"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/01/2025

Jurisprudência 2024 (82)


Litigância de má fé;
falta de poder jurisdicional; inexistência jurídica*


1. O sumário da RP 18/3/2024 (63556/21.8YIPRT.P1) é o seguinte:

I – A apreciação da litigância de má-fé deve ocorrer até à decisão final do processo, apenas se podendo relegar para momento posterior a determinação da indemnização que tenha sido pedida pela parte contrária, se não houver elementos para a fixar logo na sentença.

II – O despacho proferido já depois da sentença final que aprecie a referida litigância nessas circunstâncias será juridicamente inexistente por estar esgotado o poder jurisdicional sobre a matéria da causa.

III – Só assim não será se o comportamento processual a apreciar for posterior à referida sentença, caso em que deverá ser apreciado até à decisão que puser termo ao incidente em que esse comportamento se inseriu.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Tal como supra se referiu a primeira questão que cumpre apreciar e decidir prende-se com:

a)- saber se após a prolação da sentença ficou, ou não, esgotado o poder jurisdicional do tribunal para apreciar a litigância de má fé por banda do Réu.

O recorrente defende que a decisão que o condenou como litigante de má fé é nula por excesso de pronúncia na medida em que conheceu de uma questão (a litigância de má fé) de que já não podia tomar conhecimento uma vez que tinha sido proferida sentença onde a questão não foi decidida e com esse ato esgotou-se o poder jurisdicional do juiz.

E, salvo melhor entendimento, assiste razão ao recorrente. [Alteramos, assim, a nossa posição em relação ao Ac. prolatado no processo nº 2432/18.9 T8GDM.P1 em que interviemos como segundo adjunto.]

A questão supra enunciada não é nova, mas não tem merecido uma resposta unânime na jurisprudência dos Tribunais da Relação, no entanto, pensamos ser maioritária, pelo menos no Tribunal da Relação do Porto, a jurisprudência que preconiza a tese aqui defendida pelo recorrente, a qual também merece a nossa aceitação.

Nos termos do preceituado no artigo 613.º, nº 1, do CPCivil proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, ressalvando-se os casos de retificação de erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença (cfr. nº 2 do mesmo preceito). [...]

Como assim, é inerente à natureza/essência do processo que, proferida a sentença, fique imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 613.º, n.º 1, CPC), embora o mesmo possa e deva continuar a exercer no processo o seu poder jurisdicional para resolver as “questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerçam influência na sentença ou despacho que emitiu”. [Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, 1981, volume V, p. 127, em anotação ao art. 666.º do CPC de 1939.]

Significa, portanto, que com a sentença fica precludida a possibilidade de o juiz conhecer de qualquer questão (relativa ao antes processado nos autos) que até esse momento não tenha sido suscitada, oficiosamente ou a requerimento, excetuado o que no n.º 2 do mesmo artigo se dispõe em matéria de retificação de erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença e, por outro lado, o que–em caso de recurso–seja determinado pelo tribunal superior que proceda à anulação da decisão.

A existência do referido princípio (esgotamento do poder jurisdicional) justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.

Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão”. [Cfr. Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, pág. 174.]

Como já referia o Prof. Alberto dos Reis [Ibidem], a justificação deste princípio justifica-se por uma razão de ordem doutrinal e por outra de ordem pragmática, a saber:

“Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever–o dever jurisdicional–que é a contrapartida do direito de ação e defesa. (…) E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respetivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se.

A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional.(…)

Não há dúvidas de que a questão da litigância de má fé é matéria do conhecimento oficioso, o que bem se compreende porque se trata de um mecanismo que visa regular a disciplina processual e o bom aproveitamento dos recursos afetos ao funcionamento da justiça e à prossecução da verdade que, naturalmente, não podia ficar dependente da vontade das partes.

Acontece que, no momento de proferir a sentença, se as partes tiverem suscitado a questão da litigância de má fé e/ou se entender oficiosamente que tal forma de litigância teve lugar, o juiz deve pronunciar-se sobre mesma a nessa ocasião, condenando a parte que litigou de má fé em multa.

O que significa, portanto, que o juiz só deve deixar de se pronunciar se ninguém lhe colocou a questão e entender que não houve litigância de má fé, não carecendo de justificar, pela negativa, que tal forma de litigância não ocorreu.

Efetivamente, se a litigância de má fé respeita à atuação processual anterior à sentença ela já se encontra evidenciada nos autos; trata-se nesse caso de uma questão a decidir e que não poderá deixar de o ser em virtude do esgotamento do poder jurisdicional subsequente à pronúncia da sentença.

O que poderá acontecer, é não ser ainda possível decidir o “quantum” indemnizatório que o litigante de má fé deve pagar à parte contrária, pelo que, só nessa eventualidade e para essa finalidade estrita a lei processual admite no n.º 3 do artigo 543.º do Código de Processo Civil que a fixação desse segmento da condenação como litigante de má fé seja relegada para momento posterior.

Já o Prof. Alberto dos Reis [In Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, 1981, Vol. II, pág. 281, em anotação ao artigo 466º do Código de Processo Civil de 1939.] se pronunciava nesse sentido afirmando: “A apreciação da má fé e a condenação em multa e indemnização não pode o juiz relegá-las para depois da sentença; é nesta que há-de decidir se o litigante procedeu de má fé; é aí que, em caso afirmativo, há-de condená-lo em tal multa e indemnização; o que pode e deve deixar para depois da sentença é a fixação do quantitativo da indemnização (…)”.

No mesmo sentido, Lebre de Freitas [In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2001, pág. 200.], refere: “Havendo elementos suficientes para tanto, deve ser fixada a indemnização que deles resulte. Não havendo, o juiz, ouvidas as partes, fixará, já depois da sentença em que profira a condenação por má fé, mas nos autos da acção, aquilo que, no seu prudente arbítrio, lhe pareça razoável, não havendo assim lugar para a condenação no se liquidar em execução de sentença”.

Já assim não será se, após a prolação da sentença ou despacho que pôs termo ao processo for deduzido algum incidente (p. ex. reclamação da conta, reforma da sentença, fixação do efeito do recurso, prestação de caução, etc.) em cuja dedução ou oposição venha a existir litigância de má fé.

Nessa situação, a conduta enquadrável como litigância de má fé deriva de uma atuação processual posterior à sentença e a apreciação da mesma terá de ser feita na decisão final do incidente no qual ela tenha sido praticada e, ainda assim, com fundamento apenas na atuação posterior à sentença, não sendo, mesmo nessa situação, admissível que o juiz revisite a tramitação anterior à sentença para a qualificar e sancionar como litigância de má fé.

A questão que importa agora dilucidar é se o juiz pode fazer tábua rasa deste dever (de decidir na sentença todas as questões que deve conhecer) e contornar o impedimento decorrente da prolação da sentença determinando, imediatamente, a seguir a esta a notificação das partes para se pronunciarem sobre a eventualidade de uma delas ser condenada como litigante de má fé como, aliás, sucedeu no caso presente.

Entendemos que a resposta deve ser idêntica. [...]

Como bem se refere no Ac. desta Relação de 05/12/2021 [Processo nº 1211/14.7TBMTS.P1, consultável em www.dgsi.pt.] (que aqui seguimos de perto) “Admitir que chegado à sentença, o juiz anteveja a possibilidade de condenar a parte como litigante de má fé e, mesmo assim, em vez de fazer o que a lei processual determina (que cumpra previamente o contraditório e depois na sentença profira decisão sobre essa questão), ordene a notificação das partes para se pronunciarem sobre essa eventualidade, relegando a decisão sobre a litigância de má fé para um momento em que o seu poder jurisdicional já se encontra esgotado, seria, bem vistas as coisas, permitir-lhe alterar o objeto da sentença e excluir uma das causas de nulidade desta.

Portanto, se se der essa circunstância, o que o juiz tem de fazer é sobrestar a prolação da sentença e exercer o contraditório que estiver por cumprir e sem o qual ainda não pode decidir a questão. Não o fazendo, a decisão que, depois da sentença, vier a proferir sobre a litigância de má fé não deixa de enfermar de nulidade por conhecer de questão de que nesse momento o juiz já não pode conhecer”.

No caso concreto, decorre do relatório supra e do teor da sentença proferida pela primeira instância o pedido de condenação do Réu como litigante de má-fé foi formulado antes da prolação da sentença, com fundamento no anterior comportamento processual daquela parte, e, por assim ser, o Tribunal recorrido devia ter apreciado e decidido aquele pedido na sentença, e não em despacho posterior. [...]

Não se questiona, naturalmente, a necessidade de assegurar o contraditório, tido pelo legislador em princípio basilar e estruturante do atual processo civil, como decorre do comando geral do artigo 3.º, n.º 3, do CPCivil.

Acontece que, o Tribunal recorrido sempre poderia ter dado imediata e expressamente a palavra ao mandatário do Réu para se pronunciar, querendo, sobre a alegada litigância de má-fé e, se tal se justificasse, poderia ter interrompido a audiência pelo tempo que necessário para a autora responder.

O que não podia, a nosso ver, era depois de ter encerrado a audiência e proferido a sentença, conceder prazo para a parte se pronunciar sobre uma questão que “deixou pendente” e apreciá-la posteriormente em despacho autónomo, ainda que ao abrigo dos poderes de gestão processual (artigo 6.º do CPC) e de adequação formal (artigo 547.º do CPC), pois estes não permitem modificar o objeto da sentença afastando as consequências do artigo 613.º do CPC. [...]

*
Aqui chegados a questão que agora importa dilucidar é qual o concreto vício que afeta o despacho que, em violação de lei, assim tiver sido proferido?

Debruçando-se sobre a questão, o STJ [Cfr. Ac. de 06-05-2010 in www.dgsi.pt.], apelando aos ensinamentos dos Srs. Profs. Paulo Cunha e Castro Mendes, entendeu que o vício aqui em causa é o da falta de poder jurisdicional de quem profere, neste caso concreto, despacho modificativo de decisão anteriormente proferida, gerando a sua inexistência jurídica.

  Na verdade, como refere o Prof. Castro Mendes [In Direito Processual Civil, edição policopiada da AAFDL, vol. III, 1973, pg. 369.] embora o legislador tenha traçado um apertado numerus clausus das nulidades da sentença/acórdão, aplicáveis também, até onde seja possível, aos despachos jurisdicionais (artigo 613.º, nº 3 do CPCivil), a verdade é que outros vícios podem afetar as decisões judiciais, englobando categorias diferentes, que Castro Mendes classificava como vícios de essência, de formação, de conteúdo, de forma e de limites.

O referido Mestre denominava de vícios de essência, aqueles que, atingindo a sentença nas suas qualidades essenciais, a privam até da aparência de acto judicial e dão lugar à sua inexistência jurídica (ibidem).

Por sua vez Prof. Paulo Cunha [In Da Marcha do Processo: Processo Comum De Declaração, Tomo II, 2ª edição, pg. 360.] dava vários exemplos de casos de inexistência jurídica de sentenças, sendo um deles, quanto ao que ora nos interessa, o de a sentença (despacho) ser proferida por quem não tem poder jurisdicional para o fazer e o de, já depois de lavrada a sentença no processo, o juiz lavrar segunda sentença. [Tal posição mereceu, aliás, a discordância do Prof. Alberto dos Reis, Idem, pag. 113 e ss.]

Portanto, a sentença (despacho) inexistente, no dizer do Prof. Alberto dos Reis [Idem, pag. 114.], é um mero ato material, um ato inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com a aparência de sentença, mas absolutamente insuscetível de vir a ter a eficácia jurídica da sentença. [Em sentido diferente, defendendo uma interpretação extensiva, do preceituado no art. 615.º, n.º 1 al. d) do CPC, enquanto nulidade por excesso de pronúncia, vide Ac. da RG de 02/06/2016 já citado, mas com um voto de vencido.]

*3. [Comentário] Sobre o assunto discutido no acórdão, pode ver-se Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil I (Lisboa 2022), 629.

MTS