"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/01/2025

Jurisprudência 2024 (95)


Litigância de má-fé;
alteração da verdade dos factos

1. O sumário de RC 23/4/2024 (3828/23.0T8CBR.C1) é o seguinte:

I – Não é a parte que envia uma carta para o domicílio da outra parte na relação contratual que tem o ónus de saber se a mesma chegou ou não ao conhecimento do destinatário, bastando que pratique todos os atos para que a mesma chegue ao seu destinatário, ou seja, os atos necessários e suficientes que coloquem o destinatário em condições de a receber e ter acesso ao respetivo conteúdo.

II – Se o fornecedor de energia elétrica (declarante) enviou para a morada constante do contrato uma carta, que não foi devolvida, praticou os aludidos atos necessários e suficientes, pelo que, se a contraparte (declaratário) não a leu, só disso se pode queixar e tal omissão só a si é imputável.

III – Assim, cabia ao destinatário rececionar e tomar conhecimento do conteúdo da carta/declaração, o que não fez por culpa sua ou incúria, pelo que a referida comunicação se deve ter por eficaz, nos termos do disposto no art.º 224.º, n.º 2, do Código Civil, interpretação esta que não padece de inconstitucionalidade.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"D. Se a requerente litiga de má fé.

No que a esta questão respeita, alega a recorrente que não litigou de má fé, com o fundamento em que não actuou dolosamente nem com negligência grave, nem com o intuito de prejudicar a requerida, até porque não recebeu a comunicação de 23/8, informando da possibilidade do corte.

Na sentença recorrida, em resumo, concluiu-se pela existência de má fé por parte da requerente, com o fundamento em que a mesma alegou no requerimento inicial factos de que tinha conhecimento que não correspondiam à verdade e que tinham importância no desfecho da acção, designadamente que não lhe foi enviada qualquer comunicação escrita avisando da possibilidade de corte de electridade, vindo-se, ao invés, a apurar que lhe foram enviadas cartas e SMS, a disso avisar, bem como a indicar/agendar as datas de visita de um técnico para a mudança do contador, bem como contactos telefónicos, com vista à mudança do contador, o que tudo resultou infrutífero.

Para além de que negou a chamada telefónica referida no item 19.º, apenas vindo a admitir a sua veracidade após a junção aos autos da respectiva gravação, o que tudo constitui “comportamento processual reprovável”.

Posto isto, impõe-se começar por clarificar, antes de nos debruçarmos sobre o “mérito” de tal consideração/condenação, que, para tal juízo de censura processual, relevam apenas e só os factos dados como provados; ou seja, no raciocínio lógico (silogismo judiciário) que conduz à condenação de alguém como litigante de má-fé, a premissa menor só pode ser composta pelo cotejo entre o que a parte alegou e o que, em oposição ao alegado, consta dos factos dados como provados.

Dito doutra forma, o tribunal não pode alicerçar um juízo sobre a má-fé no que se fez constar na motivação da decisão de facto (e, muito menos, na de direito); assim como não pode extrair um juízo de má-fé dum facto não provado, uma vez que, todos o sabemos, num processo, um facto não provado não é sinónimo da prova positiva do facto contrário.

Tendo isto presente, importa salientar que, cotejando a alegação da requerente constante do requerimento inicial e os factos dados como provados verifica-se, efetivamente, que contrariamente ao alegado pela requerente, demonstrou-se a veracidade de todas as comunicações efectuadas entre as ora partes, melhor descritas nos itens 11.º a 14.º e 18.º e 19.º, com vista à substituição do contador e/ou corte/religação da electricidade no escritório da requerente.

Mais do que isso, a requerente só admitiu a existência do contacto telefónico mencionado no item 19.º, depois de ter sido junta a respectiva gravação.

Trata-se do núcleo dos factos essenciais em que a requerente baseia a sua pretensão.

Assim, em nossa opinião tem de se concluir que a requerente alterou a verdade de factos relevantes (essenciais, segundo o art. 5.º/1 do CPC) para a decisão de causa.

Pode/deve ser considerado litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver, designadamente, deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou quem tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa (cfr. art. 542.º/2/a) e b) do CPC).

Significa isto que a mera falta de razão – quer quando a parte não demonstra a sua versão factual quer ainda quando se demonstra a versão factual oposta – não é por si só suficiente para legitimar uma condenação como litigante de má-fé (em tal hipótese, a “sanção” está justamente na improcedência da sua pretensão ou oposição); sendo necessário, para poder ser proferida uma condenação como litigante de má-fé, que a oposição entre a versão alegada e a que resultou provada seja subjectivamente imputável ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração intencional ou, pelo menos, consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes exige a negligência grave, grosseira.

Trata-se de factos pessoais, relativamente à requerente, de que esta, necessariamente, tinha de ter conhecimento, de que apresentou uma versão completamente oposta do que se veio, efectivamente, a demonstrar, o que, face ao exposto, integra os fundamentos para que a requerente seja, como o foi, condenada como litigante de má fé.

Esta, apenas questionou a existência de tais fundamentos, não tendo suscitado a questão da fixação e/ou redução dos montantes da multa e/ou indemnização fixadas na decisão recorrida, pelo que, quanto a tal, nada há a referir."

[MTS]