Processo de inventário;
verificação do passivo; efeito cominatório
I. Entre os interessados directos da partilha, no âmbito de processo especial de inventário, existe situação de litisconsórcio necessário legal.
II. O artigo 1106º do Código de Processo Civil enuncia de forma expressa o efeito cominatório da não impugnação por alguns dos interessados directos das dívidas relacionadas, que é o de estas serem reconhecidas, relativamente à quota-parte dos interessados que as não impugnem, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574º do mesmo Código.
III. Não sendo aplicada a excepção do art.º 568º, a) do Código Processo Civil a esse efeito.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Em causa neste recurso encontra-se a interpretação a dar ao disposto no art.º 1106º do Código de Processo Civil, que dispõe o seguinte:
Artigo 1106.ºVerificação do passivo1 - As dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574.º, devendo a sentença homologatória da partilha condenar no respetivo pagamento.2 - Se houver interessados menores, maiores acompanhados ou ausentes, o Ministério Público pode opor-se ao seu reconhecimento vinculante para os referidos interessados. (…).4 - Se houver divergências entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida, aplica-se o disposto nos n.ºs 1 e 2 relativamente à quota-parte dos interessados que a não impugnem e quanto à parte restante observa-se o disposto no número anterior. (…).
Invoca o recorrente que a revelia, emergente da falta de oposição ao passivo da herança, por alguns dos interessados (tendo sido deduzida oposição pelos restantes), não tem efeito operante, face ao disposto no art.º 568º, a) do Código de Processo Civil e sendo caso de litisconsórcio necessário.
É verdade que, entre os interessados directos da partilha, no âmbito de processo especial de inventário, existe situação de litisconsórcio necessário legal.
Contudo, essa constatação permite a aplicação da excepção do art.º 568º, a) do citado Código ao efeito cominatório emergente da falta de oposição ao passivo relacionado, por alguns dos interessados? Parece-nos que não, pelas seguintes razões:
Tal como nos dizem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres [O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, pág. 8.] “O novo modelo do processo de inventário assenta em fases processuais relativamente estanques e consagra um princípio de concentração dado que fixa para cada ato das partes um momento próprio para a sua realização.”
Explicam estes autores que, no modelo ora instituído, o processo de inventário para fazer cessar a comunhão hereditária, comporta as seguintes fases:
- Uma fase dos articulados na qual as partes, para além de requererem instauração do processo, têm de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respectivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, activo e passivo, que constitui objecto da sucessão. Esta fase abrange a subfase inicial (art.ºs 1097º a 1002º) e a subfase da oposição (art.ºs 1104º a 1107º). No articulado de oposição devem os interessados impugnar concentradamente todas as questões que podem condicionar a partilha, nomeadamente, apresentar reclamação à relação de bens (vd. art.º 1104º).- A fase de saneamento, na qual o juiz, após a realização das diligências necessárias – entre as quais se inclui a possibilidade de realizar uma audiência prévia – deve decidir, em princípio, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar e também proferir despacho sobre a forma da partilha.- A fase da partilha onde ocorrerá a conferência de interessados na qual se devem realizar todas as diligências que culminam na realização da partilha.
Sendo que, por via do disposto no art.º 549º, nº 1 do mesmo Código, à tramitação do inventário são aplicáveis as disposições da parte geral desse Código, bem como as regras do processo civil de declaração que se mostrem compatíveis com o processo de inventário judicial.
“Abandonada a experiência subsequente de atribuição aos cartórios notariais da competência exclusiva para a tramitação dos inventários, tendo em conta os frustrantes resultados, a nova regulamentação foi orientada pelo objetivo de modernizar tal processo especial contribuir para a resolução célere e justa de partilhas litigiosas. Para tal, considerou-se, desde logo, impor ao requerente (seja ou não cabeça de casal) o ónus de alegar e demonstrar os factos mais relevantes, de modo que, citados, os demais interessados, possam exercer o seu direito de defesa em toda a amplitude, mas com efeitos preclusivos, tornando mais eficiente a tramitação, mediante a concentração dos atos em cada uma das diversas fases processuais. Não se compreendendo, aliás, a persistência no campo do processo civil de um “enclave” no qual as regras processuais pudessem ser manipuladas em função das conveniências de ordem meramente particular; ao invés, o facto de no inventário se conjugarem diversos interesses exige a fixação de regras que, embora sem uma absoluta rigidez formal, contribuam para a resolução oportuna das diversas questões e, a final, para a concretização de partilhas justas e equilibradas, num prazo razoável. Neste novo cenário, o requerimento inicial assemelha-se a uma verdadeira petição inicial”, como se decidiu no Acórdão da Relação de Guimarães, de 2/6/2022, disponível em www.dgsi.pt.
Feitas estas considerações genéricas, vejamos a situação em concreto.
Em primeiro lugar, um argumento lógico: a concordarmos com a tese do recorrente, o disposto no nº 4 do art.º 1106º, supra citado, nunca teria aplicação, pelo que esta norma seria inútil.
Na medida em que a situação nele descrita – pluralidade de interessados em inventário, sendo que nem todos impugnam o passivo relacionado – será sempre uma situação de litisconsórcio necessário.
Afastando-se o efeito cominatório emergente da falta de oposição, nunca seria aplicável o disposto no nº 1 do mesmo preceito, logo, esvaziaríamos de conteúdo a remissão operada pelo referido nº 4.
Em segundo lugar, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 549.º do Código citado, os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum;
Ora, no âmbito do processo especial de inventário, o n.º 4 do artigo 1106.º dispõe, expressamente, que quanto ao reconhecimento da dívida, aplicam-se os n.ºs 1 e 2 do mesmo preceito, relativamente à quota parte dos interessados que a não impugnem.
«(…) no novo regime do inventário, foi introduzido um ónus de contestação do requerimento inicial (art.ºs 1104.º e 1106.º) e um ónus de resposta à contestação (art.º 1105.º, n.º 1), o que implica, como efeito cominatório para a falta de resposta ao requerimento inicial ou à oposição, a aceitação dos termos desse requerimento inicial ou dessa oposição. Passa, assim, a vigorar um verdadeiro sistema de preclusões, até agora inexistente, no processo de inventário», como referem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, ob. cit., pág. 43.
Em terceiro lugar, a remissão para o disposto no art.º 574º, nº2 implica que a não impugnação das dívidas relacionadas só importa reconhecimento se não estiverem em oposição com a pronúncia considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre as mesmas ou se só puderem ser provadas por documentos escrito (neste sentido, João Espírito Santo, Revista de Direito Comercial, 16/02/2021).
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, em anotação ao artigo 574º, “não opera o ónus de impugnação quanto aos factos que careçam de ser provados por documento escrito. Apesar de, em matéria de declaração negocial vigorar o princípio da consensualidade ou da liberdade de forma (art.º 219º do CC), há diversas situações em que a lei exige, sob pena de nulidade (art.º 220º do CC) documento escrito ou uma formalidade ainda mais solene para a celebração de certos negócios, o que constitui um requisito ad substanciam (cf. entre outros 875, 947, 1143 e 1250) (…). (…) nestes casos ainda que o réu não impugne esse facto, nem por isso se dará como assente tal negócio.”
Efectivamente de acordo com o n.º 2 do citado artigo 574º, há situações em que falta de impugnação de um facto não pode implicar a confissão tácita dele, quando o mesmo esteja em inequívoca contradição com o que resulta da defesa globalmente considerada, sendo que no caso essa contradição está em oposição com a decisão tomada em relação à existência ou não da dívida e das situações acabadas de referir.
Mas trata-se da única excepção ao efeito cominatório expresso no nº 4 do art.º 1106º, quanto aos interessados que não impugnem o passivo, não lhe sendo aplicável o disposto no art.º 568º, a), ambos do Código de Processo Civil.
Seguindo esta posição, veja-se o Acórdão da Relação de Guimarães de 25/5/2023 (Conceição Bucho), disponível em www.dgsi.pt:
I - O artigo 1106º do Código de Processo Civil enuncia de forma expressa o efeito cominatório da não impugnação pelos interessados directos das dívidas relacionadas, que é o de estas serem reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574º.II - Se um dos interessados impugnar a dívida, a não impugnação das dívidas relacionadas pelos demais interessados só importa reconhecimento se não estiverem em oposição com a pronúncia considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre as mesmas ou se só puderem ser provadas por documentos escrito, nos termos do disposto no artigo 574 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do n.º 1 do artigo 1106, 2ª parte."
[MTS]