiu que a mesma se localiza no terreno da Apelada, rigorosamente tal não corresponde ao decidido.
O que se verifica é uma outra situação.
A moradia em causa foi construída no Lote 4, o qual se encontra integrado no terreno objeto do Loteamento ..., de 30-08-2017, que, por sua vez, abrangeu o imóvel da Apelada. Este facto resulta claramente do Acórdão apresentado como título executivo como decorre da conjugação dos factos dados ali como provados nos pontos 1) a 5), 12), 20), segundo parágrafo, 25) a 29) e respetiva fundamentação.
Pelo que desta factualidade há que retirar as devidas consequências.
Compreendendo-se, assim, que na sentença recorrida conste a seguinte passagem:
«(…) para executar o determinado pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora apresentado como título executivo (reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição), é necessário proceder à demolição da moradia adquirida pelo ora embargante AA, donde se conclui que apesar de o mesmo não constar no título executivo, não tendo sido condenado a fazer o que quer que seja, nomeadamente “a proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição”, será afectado pela execução do determinado pelo Tribunal Superior (…)».
Concluindo mais à frente:
«(…) a construção das referidas moradias geminadas impede que a exequente utilize o seu prédio, é para reconstrução das paredes e do telhado do prédio da exequente nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição será necessário demolir as ditas moradias, o que necessariamente afectará os actuais detentores».
E, finalmente:
«(…) sendo certo que o mesmo não está obrigado a proceder à reconstrução das paredes e do telhado do prédio da exequente, obrigação que recai apenas sobre os executados “Radical Red Holdings LLC” e CC e que se os mesmos não o fizerem será efectuado por outrem (cfr. artigo 870º, do Código de Processo Civil), mas o ora Embargante/executado já está obrigado a sujeitar-se a que a moradia da qual é detentor seja demolida para cumprimento do decidido pelo Tribunal Superior (…).» [...]
Atendendo ao supra exposto, é de concluir que não se verifica a alegada violação do princípio do contraditório, nem tampouco a emissão de uma decisão-surpresa."
[MTS]
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