Intervenção principal;
direito de regresso; intervenção acessória*
I. O sumário de RL 18/4/2024 (422/23.9T8CSC-A.L1-6) é o seguinte:
1.- No âmbito do seguro de responsabilidade civil facultativo, a intervenção provocada da seguradora, suscitada pela ré, demandada como lesante, só pode por regra ocorrer acessoriamente e não a título de intervenção principal, pois que não é aquela sujeita passiva da relação material controvertida que existe entre o segurado lesante e o terceiro lesado;
2. – O referido em 5.1., não obsta, porém, a que, excepcionalmente, possa o lesado deduzir a intervenção principal provocada da sua Seguradora, ao abrigo do disposto no nº 3, do art.º 316º, do CPC;
3. – A faculdade referida em 5.2., tem lugar quando, ao abrigo do art.º 140º, nº 2 e 3, do REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO, preveja v.g. o contrato de seguro o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Mostra-se a presente apelação relacionada com decisão que põe termo a incidente de intervenção de terceiros, estando, portanto, em causa uma decisão que pôs termo a incidente processado autonomamente, logo, em tese susceptível de apelação autónoma ao abrigo do disposto no art.º 644º,nº1, alínea a), do CPC, o qual reza que cabe recurso de apelação “Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente”.
Não tendo a referida decisão deferido a requerida – por D - intervenção provocada [nos termos do art.º 316º, nº3, alínea a), do CPC], nada obsta, portanto, ao conhecimento por este tribunal do objecto recursório, em razão de impugnação deduzida nos termos do art.º 644º, nº1, alínea b), in fine, do CPC.
E conhecendo.
Mostra-se o thema decidenduum relacionado com questão que vem há muito merecido diversas abordagens e soluções diferentes/antagónicas, maxime no âmbito da jurisprudência da segunda instância.
No essencial, e dispondo o art.º 316º, do CPC, que:
1 - Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.2 - Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.3 - O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.”,
o certo é que entendimento de alguma jurisprudência [que o tribunal a quo segue e perfilha] aquele que considera que estando em causa um contrato de seguro facultativo – como será o caso dos autos - e havendo existindo factispecie desencadeadora de responsabilidade civil do segurado [in casu da Ré D], então o interesse da seguradora será meramente secundário relativamente à relação material controvertida estabelecida entre o segurado lesante e o terceiro lesado, razão pela qual a seguradora apenas pode ser chamada a intervir na competente acção a título acessório, através do incidente da intervenção acessória provocada, nos termos do art.º 321º do CPC.
Ou seja, nas referidas situações, não é a seguradora contitular da relação material controvertida [como o exige a alínea a), in fine, do nº3, do art.º 316º, do CPC, e para efeitos de utilização do incidente de intervenção de terceiros e de intervenção provocada ], mas apenas sujeito passivo da relação jurídica que decorre do contrato de seguro, relação última esta que, sendo apenas conexa com a relação material controvertida, permite que seja a seguradora (como terceiro contra quem o réu de uma acção pode agir em acção de regresso) chamada como auxiliar na defesa [cfr. art.º 321º, do CPC].
O referido entendimento, que é aquele que o tribunal a quo perfilha [e sufraga na decisão recorrida], é o mesmo que se mostra v.g. seguido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em Acórdão de 29/10/2020 (Proferido no Processo nº 1083/19.5T8VCT-A.G1, e estando disponível em www.dgsi.pt), e no qual se conclui (No mesmo sentido, vide v.g. o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa 27/11/2008 [proferido no Processo nº 8398/08-2], do Tribunal da Relação do Porto de 3/5/2011 [proferido no Processo nº 1870/09.2TBVCD-B.P1] e de 30/5/2016 [proferido no Processo nº 296/07.7TBMCN.P1], e os do Tribunal da Relação de Guimarães de 1/10/2015 [proferido no Processo nº 345/13.0TBAMR-A.G1], de 27/2/2020 [proferido no Processo nº 1677/19.9T8VCT-A.G1], de 21/5/2020 [proferido no Processo nº 2075/19.0T8VCT-A.G1], 26/11/2020 [proferido no Processo nº 645/19.5T8FAF-A.G1], todos eles disponíveis em www.dgsi.pt) que:
I - o âmbito do seguro de responsabilidade civil facultativo, a intervenção provocada da seguradora, suscitada pela ré, demandada como lesante, só pode ocorrer acessoriamente e não a título de intervenção principal;II- Só assim não será, podendo ser demandada diretamente a seguradora, ou ser deduzida a sua intervenção principal, quando tal se encontre expressamente previsto no contrato de seguro ou quando o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações diretas entre o lesado e o segurado”.
Já no âmbito da doutrina, mostra-se outrossim o aludido entendimento – seguido pelo tribunal a quo - perfilhado prima facie por MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (Em 29/07/2020, Jurisprudência 2020 (41), Intervenção principal, direito de regresso e intervenção acessória [...]), e, igualmente por RUI PINTO (Em Código de Processo Civil Anotado I - Vol. I - Artigos 1.o a 545., Almedina.), defendendo designadamente e expressis verbis este último que a intervenção da Seguradora deve fazer-se a título principal ou a titulo acessório, consoante o contrato de seguro seja obrigatório ou facultativo,respectivamente.
Ex adverso, todavia, a verdade é que existem diversas decisões igualmente da 2dª instância que enveredam por um entendimento divergente, v.g. considerando [como assim o decidiu o Tribunal da Relação de Évora, em Ac. de 4/6/2020 (Proferido no Processo nº 2767/18.0T8FAR-A.E1, e disponível em www.dgsi.pt.)] que “O incidente de intervenção principal provocada é o adequado para a Ré assegurar a presença na lide da seguradora para a qual havia transferido a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiro por sinistro decorrente da sua actividade de construção civil ”. (No mesmo sentido, vide v.g. os Acs. Tribunal da Relação de Guimarães de 6/01/2011 [proferido no proc. n.º 5907/09.7TBBRG-A.G1] e de 19/11/2015 [proferido no proc. n.º 814/13.1TJVNF-A.G1]; do Tribunal da Relação de Lisboa, de 7/11/2006 [proferido no proc. n.º 7576/2206-7]; do Tribunal da Relação do Porto de 6/07/2009 [proferido no proc. n.º 721/08.0TVPRT-A.P1] e de 15/11/2012 [proferido no proc. n.º 3868/11.1TBGDM-A.P1]; do Tribunal da Relação de Évora, de 11/01/2018 [proferido no proc. n.º 2812/16.4T8PTM-A.E1] e de 9/06/2022 [proferido no proc. n.º 2929/21.3T8FAR-A.E1], todos eles disponíveis em www.dgsi.pt.)
Em termos bastante sucintos, e socorrendo-nos das conclusões insertas no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19/11/2015 (Proferido no proc. n.º 814/13.1TJVNF-A.G1 e disponível em www.dgsi.pt.), tudo aponta para que a tese da admissibilidade – nas situações equivalentes às dos autos - do incidente de intervenção provocada assenta nos seguintes considerandos:
I- São pressupostos de admissibilidade da demanda comum que haja um estado de comunidade jurídica a respeito do objecto litigioso, ou que os litisconsortes sejam titulares de um direito ou obrigação pela mesma causa de facto e jurídica, ou que as pretensões dos litisconsortes sejam da espécie e se baseiem em causas de facto e de direito equivalentes.II- Tendo-se transferido através da celebração do contrato de seguro, assumidamente concebido como um contrato a favor de terceiro, o pagamento do quantum indemnizatório para a seguradora, perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis.III- Por essa razão, obrigando-se a seguradora para com o lesado a satisfazer a indemnização devida, fica aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário, razão pela qual, não sendo o segurado ou a seguradora, respectivamente, parte originária na demanda, nada impede que se suscite o incidente de intervenção provocada do segurado ou da seguradora, respectivamente, promovendo a apreciação da sua situação jurídica e constituindo a sentença caso julgado quanto a eles.
Tal equivale – para quem sufraga a última posição aludida - a dizer que, no essencial, e partindo do pressuposto de que o contrato de seguro é um contrato a favor de terceiro, nos termos dos artigos 443º e 444º, ambos do Código Civil, então ao outorgá-lo a seguradora assume a obrigação de suportar o risco, a obrigação de indemnizar, logo, pode o terceiro demandar directamente a seguradora ou o segurado, ou ambos em litisconsórcio voluntário.
Tendo presente os argumentos que suportam as “teses” em confronto, e importando definir qual a nossa posição, e, não obstante o respeito que nos merece o entendimento que ampara a apelação de D, certo é que estamos em crer que prima facie não pode o responsável por obrigação de indemnização decorrente de ilícito extra-contratual socorrer-se do incidente de intervenção provocada [nos termos do art.º 316º,nº3, do CPC] para chamar à acção contra si proposta a Seguradora com quem outorgou um contrato de seguro facultativo.
Para tanto, temos para nós que do disposto no nºs 2 e 3, do art.º 316º, do CPC, decorre com alguma segurança que o incidente de intervenção provocada mostra-se previsto e consagrado – no CPC - para situações de litisconsórcio necessário ou voluntário e, aquando da segunda situação e sendo deduzido pelo Réu, há-de este último dispor de interesse atendível em chamar a intervir nos autos outros litisconsortes voluntários e igualmente sujeitos passivos da relação material controvertida.
Precisando melhor, e tal como igualmente sucede na intervenção principal para efetivação do direito de regresso (nos termos do art.º 317º do CPC), deve o terceiro chamado ser, com o é o réu, também sujeito da relação material controvertida, situação que já não é exigível no âmbito da intervenção acessória provocada, sendo então o terceiro sujeito passivo de uma distinta relação material em que se funda a pretensão de regresso. (Cfr. António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., Quid Juris, pág. 147.)
Em suma, pacífico é para nós que a intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe sempre um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida (Cfr. SALVADOR DA COSTA, em Os Incidentes da Instância, 5ª Edição, Almedina, pág. 115), o que equivale a dizer que a relação material controvertida diz respeito a várias pessoas – art.º 32º, nº 1, do CPC.
Ora, porque estamos em crer que o adequado é considerar que pela celebração do contrato de seguro (a se)apenas decorrem obrigações para e entre as partes contratantes [aquilo que para a seguradora resulta da celebração de um contrato de seguro, é uma obrigação de prestar, e não de indemnizar (Cfr. MARIA de LEMOS HONRADO, em A INTERVENÇÃO DA SEGURADORA NAS ACÇÕES PROPOSTAS CONTRA O SEGURADO, Dissertação submetida para obtenção do grau de Mestre em Direito - Ciências Jurídicas Forenses, página 58 e acessível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/17319/1/Honrado_2013.pdf.)], não estando, portanto, em causa um contrato a favor de terceiro, nos termos do art.º 443º do CC, ou seja, não transforma o contrato de seguro a outorgante seguradora em titular da relação material controvertida que existe entre lesante e lesado, mas sim de uma relação com ela conexa (a que deriva do contrato de seguro ), eis porque não podemos perfilhar o entendimento que suporta a pretensão recursória.
Neste conspecto, e como bem chama à atenção RUI PINTO (Ibidem, pág. 469.) faz pouco sentido defender-se que “em qualquer caso de responsabilidade de seguradora estamos perante devedores solidários, podendo aquela, ser demandada directamente pelo lesado”, havendo antes que distinguir “consoante o regime aplicável ao contrato de seguro”.
Ou seja, pressupondo o incidente de intervenção provocada uma situação de litisconsórcio (art.º 316º, do CPC)e, apenas existindo esta última quando a relação material controvertida respeita a várias pessoas (art.º 32º, nº 1, do CPC ), então porque no caso da responsabilidade civil do segurado a subjacente relação material controvertida é a que existe entre o segurado lesante e o terceiro lesado – não tendo a seguradora um interesse próprio e paralelo ao do segurado lesante, no confronto com o terceiro -, forçoso e congruente será – no nosso entendimento - concluir não poder haver lugar in casu ao supra referido incidente de intervenção de terceiros.
É vero que, não se olvida, que ao abrigo do disposto no art.º 140º, nºs 2 e 3, da DL n.º 72/2008, de 16 de Abril [que aprova o REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO, rezando ambos que “2 - O contrato de seguro pode prever o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado. 3 - O direito de o lesado demandar directamente o segurador verifica-se ainda quando o segurado o tenha informado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador], e apesar de como vimos supra a relação material controvertida dizer respeito ao segurado lesante e ao terceiro lesado, nada obsta porém a que seja o próprio contrato de seguro a prever o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado.
Tal é o que acontece, como decorre do item de facto nº 3.1., em relação à apólice n.º …61 [referente a RESPONSABILIDADE CIVIL PROPRIETÁRIO DE IMÓVEIS] e da qual consta como Seguradora a F e como tomadora de seguro a Ré D.
Destarte, em face de tudo o supra exposto, deve então a apelação proceder apenas parcialmente, devendo admitir-se o Incidente de intervenção principal provocada da seguradora F [não porque assim o permite o disposto no art.º 316º, nº 3, do CPC e em face dos sujeitos da relação material controvertida tal como esta é pela demandante delineada nos autos, mas tão só porque tal se encontra expressamente previsto no contrato de seguro].
*3. [Comentário] Em MTS, CPC online (2024.12), art. 316.º, 9, (b), escreveu-se o seguinte: "A circunstância de o terceiro interveniente ter de
ser alguém que podia ter sido demandado em litisconsórcio com o réu inicial
exclui a aplicação do n.º 3, al. a) [do art. 316.º CPC] à generalidade das situações de
sub-rogação decorrentes da realização da prestação por um terceiro"
MTS
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