Processos de jurisdição voluntária;
vinculação ao pedido; nulidade da sentença*
O tribunal, não pode, nos termos do artigo 609º n. 1 do Código de Processo Civil, declarar a anulação de todas as cláusulas do testamento, quando apenas foi pedida a anulabilidade da “disposição testamentária a instituir o requerido administrador dos bens.”
2. Na fundamentação do acórdão alegou-se o seguinte:
"A presente ação de alteração da regulação das responsabilidades parentais é um processo tutelar cível ( artigo 3º alínea c) do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pelo Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro.
Enquanto processo tutelar cível, tem a natureza de processo de jurisdição voluntária – artigos 3º alínea c) e 12º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
Assim, está sujeito aos princípios assentes nos artigos 986º a 988º do Código de Processo Civil, que se resumem aos seguintes: a) predomínio do princípio do inquisitório (artigo 986.º, n.º 2), b) predomínio da equidade sobre a legalidade (artigo 987º) e c) livre modificabilidade das decisões ou providências (artigo 988º).
Na vertente do pedido, nos processos de jurisdição voluntária, o princípio do dispositivo está limitado e “o juiz não está adstrito ao pedido formulado, podendo afastar-se dele, na medida em que aquilo que lhe é exigido é a regulação do interesse fundamental em questão pela forma que seja mais conveniente e oportuna. “ (cf. neste sentido Abrantes Geraldes e Paulo Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anotado vol. II, pág. 460).
O objeto na presente ação, em princípio, não devia ter extravasado o objeto tipificado do processo, relativo às responsabilidades parentais.
No entanto, na sequência de informações médicas e registos clínicos da progenitora juntos aos autos, a Ex.ma Procuradora do MP, em 02.11.2022, pediu que se declarasse anulada “a disposição testamentária a instituir o requerido administrador dos bens, nos termos do disposto no art.º 2199.º do Código Civil”, o que foi admitido em 04.11.2022, com a concessão de prazo ao Requerente para se pronunciar sobre esta matéria e apresentar provas.
O Requerente, ora Recorrido, aceitou o alargamento do âmbito do processo, tendo impugnado a alegação do MP e indicado prova.
Como se constata a presente ação de alteração das responsabilidades parentais teve uma tramitação sui generis e, após impulso do MP, passou a ter por objeto a validade de uma cláusula do testamento outorgado em ........2021 por DD, mãe dos menores.
Atenta a factualidade julgada provada em ambas as instâncias, é indiscutível estar comprovada a falta de capacidade da testadora, mãe dos menores, ora Recorrentes, no momento em que lavrou o testamento, para entender o sentido e alcance sentido das suas declarações.
Consequentemente como decidiu a sentença de 1ª instância, nessa parte, não revogada pelo acórdão recorrido, estão verificados os requisitos previstos no artigo 2199º do Código Civil, para a anulação do testamento.
Assim sendo, as conclusões 1ª a 3ª, 6ª a 8ª, 10ª e 11ª dos Recorrentes são irrelevantes, não está em causa, que se verificam os fundamentos de facto e de direito, para a anulação do testamento. Não foi, pois, violado o artigo 2199º do Código Civil.
Na conclusão 4ª, os Recorrentes sustentam ser o testamento nulo, nos termos do artigo 2186º do Código Civil, por ter sido determinado por um fim contrário à lei, ou à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes.
No entanto, esta questão não foi conhecida nem na sentença de 1ª instância, nem no acórdão recorrido e como é entendimento unânime da doutrina e jurisprudência, há muito consolidada as questões novas não podem ser apreciadas no recurso. Os recursos visam modificar decisões e não a criar soluções sobre matéria nova. (cf. acórdão do S.T.J. de 6.2.87, B.M.J. n.º 364, pág. 719 e na doutrina Castro Mendes, “ Recursos”, 1980, pág. 27, Armindo Ribeiro Mendes, “ Recursos em Processo Civil”, 1992, págs.140 e 175 e Abrantes Geraldes “ Recursos no Novo Processo Civil, 2ª edição págs. 92 e 93 e acórdãos do STJ citados).
A única questão a decidir está em saber se o tribunal da 1ª instância ao declarar a invalidade do testamento na totalidade, estava a proferir condenação nula por violação do disposto nos artigos 609º n.º 1 e 615º n.º 1 al. e) do CPC.
Na verdade o acórdão recorrido, não obstante reconhecer não estar em causa a falta capacidade de querer e entender o sentido de qualquer declaração por parte da testadora, decidiu que o tribunal a quo não podia decidir sobre a totalidade de todo testamento, por tal não ter sido objeto do pedido.
Atento [o] disposto nos artigos 3º n.º 1 e 5º n.º1 do CPC, que consagram o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objetiva da instância, são as partes, que circunscrevem o objeto do litígio e a sustentação fática das suas pretensões. Consequentemente a sentença tem de inserir-se no âmbito do pedido e da causa de pedir, não podendo o juiz condenar em quantidade ou objeto diverso do que se pedir.
O autor, ao concluir a sua petição, deve formular o pedido, indicando com precisão o que pretende do tribunal - que efeito jurídico quer obter com a ação” (cf. Antunes Varela, em Manual de Processo Civil, edição de 1984, p. 233 e 234 ).
Ao autor incumbe formular e definir a pretensão. É um direito que lhe assiste mas, ao mesmo tempo, é um ónus que sobre si impende e cuja insatisfação - total ou parcial - contra si reverte.
Através do pedido o autor indica a providência requerida, circunscrevendo o objeto do processo, não cabendo ao juiz decidir se à situação real conviria uma providencia diversa ou com maior amplitude.
No caso apesar de a questão da verificação dos requisitos previstos no artigo 2199º do Código Civil, ter sido decidido num processo de jurisdição voluntária, como consta da fundamentação do acórdão recorrido, na matéria da anulação do testamento, o juiz está sujeito à legalidade estrita. Com efeito, os interesses em jogo, quanto à validade das cláusulas testamentárias face à capacidade de querer e perceber do testador, são já os típicos interesses de um litígio judicial, de natureza essencialmente patrimonial (os interesses dos herdeiros) e em que se atende à necessidade de defesa da legalidade que a previsão da anulabilidade visou proteger: a observância da efetiva vontade do testador, a correspondência dos negócios jurídicos à realidade.
Assim, quanto à questão da anulabilidade do testamento, o tribunal está sujeito ao princípio do dispositivo e, por isso, carece de fundamento imputar ao acórdão recorrido a violação dos artigos 986º n.º 2 e 987º do CPC.
Os Recorrentes invocam o acórdão do STJ de 11.02.2015, processo n.º 607/06.2TBCNT.C1.S1, relator Abrantes Geraldes, que tem o seguinte sumário: "I. O princípio do dispositivo impede que o tribunal decida para além ou diversamente do que foi pedido, mas não obsta a que se profira decisão que se inscreva no âmbito da pretensão formulada. II. Pedindo os autores o reconhecimento de um muro que delimita os quintais dos dois prédios urbanos confinantes, não constitui excesso de pronúncia, nem fere o princípio do dispositivo a decisão judicial que com fundamento na presunção legal do artigo 1371º, n.º 2 do CC, reconhece que o muro é compropriedade de ambas as partes.”
Como refere o citado acórdão, o princípio do dispositivo tem sido interpretado de forma menos rígida na jurisprudência, como são exemplo, o Assento n.º 4/95, publicado no DR de 17.05, ao admitir que numa ação em que seja deduzida uma pretensão fundada num contrato cuja nulidade seja oficiosamente decretada o réu seja condenado a restituir o que tenha recebido no âmbito desse contrato, por aplicação do art. 289º do CC, desde que do processo constem os factos suficientes e o AUJ nº 3/01, publicado no D.R., I Série-A, de 9-2, que firmou a jurisprudência segundo a qual numa ação de impugnação pauliana em que tenha sido erradamente formulado o pedido de declaração de nulidade ou de anulação do ato jurídico impugnado o juiz deve corrigir oficiosamente esse erro e declarar a ineficácia que emerge do direito substantivo.
O acórdão do STJ de 07.04.2016, processo n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1, relator Lopes do Rego, admite a correção de um deficiente enquadramento normativo do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou requerente, convolando-se para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa.
No entanto, como já explicava Alberto dos Reis, no CPC Anotado, vol. V, pp. 67 e 68, com a sua habitual clareza, o “juiz não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade os limites dos pedidos formulados pelas partes.”
Pode condenar em menos e numa medida menos radical, não pode é condenar em mais, nem em objeto diverso.
As partes dispõem do processo, como da relação jurídica material, o tribunal não pode ser instrumento de tutela de nenhum dos litigantes, no caso, do demandante e completar ou a alterar o pedido formulado.
Apesar de se aceitar que o princípio do dispositivo deve ser mitigado, o que continua a ser entendimento pacifico é a impossibilidade do juiz ultrapassar o limite resultante do pedido, mesmo no domínio das denominadas dívidas de valor ( cf. neste sentido o Assento 13/96 e o AUJ n.º 9/15).
Recaí sobre o autor o ónus de requer a ampliação do pedido primitivo, não o tendo requerido o tribunal não pode ultrapassar o pedido condenando em quantidade superior ou em objeto diverso do peticionado.
Ora, no caso, tendo o MP pedido a anulação da “disposição testamentária a instituir o requerido administrador dos bens, nos termos do disposto no art.º 2199.º do Código Civil”, como decidiu o acórdão recorrido, não obstante a causa de pedir se ter consubstanciado numa causa geral de anulabilidade - a incapacidade acidental da testadora, o juiz não podia oficiosamente anular as demais.
Não é pela circunstância de no pedido apresentado pelo MP constar a referência ao artigo 2199º do Código Civil, que se pode interpretar o pedido, como abrangendo todas as cláusulas do testamento. O pedido formulado é claro e preciso , limita-se à anulação da “disposição testamentária a instituir o requerido administrador dos bens.”
De referir, que apenas a questão de saber se o Requerente AA da ação de alteração de responsabilidades parentais podia continuar a ser administrador dos bens deixados ou doados aos seus filhos pela testadora ou pelos seus pais, avós maternos, permitiu, nos termos do artigo 91º do Código de Processo Civil que nessa ação cujo objeto é a regulação das responsabilidades parentais se pudesse conhecer da anulação da disposição testamentária que o nomeava administrador.
Note-se que a anulação do testamento não é da competência dos Juízos de Família e Menores, por que não integra a previsão de nenhuma das alíneas os artigos 122º e 123º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, nº 62/2013, que estabelecem a competência desses Juízos.
Os Recorrentes na conclusão 10ª invocam ainda o artigo 292º do Código Civil, defendendo que não se justifica a anulação parcial, por estar demonstrada a incapacidade da testadora mas como se referiu, no caso, não está em causa, que da factualidade provada havia fundamento para se julgar anulado o testamento na totalidade. De resto, como refere o acórdão recorrido caso se entendesse que não era legalmente admissível a anulação de uma só cláusula, o pedido formulado pelo MP teria de improceder.
No entanto, a questão a decidir neste recurso, reside no respeito pelo princípio do dispositivo e em ter a sentença da 1ª instância, violado o disposto no artigo 609º n.º 1 do CPC.
A proibição contida neste normativo, da sentença condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir, está formulada em rigorosa conformidade com o princípio do dispositivo, mas também para que não resulte violado o princípio do contraditório.
Como decidiu o acórdão recorrido, apenas foi cumprido o contraditório, quanto à pretensão do MP, de anular a disposição testamentária que nomeava o requerente da ação, como administrador, ficando, por isso, definido o objeto desse incidente.
Por isso, não podia o juiz alterar e ampliar o pedido do MP, em representação dos menores e declarar anulado todo o testamento, sob pena de violação não só do princípio do dispositivo, como também do princípio do contraditório."
*3. [Comentário] O STJ decidiu indiscutivelmente bem, porque, no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, é reconhecido ao tribunal um poder inquisitório sobre factos e sobre provas (art. 986.º, n.º 2, CPC), mas não se liberta esse tribunal da vinculação ao pedido formulado no processo.
MTS
*3. [Comentário] O STJ decidiu indiscutivelmente bem, porque, no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, é reconhecido ao tribunal um poder inquisitório sobre factos e sobre provas (art. 986.º, n.º 2, CPC), mas não se liberta esse tribunal da vinculação ao pedido formulado no processo.
MTS