"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/01/2025

Jurisprudência 2024 (96)


Processo de inventário entre ex-cônjuges;
disponibilidade de bens comuns; legitimidade processual


1. O sumário de RC 9/4/2024 (84/12.9TBVZL-Z.C1) é o seguinte:

Face à existência de uma escritura pública pela qual um dos ex-cônjuges declara doar a sua meação no património comum do casal, reservando para si o direito de uso e habitação de um dos imóveis que fazem parte desse património comum, o tribunal não pode excluir do inventário tal ex-cônjuge, sem apreciar a questão da (in)validade de tal declaração de reserva e os eventuais efeitos no negócio de doação.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. Se o tribunal a quo não podia excluir o recorrente do inventário, sem ter apreciado a questão da reserva do uso e habitação constante da escritura de doação da meação

Para além do circunstancialismo fáctico que consta do relatório, teremos ainda os seguintes factos com interesse para a apreciação da decisão em apreço:

1. Na Ação de divórcio por mútuo consentimento nº 84/12...., respeitante ao casal BB e AA, estes apresentaram os acordos legais, entre os quais um acordo quanto ao destino da casa de morada de família, acordos estes que foram homologados por sentença de 16-11-2014, que decretou o divórcio de ambos por mutuo consentimento.

2. Em tal acordo, declaram que “acordam, em conformidade com o estabelecido nos artigos 1775º, nº2, do Código Civil, e 1419º, nº1, al. f), do Código de Processo Civil, o destino da casa de morada de família, nos termos seguintes: Os Requerentes acordam que o direito de uso e habitação da casa de morada de família caberá ao requerente BB”.

3. Com base em tal acordo, o ex-cônjuge BB logrou registar a seu favor o direito de uso e habitação relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...56º, que faz parte do património comum do casal;

4. Por escritura de doação celebrada no dia 15.12.2014, o BB declarou doar aos filhos CC, DD e EE, em comum e partes iguais, por conta da quota disponível, a sua meação no património comum do casal, mantendo para si o direito de uso e habitação sobre o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...56 de ..., descrito na CRP ... sob o nº ...36, atribuindo à doação o valor de 20.000 €.

5. Por sentença de 09-06-2016, proferida na ação comum nº 3783/15...., transitada em julgado, foi declarada anulada a declaração, emitida pela autora aqui interessada AA, no acordo sobre o destino de morada de família constante do processo 84/12...., incidente sobre o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...56 de ..., nos termos do qual “o direito de uso e habitação da casa de morada de família caberá ao requerente BB”. [...]

O tribunal a quo entendeu que declarado anulado, por sentença transitada em julgado, o acordo junto no processo de divórcio, pelo qual “o direito de uso e habitação da casa de morada de família caberá ao requerente BB”, e com base no qual este logrou o registo a seu favor de tal direito, o mesmo deixou [de] ser interessado no presente inventário:

Daí decorre que, tendo sido anulada tal declaração, que motivou a “reserva” constante da primeira escritura de doação (“mantendo – o interessado BB – para si o direito de uso e habitação sobre o prédio urbano inscrito na matriz sob o art. ...56 de ..., descrito na CRP ... sob o nº ...36”), daí resulta que tal “reserva” deixou de ter objecto, implicando a exclusão do interessado BB dos presentes autos, por se encontrar processualmente substituído pelos donatários/cessionários, atrás identificados.

Insurge-se o Apelante contra o decidido, com os seguintes fundamentos:

- A sentença proferida no processo 3783/15.... apenas declarou a nulidade do acordo sobre o destino da casa de morada de família homologado na sentença de divórcio;

 - Não tendo sido declarada a nulidade da escritura de doação da meação, pela qual [BB] reservou para si o direito ao uso e habitação sobre um prédio urbano que compõe a referida meação;

- Sendo o requerente titular do direito de uso e habitação, que reservou para si na escritura de doação da meação, tem legitimidade para intervir nos autos de inventário;

- Ao excluir o recorrente do inventário, sem ter apreciado a questão da reserva do uso e habitação constante da escritura de doação da meação, a sentença fez incorreta aplicação da lei e do direito violando as normas jurídicas previstas nos artigos 1688.º e 1689.º, ambos do C.C., no que se refere ao objeto das relações patrimoniais que cessaram após o divórcio e ainda as normas jurídicas previstas nos artigos 958.º e 959.º do mesmo C.C. nos que se refere à liberdade do doador reservar para si o uso e habitação e artigos 1484.º a 1490.º também do mesmo C.C. no que se refere aos limites e conteúdo do direito ao uso e habitação.

O Apelante distingue, assim, “o direito de uso e habitação” que lhe havia sido atribuído pelo acordo celebrado no âmbito do processo de divórcio e que veio a ser anulado por sentença, e “o direito de uso e habitação” de que, em seu entender, é titular, pelo simples facto de incidir sobre um imóvel que faz parte do património comum, direito que reservou para si aquando da doação da meação que doou a alguns dos seus filhos.

E sustenta que o tribunal não o podia excluir do inventário, julgando-o parte ilegítima sem apreciar a questão da reserva do uso e habitação constante da escritura de doação da meação.

E, nesta parte, temos de dar razão ao Apelante.

A declaração de anulabilidade, decretada por sentença proferida no processo 3783/15...., do acordo quanto à casa de morada de família homologado na sentença que decretou o divórcio entre ambos e pelo qual “o direito de uso e habitação da casa de morada de família caberá ao requerente BB” [...] não esgota, por si só, a questão de saber se o ex-cônjuge continua a ser interessado no presente inventário.

Com efeito, encontrando-nos perante um inventário para partilha do património comum após dissolução do casamento por divórcio e face à escritura de doação que  o ex-cônjuge, BB, fez a três dos seus filhos – pela qual declarou doar a estes a sua meação nos bens comuns do casal, reservando para si o “direito de uso e habitação” sobre um imóvel que faz parte dos bens comuns do casal, o tribunal não poderia excluir o doador do inventário, sem apreciar a validade da doação e, em especial, a validade da “reserva” que para si fez do “direito de uso e habitação” de um dos imóveis que fazem parte do património comum do casal e, no caso de invalidade desta, se a mesma afetava a doação.

A declaração de anulabilidade proferida na ação 3783/15, do acordo junto ao processo de divórcio, que atribuiu ao interessado BB o direito de uso e habitação da casa de morada de família, não esgota nem importa a resolução automática da questão da validade do negócio de doação da sua meação no património comum

Atentar-se-á em que, a ser válido o acordo homologado na ação de divórcio (e a entender-se que o direito atribuído era o direito real de uso e habitação e não um mero direito obrigacional a habitar a casa de morada de família), o direito de uso e habitação daquele imóvel passaria a integrar o património do ex-cônjuge enquanto bem próprio. Declarada a anulabilidade de tal acordo, e não tendo sido apreciada a validade da doação feita por si feita – pela qual doou a sua meação reservando para si o direito de uso e habitação de um prédio urbano que faz parte desse património comum – colocar-se-á a questão de saber se, ao doar a sua meação, o ex-cônjuge poderia dela excecionar o direito de uso e habitação sobre algum dos bens do património comum do casal.

Ou seja, apesar de a atribuição do direito ao uso e habitação contida naquele acordo ter sido declarada anulada, permanece de pé o negócio formalizado pela escritura de 15-12-2014, de doação da sua meação, reservando para si o “direito de uso e habitação” de um imóvel que faz parte do património comum.

Sendo, em princípio, válido o negócio que incida sobre a sua meação após a dissolução do casamento, e considerando-se que antes da partilha, nenhum dos ex-cônjuges possui qualquer direito próprio a qualquer dos bens que a integram, exercem em conjunto o direito inerente àquele património autónomo [---], haveria que apreciar previamente se o direito ao uso de determinado bem se pode considerar incluído na sua meação, enquanto direito autonomizável e que o ex-cônjuge pudesse reservar para si.

A decisão recorrida não podia excluir do inventário o interessado BB sem apreciar a questão da (in)validade da reserva do direito de uso e habitação de um determinado imóvel que faz parte do património comum e, no caso de se considerar a mesma inválida, se tal invalidade afeta, ou não, a própria doação da meação.

E, a solução a dar a tal questão afetará, não só, a definição da legitimidade processual para este inventário, mas igualmente quem são os titulares dessa meação no património comum que aqui se está a partilhar.

A apelação será de proceder, sem outras considerações."

[MTS]