“A requerente intentou, como incidente da ação de divórcio, o presente procedimento cautelar de arrolamento (art. 409.º, n.º 1 do CPC).
O procedimento cautelar de arrolamento não é daqueles em que o legislador excluiu a audição prévia ao decretamento da providência.
Em regra, o requerido deve ser sempre ouvido salvo se existir risco sério para o fim ou a eficácia da providência (art. 366º, nº 1 do CPC). “Quando a providência se destine a evitar uma lesão e a apreciação objectiva do circunstancialismo determine a inadmissibilidade de qualquer dilação, o juiz deve dispensar a audiência do Requerido, valorando o fim da providência (razões objectivas). O factor da eficácia poderá ligar-se preferencialmente a razões de ordem subjectiva inerentes à pessoa do Requerido, à semelhança do que ocorre no arresto” (ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA in Código de Processo Civil Anotado, p. 445).
Assim, há que aferir se a audiência prévia do requerido, capaz de eliminar o efeito surpresa da medida cautelar, permitirá àquele inutilizar todo o interesse da medida cautelar, tendo sempre presente que a regra estabelecida é a da sua audição. Na verdade, não se olvide que o arrolamento consubstancia uma providência cautelar onde se verifica, per si, um perigo e que o legislador estipula expressamente que dispensa de audição prévia do Requerido há-de ser a excepção e não a regra.
Na apreciação do risco da audiência do requerido, o juiz não está dependente da iniciativa do requerente da providencia: mesmo que este assim não tenha requerido, os factos por ele alegados e provados podem levar o juiz a dispensar oficiosamente a audiência imediata do requerido.
Ora, volvendo aos autos, além de não ter sido requerida essa dispensa, entende este Tribunal que nada justifica a mesma. Isto porque, não obstante estarem em causa bens móveis, de fácil dissipação, a verdade é que além de o casal já ter dissolvido o casamento em ../../2023, por mútuo consentimento, alega a Requerente que “há largos meses que o Requerido mudou as fechaduras das portas (..) impedindo o acesso da aqui Requerente aos seus bens e ao uso do referido prédio”, não sendo, assim, descrita nenhuma conduta actual e iminente do requerido que justifique a sua dispensa.
Em conformidade com o exposto, deverá prosseguir-se a tramitação ulterior dos autos, com audição do requerido.”
Insurge-se a Apelante contra o decidido, com os seguintes fundamentos:
- há largos meses que a recorrente não consegue aceder àquele prédio, tendo o recorrido mudado de fechaduras com o propósito de impedir o acesso da requerente àquela moradia;
- ao ordenar a audição do requerido antes do decretamento do arrolamento vai por em causa a eficácia da providencia cautelar requerida;
- no arrolamento como preliminar ou incidente da ação de divórcio, o requerente não carece de alegar e provar o justo receio de extravio e de dissipação de bens comuns ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro – artigo 409º, nº3, CPC;
- tal facto justifica também a não audição do requerido ao abrigo do disposto no art. 366º, nº1, CPC, uma vez que a audiência do mesmo, nestas situações de rutura e de crise da vida conjugal, é suscetível de pôr em risco o fim ou a eficácia da providência, atenta a presunção, implícita no art. 409°, n° 3 do CPC, da existência de fundado receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens.
Desde já adiantamos ser de dar razão à Apelante.
Encontrando-nos perante um procedimento cautelar de arrolamento, instaurado pela requerente por apenso a um processo de divórcio (já findo), ao abrigo do disposto nos nºs. 1 e 3, do artigo 409º, do Código Civil, sob a epígrafe, “Arrolamentos Especiais”:
“1. Como preliminar do divórcio ou incidente de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento dos bens comuns ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro.
3. Não é aplicável aos arrolamentos previstos nos números anteriores o disposto nº nº1do artigo 403º.
Se, durante anos, a jurisprudência e a jurisprudência vinham sustentando que nos arrolamentos especiais a que se reportava, o então artigo 427º – como preliminar do divórcio ou incidente de separação judicial e bens, declaração de nulidade ou anulação de casamento –, não referindo aquela norma o justo receio de extravio ou dissipação de bens, ele não tinha de ser alegado nem provado no processo, não constituindo requisito de tal tipo de arrolamento, o DL nº 329-A/95, aditando um nº 3 a tal artigo veio a consagrar legalmente essa interpretação [---].
No procedimento cautelar de arrolamento – seja no arrolamento geral, seja nos arrolamentos especiais a que se refere o artigo 409º CC – o legislador nada diz quanto à necessidade de audiência prévia do requerido, levantando-se a questão de saber se é de aplicar a regra geral do nº2 do artigo 366º CC, segundo a qual o tribunal deve, em princípio ouvir o requerido, exceto se a audição puser em risco o fim ou a eficácia da providência, ou se o contraditório dever ser dispensado, atenta a natureza e as finalidades desta providência cautelar.
Segundo Marco Carvalho Gonçalves, visando o arrolamento impedir o extravio, a ocultação ou a dissipação de bens ou de documentos, considerando as finalidades desta providência, a mesma deve, por norma, ser decretada sem o contraditório prévio do requerido, sob pena de se comprometer, de forma irremediável, o efeito útil do arrolamento. “Na verdade, conhecendo o requerido de antemão a pretensão do requerente, corre-se o risco de aquele praticar os atos de extravio, ocultação ou dissipação de bens ou de documentos que o requerente pretendia precisamente evitar através do recurso a esta providência cautelar [Marco Carvalho Gonçalves, “Tutela cautelar Conservatória: Perspetivas Jurisprudenciais sobre o Arresto e o Arrolamento”, p.55].
Contudo, ainda segundo tal autor, nada dispondo o Código de Processo Civil quanto à dispensa de audição prévia do requerido, impõe-se aplicar o regime geral do artigo 366º, nº1, devendo o juiz, através de despacho fundamentado, decidir dispensar ou não essa audição prévia consoante entenda que a mesma é ou não suscetível de comprometer a urgência ou o efeito útil da providência [Em igual sentido, Lucinda Dias da Silva, “Processo Cautelar Comum, Principio do contraditório e dispensa de audição prévia do requerido”, Coimbra editora, p.175.].
A dispensa de audição prévia do requerido pressupõe, a verificação de três tipos de circunstancias:
a) que exista risco para o efeito útil do processo a acautelar;
b) que tal risco seja sério;
c) que o efeito útil seja posto em causa pelo facto de o exercício imediato do contraditório (audição do requerido) contender com o fim ou eficácia da providência [Lucinda Dias da Silva, “Processo Cautelar Comum, Principio do contraditório e dispensa de audição prévia do requerido”, p.158.].
E, tratando-se de arrolamento como preliminar ou na sequência de divórcio visa assegurar a conservação do património comum até à partilha.
No caso em apreço, tendo em vista as especiais finalidades desta providência, o circunstancialismo fáctico alegado pela requerente satisfaz os três referidos requisitos: alega a requerente que, após o divórcio, o requerido mudou a fechadura das portas exteriores da casa que possuem em Portugal (bem comum de ambos), impedindo a requerente do acesso aos seus bens e ao uso da casa, peticionando o arrolamento dos bens móveis que aí se encontrem por recear o extravio ou dissipação de tais móveis do património conjugal.
Tal factualidade, é de molde a recear que, a ser cumprido o contraditório prévio, o requerido se apresse a ocultar ou desfazer dos bens móveis que aí se encontram, antes que tal arresto venha a der decretado – face à natureza dos mesmos –, diminuindo, ou inutilizando, o efeito inútil da providência que viesse a ser decretada.
A decisão recorrida, apesar de reconhecer encontrarem-se em causa bens móveis, de fácil dissipação, considerou não se justificar a dispensa de audição prévia, pelo facto de o casal já ter sido dissolvido o casamento em ../../2023, alegando a Requerente que há largos meses que o requerido mudou a fechadura das portas (…) impedindo o acesso da aqui requerente aos seus bens e ao uso do prédio”, não sendo descrita nenhuma conduta atual e eminente do requerido que justifique tal dispensa.
Contudo, as razões que aqui justificam a dispensa da audição prévia não se prendem com a urgência no arrolamento, mas, com o facto de que, se lhe for dado conhecimento prévio da instauração do procedimento, o ponha em situação de alerta, dando-lhe oportunidade de, rapidamente, e antes de ser proferida decisão na providência, ocultar ou se desfazer de alguns dos bens do património comum.
O juiz deve optar pela dispensa do contraditório, independentemente da iniciativa do requerente, se se convencer de que a audição do requerido coloca em perigo a utilidade ou a eficácia da providência, tendo o risco, de o contraditório provocar maiores danos ao requerido do que benefícios ao requerente, de ser sério. Deve afastar-se o contraditório prévio sempre que o seu imediato exercício seja suscetível de afetar o efeito útil do procedimento, mesmo que só para o diminuir [Eugénia Maria de Moura Martinho da Cunha, artigo citado, p. 39.]
No arrolamento em questão, o decretamento sem a sua audição prévia, em princípio, não acarretará prejuízos relevantes ao requerido, uma vez que tal providência não visa o desapossamento dos bens, mas tão só a sua descrição, sendo o mesmo nomeado o seu fiel depositário.
Com efeito, recaindo o arrolamento sobre bens móveis ou imóveis, o requerido, sendo nomeado depositário desses bens (e ao contrário do que acontece com a penhora) pode continuar a utilizá-los, já que essa utilização não é incompatível com a natureza do arrolamento [Marco Carvalho Gonçalves, local citado, p. 56.].
Justifica-se, assim, no caso em apreço, a dispensa de audição do requerido, a fim de acautelar a eficácia da providência [Em igual sentido, a propósito de contas bancárias, se pronunciou o Acórdão de 12-10-2021, relatado por Luís Cravo, disponível in www.dgsi.pt.].
A apelação será de proceder, sem outras considerações."
[MTS]