"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/01/2025

Jurisprudência 2024 (93)


Divórcio; partilha de bens bens comuns;
património comum


1. O sumário de RP 21/3/2024 (431/19.2T8AND.P1) é o seguinte:

I - Nos termos do artigo 1789º do Código Civil, os efeitos do divórcio retrotraem-se à data da propositura da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.

II - Resultando provado que os ex-cônjuges casaram sob o regime de comunhão de adquiridos, o montante depositado numa conta bancária, proveniente dos rendimentos do trabalho, é um bem comum.

III - Na partilha, devem ser relacionados não só os bens existentes no património colectivo do casal à data da propositura da acção de divórcio (se a momento anterior não deverem retrotrair os seus efeitos), mas também aqueles que a esse património cada cônjuge deve conferir, por lho dever.

IV - Deve ser conferido ao património colectivo do casal, para ulterior partilha, aquele bem ou direito de que um dos cônjuges se apropriou sem que a tal tivesse qualquer direito, e por via do que engrandeceu o seu património próprio à custa desse património colectivo.

V - Ainda que um dos cônjuges tenha levantado a quantia da conta bancária em momento anterior à propositura da ação de divórcio, tal quantia deverá ser relacionada no inventário como bem comum sob pena de haver um enriquecimento ilícito do ex-cônjuge.


2. Na fundamentação do acórdão afirmou-se o seguinte:

"C- Alteração da decisão de Mérito. [...]

A questão nuclear a analisar traduz-se na determinação sobre se os saldos bancários no total de 293.700,00 euros se são bens comuns ou próprios.

Neste segmento a sentença recorrida considerou em resumo o seguinte: «.. As contas existentes na Banco 2... e na Banco 1... são contas solidárias tituladas pelo autor e pela ré, devendo ser, em princípio, considerados bens comuns porque existentes à data da entrada da acção de divórcio, data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges, de acordo com o disposto nos artigos 1688º e 1789º do C. Civil.

Alegou o autor que os saldos das contas que relacionou eram bens próprios provindos de rendimentos exclusivamente seus, quer do trabalho, quer dos seus negócios.

De acordo com a própria alegação do autor e que se provou, sendo os rendimentos provindos, na constância do casamento do seu trabalho (não sendo relevante se é por conta de outrem ou por conta própria) esses rendimentos são bens comuns, nos termos previstos pelo artigo 1724º, conjugado com o disposto no artigo 1730º do C. Civil. Não provou (nem sequer alegou, apenas o referiu na audiência de julgamento, mas sem qualquer sustentação) que tais rendimentos provinham de doações ou de empréstimos de terceiros que lhe foram feitos apenas e exclusivamente a si.

Assim os saldos relacionados pelo autor nas contas bancárias identificadas nas verbas n.ºs 3 e 4 (da Banco 1... e da Banco 2...) devem ser relacionados como bens comuns e não como bens próprios

Em relação às duas contas existentes do Banco 3..., apurou-se que também provinham dos rendimentos da actividade do autor, apesar de tituladas também nome do seu irmão.

Assim não se aplica aqui a regra da solidariedade prevista pelo artigo 516º do C. Civil, sendo também os saldos relacionados nessas contas bens comuns.

A reconvinte pretende, no entanto, que sejam ainda relacionadas todas as verbas que o autor levantou das contas solidárias existentes na Banco 1... S. A. e na Banco 2..., no mês anterior à data da entrada da acção de divórcio.

Esta acção foi instaurada no dia 9 de Junho de 2015 e os levantamento foram efectuados pelo autor no decurso do mês de Maio de 2015, levantamentos identificados nos pontos 38º e 39º dos factos provados (o último levantamento ocorreu no dia 6 de Junho, a escassos dias da entrada da acção de divorcio, no dia 9) num total de 293.700,00 Euros.

O autor contrapôs a pretensão da autora com a cessação dos efeitos patrimoniais entre o casal e que se verificam na data da entrada da acção de divórcio, não tendo, nem autor, nem a ré, requerido que fosse fixada a data da separação de facto (1789º, n.º 2 do C. Civil).
Vejamos:

Estabelece o artigo 1689º, do C. Civil (Partilha do casal. Pagamento de dívidas)

1. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.
2. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes.
3. Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.

Do texto desta norma decorre que o património comum a partilhar deve ser definido não só pelo que nele existir no momento da dissolução do matrimónio, mas também por aquilo que cada um dos cônjuges lhe deve conferir, por lho dever.

Consequentemente, a partilha a realizar por dissolução do casamento não se limita aos bens identificados no património colectivo do casal, ao tempo da propositura da acção de divórcio; nela também se há-de levar em conta aquilo que cada um dos cônjuges dever a esse património. Essa é a letra da norma constante do art. 1689º, nº 1 do CC.- Neste sentido também o Acórdão do T. Rel. Porto de 16 /4/2013, proc. nº 133/08.5TBMGD-C.P1, Relator. Rui Manuel Correia Moreira disponível em www.dgsi.pt.

No caso em apreço, tendo-se apurado que apenas um mês antes (e o último levantamento dias antes) da instauração da acção de divórcio o autor, sem que tenha alegado ou provado qualquer motivo para o efeito, levantou e fez suas avultadas quantias de contas solidárias do casal, esse comportamento deve considerar-se como doloso e um enriquecimento injustificado à custa do património dos dois membros do ex-casal, empobrecendo a ré.

O autor deve repor o valor que retirou ao património comum para que seja partilhado nos termos do artigo 1689º, n.º 1.

Citando novamente o já referido Acórdão do TRP de 16-04-2013 (Acórdão que identifica as duas diferentes interpretações sobre o tema, mas adere à que por nós é também defendida):

- Deve ser conferido ao património colectivo do casal, para ulterior partilha, aquele bem ou direito de que um dos cônjuges se apropriou sem que a tal tivesse qualquer direito, e por via do que engrandeceu o seu património á custa do património colectivo».

E deve ser-lhe dada a possibilidade de o fazer no processo de inventário se o processo estiver pendente, sem necessidade de instaurar uma acção para o efeito.

Com efeito e continuando a citar o Acórdão do TRP de 2013 (e que cita também o Acórdão, no mesmo sentido, proferido pelo TRC de 8-11-2001, ao qual já nos referimos): solução defendida parte do texto da norma prevista pelo artigo 1689, n.º 1 do C. Civil (…) devem operar-se compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro; e a relativa à consequência deste princípio, segundo a qual o cônjuge que utilizou bens ou valores comuns deverá, no momento da partilha, compensar o património comum pelo valor actualizado correspondente; esses bens ou valores devem ser objecto de relacionação de modo a permitir aquela compensação…»

Ora, tal como o que sucedeu na situação em análise no Acórdão citado, o autor no mês que antecedeu a instauração da acção de divórcio, praticamente esvaziou o saldo das contas do casal, alegando nestes autos que o dinheiro era apenas seu, o que não provou, não tendo justificado os levantamentos para além do facto de achar que são seus, o que não se provou. Apropriou-se de mais de 290 mil euros, sendo facto notório e porque resulta da própria alegação do autor, segundo a qual a ré o tinha «expulsado de casa», que as relações entre o casal não eram boas.

A única intenção do autor foi (e que manteve ao considerar todo o dinheiro como seu) impedir a partilha desses valores.

Ter por certos estes factos e sujeitar o outro cônjuge a ir responsabilizar civilmente o respectivo agente, seu ex-cônjuge, por tal actuação claramente censurável, numa acção autónoma, é uma solução que a ordem jurídica não deve admitir. E não o deve admitir por duas ordens de razões: a primeira, porque assim estaria a acolher, pelo menos no imediato, como irrelevante uma conduta claramente culposa, isto é, passível de censura segundo o juízo da consciência ético-jurídica da comunidade, onerando a vítima dessa conduta com o ónus de intentar uma outra acção para ali ter de invocar e demonstrar novamente o seu direito; a segunda por razões de economia processual: não deve remeter-se para decisão em outra acção, a decorrer entre as mesmas partes, um litígio cujos elementos, após adequada discussão, estão todos presentes numa causa onde, por definição, deve ser dirimido (Acórdão do TRP citado).

Os ex-cônjuges já têm um processo de inventário instaurado e pendente/suspenso a aguardar pela decisão a proferir nestes autos, processo onde devem dirimir todas as questões relacionadas com os bens a partilhar e a sua repartição entre os dois interessados.

Tendo-se apurado que o autor a escassos dias da instauração da acção de divórcio fez sua quantia superior a € 290.000,00, deve tal quantia ser relacionada como bem comum e não o dispondo, operar-se na partilha a igualação dos direitos dos dois cônjuges, impondo-se que restitua a esse património (mais a correspondente actualização), a fim de que aí possa ser partilhado. O que, obviamente, implica a necessidade da sua relacionação no acto processual próprio para esse efeito.

Improcede pelo exposto o pedido formulado pelo autor na alínea d) da Petição Inicial e procede o pedido reconvencional deduzido pela reconvinte na alínea a), assim como da alínea b), juros de mora devidos desde a data dos levantamentos efectuados, mas apenas até à data da entrada da acção de divórcio na medida em que a partir desse momento o autor não estaria em mora se tivesse relacionado os valores levantados, porque teria cumprido com a sua obrigação, juros calculados à taxa legal de 4% (artigos 804º, 805º e 806º do C. Civil)…» (sic).

*
Aderimos á fundamentação jurídica da sentença acompanhando o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo:947/17.5T8CVL-C.C1.S1, Relator: JORGE ARCANJO, de 20-09-2023, disponível na base de dados da DGSI (local de origem de toda a jurisprudência citada) «Sumário : I - Do art. 1689.º do CC extrai-se um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges, e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento de outro, repondo-se, assim, o reequilíbrio patrimonial. II - Fazem parte do património comum do (ex)casal, com vista à partilha subsequente ao divórcio, não apenas os bens existentes à data da propositura da acção, mas também aqueles bens que ao património comum devem ser conferidos por um dos ex-cônjuges.».

Conforme se refere no citado acórdão que estamos a acompanhar dado o paralelismo com o caso presente: «… Sobre esta questão existem duas correntes jurisprudenciais:

A) Uma no sentido de que apenas deve ser partilhado o património comum do casal integrado pelos bens e direitos existentes à data da propositura da acção.

Os tópicos de argumentação são os seguintes:

Os efeitos patrimoniais do divórcio retrotraem-se ao momento da propositura da acção, ou àquele em que for expressamente requerido a momento anterior (art.1789 nº1 e 2 CC);

A lei não prevê a retroação dos efeitos patrimoniais do divórcio para momento anterior, ressalvando-se a situação do art.1789 nº2 CC;

Se no exercício dos poderes de administração de bens comuns um dos cônjuges alienou bens pertencentes ao património comum, os mesmos deixam de fazer parte de tal acervo e como tal não podem ser partilhados, restando ao outro cônjuge prejudicado exigir indemnização, a coberto do art.1681 nº1 CC, que pressupõe a demonstração da intenção de causar prejuízo.

No Supremo Tribunal de Justiça perfilharam esta orientação, os seguintes arestos:

Ac STJ de 17/11/1994 (proc n.º 86146) Relator -Miranda Gusmão, publicado na Colectânea de Jurisprudência- Acórdãos do STJ, ano II, tomo III, 1994, págs. 148 a 150), com o seguinte sumário:…
Ac STJ de 2/5/2012 (Agravo n.º 238/06.7TCGMR-B.G1.S1 - 6.ª Secção), relator Azevedo Ramos, com o seguinte sumário:
Ac STJ de 26/11/2014 (Revista n.º 2009/06.1TBAMD-B.L1.S1 - 2.ª Secção), relator -Tavares de Paiva ( disponível em www dgsi.), sumariando-se
Na jurisprudência das Relações, cf., por ex., Ac RP de 16/2/1995 (proc. nº 9420158), Ac RE de 21/2/2002 ( proc nº 2708/01), Ac RC de 29/4/2008 ( proc nº 598/04), disponíveis em www dgsi


B) Outra corrente sustenta, com base no nº1 do art.1689 CC, que os bens a partilhar são não apenas os que existam à data da propositura da acção, mas também aqueles bens que ao património comum devem ser conferidos por um dos cônjuges.

Neste sentido, o Ac STJ de 14/7/2022 (Revista n.º 4106/20.1T8VNG-B.P1.S1 - 1.ª Secção, Relatora -Maria Clara Sottomayor) ( não publicado na base de dados )no qual também estava em causa a questão de saber se devem integrar a relação de bens comuns, e ser objecto de partilha na sequência do divórcio, o valor de um automóvel que integrava o património comum do casal, alienado por um dos cônjuges, sem o consentimento do outro, bem como o valor do saldo bancário que um dos cônjuges levantou da conta do casal, em ambos os casos em data anterior à instauração da acção de divórcio, nele se concluindo o seguinte:

“I - Sem prejuízo de uma eventual ação de responsabilização do cônjuge administrador, nos termos do n.º 1 do art. 1681.º do CC, o processo de inventário, por ocasião do divórcio, com vista à partilha das meações, é o meio adequado para aferir das eventuais compensações devidas entre os patrimónios. II - O regime definido no art.1689.º do CC, ao determinar como se apura o património comum e a meação de cada cônjuge (“conferindo o que cada um deles dever a este património”), consagra um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges, e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento de outro. III - Devem, assim, ser relacionados no processo de inventário, para integrar os bens objeto de partilha, a quantia depositada em conta bancária e levantada exclusivamente pelo cônjuge administrador em proveito próprio, antes da proposição da ação de divórcio, bem como o valor dos automóveis comuns alienados em momento anterior ao da proposição da ação. IV - É ao cônjuge que fez o levantamento do dinheiro e que alienou bens móveis comuns que cabe o ónus da prova de demonstrar que os valores levantados da conta bancária e o produto da venda dos bens foi utilizado em proveito do casal e da família”.

Argumenta-se que:

Por força do “princípio geral de compensação, em associação ao princípio geral de proibição do enriquecimento, na fase da liquidação da comunhão, cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum tudo o que lhe deve. O cônjuge devedor deverá, assim, compensar nesse momento o património comum pelos benefícios obtidos no seu património próprio com sacrifício dos bens comuns. (…)

Em virtude de a alienação do automóvel e de o levantamento do dinheiro terem sido feitos, na constância do casamento, cerca de cinco meses antes de a ação de divórcio ser proposta, sem o consentimento do outro cônjuge, surgiu no património comum do casal um crédito correspondente ao valor atualizado do automóvel e do dinheiro.

O cônjuge cabeça de casal (também cônjuge administrador no caso do dinheiro: artigo 1678.º, n.º 2, al. a), do Código Civil) terá, assim, que compensar, no momento da partilha, no processo de inventário, o património comum, integrando no ativo da comunhão o valor do levantamento de 22.500, 00 euros, a não ser que demonstre, mas é a ele que cabe o ónus da prova, que o dinheiro foi utilizado em proveito comum do casal.

Idêntico regime vale para os automóveis. (…)

Remeter o cônjuge lesado para um processo comum, como entendeu o tribunal de 1.ª instância, em que aquele tem de provar, segundo as regras gerais de direito, nos termos do artigo 1681.º, n.º 1, do Código Civil, a intenção de prejudicar os direitos do outro cônjuge sobre a comunhão (ou seja, o dolo), praticamente inviabilizaria, ou dificultaria de forma excessiva e contrária à razão de ser da lei, a compensação de patrimónios e a igualação entre ambos na partilha (artigo 1730.º do Código Civil), permitindo que o mais afoito e menos respeitador da comunhão de vida fosse beneficiado.”

Conclui-se nesse aresto que “a aplicação de um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro, permite evitar esta situação de desigualdade. Senão fosse assim, verificar-se-ia um enriquecimento injusto de um dos cônjuges à custa do património comum, resultado avesso à vontade do legislador e incoerente com o regime jurídico global da partilha, centrado no respeito pela regra da metade consagrada no artigo 1730.º do Código Civil, norma inderrogável conforme Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-02-2022 (proc. n.º 322/13.0TVLSB.E1.S1) e num princípio geral de compensação de patrimónios, também aceite pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 21-04-2022 (proc. n.º 463/13). (…).

Os bens em litígio – o dinheiro levantado pelo cônjuge cabeça de casal e os dois automóveis – devem ser relacionados e objeto de partilha, a fim de se proceder às compensações entre patrimónios, executando-se a regra da metade, sem enriquecimento do património próprio de nenhum dos cônjuges à custa do património comum.”

Esta orientação foi também já assumida nos seguintes arestos das Relações - Ac RL de 14/1/1997 ( proc nº 0013831, Ac RC de 8/11/2001 ( proc nº 493/10) , Ac RL de 28/6/2007 ( proc nº970/2007), Ac RP de 16/4/2013 (proc nº 133/08), Ac RC de 18/10/2016 (proc nº 638/15), disponíveis em dgsi.pt ).

A solução adoptada:

Na situação dos autos, resulta dos factos provados que a transmissão da quota de que o réu era titular na sociedade D..., Lda., bem como a transferência do montante de € 71.000,00 realizada pelo réu para uma conta sua, tiveram lugar antes da instauração da acção de divórcio pela Autora, respectivamente, em Abril e em Maio de 2017, tendo a acção de divórcio sido proposta em Junho de 2018.

Verifica-se que nenhuma das partes pediu no processo principal de divórcio, a retroação dos efeitos patrimoniais do divórcio à data da cessação da coabitação, nos termos previstos no art. 1789.º, n.º 2, do CC, sendo certo que na factualidade provada na presente acção também não consta a data em que tal ocorreu.

Tanto a sentença da 1ª instância, como o acórdão recorrido seguiram a tese da primeira corrente jurisprudencial, citando expressamente os acórdãos do STJ nos quais se apreciaram situações similares à dos presentes autos, em que um dos cônjuges procedeu, sem o consentimento do outro, ao levantamento de dinheiro ou de aplicações financeiras antes da data da propositura da acção de divórcio e sem que algum dos cônjuges tenha pedido a retroação dos efeitos patrimoniais do divórcio à data da cessação da coabitação. Neles se decidiu que tais valores monetários não têm de ser incluídos na partilha no âmbito do processo de inventário e o cônjuge que se sentir prejudicado terá que reagir através da propositura de uma ação de indemnização de perdas e danos conforme decorre do art. 1681.º, n.º 1, do CC.

No balanceamento dos interesses em jogo, crê-se que a melhor solução é a seguida pela corrente jurisprudencial segundo a qual os bens a partilhar são não apenas os que existam à data da propositura da acção, mas também aqueles bens que ao património comum devem ser conferidos por um dos cônjuges, ancorada no princípio geral da compensação e no princípio da proibição do enriquecimento sem causa, como se decidiu no citado Ac STJ de 14/7/2022 (desta Secção ).

Implicando a plena comunhão de vida na constância do matrimónio uma osmose entre as diferentes massas patrimoniais, o princípio da equidade nas relações patrimoniais entre os cônjuges impõe a reintegração do equilíbrio patrimonial inicial. Muito embora não haja uma norma legal específica, o princípio geral da compensação deduz-se claramente do art.1689 CC.

A doutrina civilista considera ser esta a melhor solução, porque baseada no princípio geral de compensação e da proibição do enriquecimento indevido.

Para a Prof. Rita Lobo Xavier – “(…) deve entender-se que o património empobrecido tem um direito a uma compensação no momento da dissolução do regime, em qualquer situação em que se verifique o enriquecimento de uma das massas patrimoniais à custa da outra, mesmo que não exista uma norma legal específica a ressalvar expressamente a correspondente compensação.

A não ser assim, verificar-se-ia um enriquecimento injusto da comunhão à custas do património de cada um dos cônjuges ou de um destes à custas daquela.

Estas compensações entre as várias massas patrimoniais existentes nos regimes de comunhão visam, ao fim e ao cabo, a reintegração do equilíbrio patrimonial quebrado pelo fluxo de valores entre as massas, através das correcção das situações em que uma delas se enriqueceu em detrimento da outra. O mecanismo das compensações é, assim, mais uma das manifestações do princípio da equidade que rege as relações patrimoniais entre os cônjuges (“Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges” (pág.396 a 398).

Também a Prof. Cristina Dias justifica a premência de um princípio geral da compensação entre as diferentes massas patrimoniais com vista a salvaguardar o equilíbrio patrimonial, ao escrever o seguinte:

“Ao contrário de outros preceitos legais (cf., por ex., o art.1697, em matéria de dívidas) não há uma disposição que expressamente contemple esta situação.

Mas deverá admitir-se um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e o comum sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento do outro. A não ser assim, verificar-se ia um enriquecimento injusto da comunhão à custas do património de um dos cônjuges, ou de um destes à custas daquele” (Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, ano 1, nº2, 2004, pág. 121).

Além disso, importa acentuar que a natureza de bem comum, e consequentemente como integrando o património comum do casal, não está condicionada pelo facto de os actos de disposição terem sido praticados antes da acção de divórcio, pois que existindo em plena constância do casamento o estatuto patrimonial é definido pelo regime de bens (no caso, de comunhão de adquiridos).

Posto isto, destinando-se a presente acção a declarar o património comum do casal, com vista à partilha subsequente ao divórcio, deve abranger os bens ( comuns)) existentes antes da propositura da acção de divórcio e as respectivas compensações, o que implica averiguar do crédito do património comum sobre o património próprio do Réu, independentemente da acção de responsabilidade civil contra este, a coberto do art. 1681 CC….» (sic).

Assim, resulta que no caso dos autos estamos perante contas bancárias colectivas solidárias (cada titular tem legitimidade para as movimentar de forma autónoma), sendo que os valores depositados são bens comuns porque pertencem a ambos os cônjuges.

Nos termos do artigo 1689 nº 1 e 3 do CCivil a partilha do casal não se limita à partilha do património comum, devendo proceder-se á entrega dos bens próprios; liquidação da comunhão, na qual se inclui o apuramento e o pagamento das dívidas; avaliação e cálculo das compensações e, por fim, a partilha dos bens comuns.

Na fase da liquidação da comunhão cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum tudo o que lhe deve, sob pena de ocorrer um enriquecimento sem causa de um dos cônjuges á custa do património comum. O cônjuge devedor deverá compensar nesse momento o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa do património comum (artigos 1682 nº4 do CCivil e 1687 nº2 do CCivil).

Assim, neste caso aderimos à fundamentação da sentença, sendo que ocorreram levantamentos de valores comuns pelo cônjuge administrador de contas solidárias, e deve incluir-se na relação de bens comuns esses valores por forma a existir essa compensação."

[MTS]