1. O sumário de um acórdão de uma das Relações é o seguinte:
I - Numa ação de alimentos, o autor/alimentando pode exercer o seu direito perante qualquer dos obrigados, não lhe competindo provar a impossibilidade económica daqueles que precedem o demandado na ordem legalmente estabelecida (art. 2009º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Civil).II - Nada obsta, por isso, que aquele demande apenas os filhos, para deles exigir a prestação dos alimentos de que carece.III - Cabe aos demandados invocar (e provar) a excepção da existência de um obrigado anterior e a subsidiariedade da sua obrigação, designadamente que o ex-cônjuge do autor possui meios para lhe prestar alimentos.
Para melhor se perceber o que está em causa, transcreve-se este pequeno trecho que consta da fundamentação do acórdão:
"[...] pretendendo o Autor recorrente exercer o seu direito de alimentos e tendo diretamente demandado os seus dois filhos, abstendo-se de demandar o seu-ex-cônjuge, competirá aos demandados invocar – e demonstrar – a excepção da existência de um obrigado anterior e a sua subsidiariedade da sua obrigação, ou seja, de que o ex-cônjuge do autor está em condições de lhe poder prestar alimentos. Só assim se tornará inviável aferir a capacidade económica dos demandados para prestar alimentos ao seu progenitor. E não como fez o Tribunal recorrido, que erigiu como prevalecente a alegação (e prova) de que o ex-cônjuge do autor não tinha meios económicos suficientes para satisfazer a peticionada prestação de alimentos.De resto, nenhum sentido faria que o autor demandasse o ex-cônjuge quando reconhece que o mesmo está impossibilitado de prestar alimentos".
Salvo o devido respeito, discorda-se da solução adoptada no acórdão.
2. a) Antes do mais, parece haver um forte argumento legal contra a orientação defendida no acórdão. Recorde-se que o art. 2009.º, n.º 3, CC estabelece que, "se algum dos vinculados não puder prestar alimentos ou não puder saldar integralmente a sua responsabilidade, o encargo recai sobre os onerados subsequentes". Não pode admirar que assim suceda, dado que o estabelecido não é mais do que uma consequência da escala de vinculados à prestação alimentícia. Tudo isto claramente indicia que não se passa para outros vinculados "subsidiários" à satisfação do crédito de alimentos antes de estar apurado que devedores "prioritários" não podem satisfazer esse crédito. Portanto, respondem primeiro certos vinculados, e só depois outros. Aliás, o mesmo se pode dizer do disposto no art. 2009.º, n.º 2, CC.
Seja como for, não parece muito razoável que se entenda que o credor de alimentos pode demandar um dos obrigados que constam da escala definida no art. 2009.º, n.º 1, CC e que na acção se apure se é necessário "subir" nessa escala e procurar um responsável "prioritário". A "ordem indicada" no art. 2009.º, n.º 1, CC é relevante para determinar quem é que tem legitimidade para ser demandado na acção de alimentos, pelo que há que respeitá-la.
É, aliás, muito discutível que a insuficiência económica seja um critério a considerar na aferição da legitimidade processual. O melhor entendimento parece ser o de que se demanda quem tem legitimidade para ser demandado segundo a escala definida no art. 2009.º, n.º 1, CC e que se determina depois, na apreciação do mérito, se essa parte tem capacidade económica para satisfazer o crédito de alimentos. Isto é: a capacidade económica do demandado não é um factor determinante para a aferição da legitimidade processual (esta é aferida pela ordem estabelecida no art. 2009.º, n.º 1, CC), mas antes para a procedência ou improcedência do pedido de alimentos contra a parte demandada.
Seja como for, não parece muito razoável que se entenda que o credor de alimentos pode demandar um dos obrigados que constam da escala definida no art. 2009.º, n.º 1, CC e que na acção se apure se é necessário "subir" nessa escala e procurar um responsável "prioritário". A "ordem indicada" no art. 2009.º, n.º 1, CC é relevante para determinar quem é que tem legitimidade para ser demandado na acção de alimentos, pelo que há que respeitá-la.
É, aliás, muito discutível que a insuficiência económica seja um critério a considerar na aferição da legitimidade processual. O melhor entendimento parece ser o de que se demanda quem tem legitimidade para ser demandado segundo a escala definida no art. 2009.º, n.º 1, CC e que se determina depois, na apreciação do mérito, se essa parte tem capacidade económica para satisfazer o crédito de alimentos. Isto é: a capacidade económica do demandado não é um factor determinante para a aferição da legitimidade processual (esta é aferida pela ordem estabelecida no art. 2009.º, n.º 1, CC), mas antes para a procedência ou improcedência do pedido de alimentos contra a parte demandada.
Também não parece muito feliz o argumento avançado no acórdão de que, no caso concreto, não valia a pena demandar o ex-cônjuge, porque o próprio credor "reconhece que o mesmo está impossibilitado de prestar alimentos". O "reconhecimento" pelo autor fora da acção do que quer que seja nunca pode ser relevante para a determinação da legitimidade passiva em qualquer acção.
b) Em conclusão: a legitimidade processual passiva para a acção de alimentos é determinada pelo disposto no art. 2009.º, n.º 1, CC; aferir se o demandado tem capacidade económica para saldar o crédito de alimentos é um aspecto relativo ao mérito da acção.
3. a) Para além das razões legais acima aduzidas, há uma razão ligada ao objecto da prova que também infirma a solução defendida no acórdão. A razão é a seguinte: é muito mais razoável que a parte demandada tenha de provar a sua incapacidade económica para satisfazer o direito de alimentos do demandante do que provar que um responsável não demandado tem condições económicas para satisfazer aquele direito do demandante. Não está em causa que o ónus da prova pertence ao demandado (distribuição do ónus da prova); o que está em causa é saber o que esse demandado tem o ónus de provar (objecto da prova).
O que é lógico é que a parte demandada faça prova de um facto pessoal ("eu não tenho capacidade económica para satisfazer o crédito de alimentos"), não que essa parte tenha de provar um facto alheio ("quem tem capacidade económica para satisfazer o crédito de alimentos é outra pessoa"). Logo, quem deve ser demandado é quem tem de provar um facto pessoal, não quem tem de provar um facto alheio. Isto confirma que, no plano da legitimidade processual, se deve seguir a ordem estabelecida no art. 2009.º, n.º 1, CC e conduz a que cabe ao demandado provar que não tem condições económicas para satisfazer o crédito de alimentos e que, por isso, a acção não pode proceder contra ele.
A Relação aceitou que dois devedores "subsidiários" pudessem ser demandados na acção de alimentos em detrimento de um devedor "prioritário" (isto é, reconheceu que esses demandados eram partes legítimas) e definiu o objecto da prova em função desses demandados (a estes demandados cabe provar que um devedor "prioritário" tem possibilidade de satisfazer o crédito alimentício). O que, salvo melhor opinião, a Relação devia ter feito era precisamente o contrário: entender que não faz sentido exigir que os demandados provem que o devedor "prioritário" (terceiro em relação à acção) tem capacidade económica para satisfazer o crédito alimentício e que, por isso, nunca esses demandados podiam ser reconhecidos como partes legítimas.
Aliás, nem se vê muito bem como é que os demandados na acção de alimentos conseguiriam provar que um não demandado (ou seja, um terceiro em relação à acção) tem condições económicas para cumprir a obrigação de alimentos. Note-se que não se trata de provar, por exemplo, que, ao contrário do que o demandante invoca, um devedor "prioritário" ainda não faleceu; trata-se de demonstrar que um terceiro tem possibilidade de satisfazer um crédito de alimentos. Para isso é necessário conhecer, entre muitos outros aspectos, não só as fontes de rendimento do terceiro, mas também a sua situação familiar e respectivos encargos e ainda a eventual prestação de alimentos a outrem.
Mesmo o disposto no art. 432.º CPC quanto à entrega de documentos em poder de terceiro é certamente inaplicável quando se trata de determinar se esse terceiro é titular de uma dívida perante o demandante; para isso, o terceiro tem de ser parte numa acção. Quer dizer: aceitar que possa ser demandado um alegado devedor que fica com o ónus de provar que um terceiro, porque tem para tal capacidade económica, é o verdadeiro responsável pela dívida alimentícia é fazer depender a improcedência da acção contra esse demandado de uma probatio diabolica.
Aliás, nem se vê muito bem como é que os demandados na acção de alimentos conseguiriam provar que um não demandado (ou seja, um terceiro em relação à acção) tem condições económicas para cumprir a obrigação de alimentos. Note-se que não se trata de provar, por exemplo, que, ao contrário do que o demandante invoca, um devedor "prioritário" ainda não faleceu; trata-se de demonstrar que um terceiro tem possibilidade de satisfazer um crédito de alimentos. Para isso é necessário conhecer, entre muitos outros aspectos, não só as fontes de rendimento do terceiro, mas também a sua situação familiar e respectivos encargos e ainda a eventual prestação de alimentos a outrem.
Mesmo o disposto no art. 432.º CPC quanto à entrega de documentos em poder de terceiro é certamente inaplicável quando se trata de determinar se esse terceiro é titular de uma dívida perante o demandante; para isso, o terceiro tem de ser parte numa acção. Quer dizer: aceitar que possa ser demandado um alegado devedor que fica com o ónus de provar que um terceiro, porque tem para tal capacidade económica, é o verdadeiro responsável pela dívida alimentícia é fazer depender a improcedência da acção contra esse demandado de uma probatio diabolica.
Acresce que não se vê qual a utilidade prática de definir numa acção que um terceiro (e não o demandado) é responsável pela satisfação de um crédito de alimentos. Como é claro, qualquer decisão neste sentido sempre seria inoponível ao terceiro não demandado, pelo que numa eventual posterior acção teria de se começar tudo de novo e poder-se-ia vir a proferir uma decisão contraditória com a anterior absolvição.
b) Perante a falta da demanda de um devedor "prioritário" (in casu, o ex-cônjuge do credor demandante), o que a Relação devia ter reconhecido era a ilegitimidade dos devedores demandados e tê-los absolvido da instância (como, aliás, eles alegaram e pediram). Em vez disso, a Relação não só não questionou a legitimidade dos demandados, como lhes impôs, como condição de improcedência da acção, a prova de que esse devedor "prioritário" tinha capacidade financeira para suportar os alimentos. Não se pode acompanhar esta solução.
4. Importa ainda resolver uma outra questão: é possível admitir a intervenção, a pedido dos demandados "subsidiários", do terceiro eventualmente responsável, como devedor "prioritário", pelo crédito de alimentos?
Atendendo a que o que está em causa é uma alternatividade entre devedores -- apenas o demandado ou o devedor "prioritário" pode ser responsabilizado pelo crédito de alimentos --, pode defender-se a aplicação analógica do disposto no art. 316.º, n.º 2, CPC com base no seguinte argumento: tal como o estabelecido no art. 39.º CPC quanto ao litisconsórcio subsidiário pode ser aplicado, por analogia, a um litisconsórcio alternativo, também o disposto no art. 316.º, n.º 2, CPC pode ser aplicado à intervenção de um litisconsorte alternativo.
A admissibilidade desta intervenção (que, aliás, o acórdão não reconheceu) não se destina a permitir que o demandado inicial prove que o litisconsorte interveniente tem capacidade financeira para satisfazer o crédito de alimentos, mas antes a permitir, antes de tudo o mais, que o interveniente, como devedor "prioritário", prove que não tem capacidade financeira e que, por isso, a acção não pode proceder contra ele. Portanto, a admissibilidade da intervenção do devedor "prioritário" é totalmente compatível com o que acima se defendeu.
A admissibilidade desta intervenção (que, aliás, o acórdão não reconheceu) não se destina a permitir que o demandado inicial prove que o litisconsorte interveniente tem capacidade financeira para satisfazer o crédito de alimentos, mas antes a permitir, antes de tudo o mais, que o interveniente, como devedor "prioritário", prove que não tem capacidade financeira e que, por isso, a acção não pode proceder contra ele. Portanto, a admissibilidade da intervenção do devedor "prioritário" é totalmente compatível com o que acima se defendeu.
5. Em conclusão:
-- Quer o disposto no art. 2009.º, n.º 3, CC, quer uma determinação adequada do objecto da prova indicam que o demandado tem de provar que não tem capacidade económica para satisfazer o crédito alimentício; logo, deve ser demandado quem tem legitimidade processual segundo o disposto no art. 2009.º, n.º 1, CC e que, logicamente, pode provar a sua insuficiência económica;
-- A não se entender assim, desconsidera-se a ilegitimidade do demandado e impõe-se a esta parte, como condição para conseguir a improcedência da acção, uma probatio diabolica quanto à demonstração de que um terceiro tem capacidade económica para satisfazer o crédito alimentício; ainda por cima, a eventual decisão de improcedência da acção não tem nenhum efeito prático, dado que o que se decide na acção nunca será oponível ao terceiro que nela não foi demandado.
MTS