"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/01/2025

Jurisprudência 2024 (79)


Competência material;
tribunal arbitral; tribunais judiciais*


1. O sumário de STJ 17/4/2024 (3283/22.1 T8STR.E1.S1) é o seguinte;

I - A decisão proferida em acórdão de tribunal administrativo que se julgou incompetente para conhecer de determinado processo, por a competência caber ao tribunal arbitral constituído, não tem força fora do processo em que foi proferida (art. 100º do CPC).

II - Se o tribunal arbitral também se declarou incompetente para decidir a providência, por decisão igualmente transitada, a solução não passa pela aplicação da regra fixada no art. 625º do CPC para os “casos julgados contraditórios.”

III – Vigora entre nós o princípio da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência (art. 18º da LAV);

IV- Nestas circunstâncias, é da competência dos juízes cíveis, atenta a competência residual dos tribunais judiciais (art. 20º da LOSJ), decidir uma providência cautelar que visa a intimação de instituições bancárias a não procederem ao pagamento de qualquer quantia a outra das requeridas por conta de garantias bancárias prestadas pela requerente.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Constitui objecto do recurso saber se o acórdão recorrido ajuizou bem ao declarar a incompetência dos Tribunais Estaduais para conhecerem do presente litígio, por a mesma caber ao tribunal arbitral.

Para assim decidir, a Relação suportou-se no disposto no nº 1 do art. 625º do CPC, nos termos do qual “havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em primeira lugar.”

As decisões contraditórias são a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria de 16.03.2021, confirmada pelo acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 03.03.2022, transitado em julgado, que “atenta a convenção de arbitragem declarou a incompetência do foro administrativo”, e a sentença arbitral de 04.04.2022, também transitada em julgado, que julgou o tribunal arbitral incompetente para conhecer da providência, e determinou a absolvição da instância da aqui Recorrida, decisão assim fundamentada:

“A prevalência (da decisão transitada em julgado em primeiro lugar), que decorre do nº 1 do art. 625º, “redunda na ineficácia da sentença coberta pelo trânsito em julgado posterior, ou seja, in caso, na ineficácia total da decisão que foi proferida pelo Tribunal Arbitral em 04.04.2022.”

Não se decidiu bem, com o devido respeito.

A decisão do Tribunal Administrativo de 16.03.2021, confirmada pelo acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 03.03.2022, não tem força obrigatória fora do processo em que foi proferida, como decorre do art. 100º do CPC, aqui aplicável supletivamente dada a ausência de norma equivalente no Código de Processo Administrativo (art. 1º, do CPA, aprovado pela Lei nº 15/2002 de 22.02).

A tese do acórdão recorrido levaria a que fosse o tribunal administrativo a decidir que o litígio deve ser decidido no Tribunal Arbitral, ao contrário do que resulta do art. 18º da LAV que consagra o princípio de que é competente o tribunal arbitral para se pronunciar sobre a sua própria competência.

Como decidiu o Acórdão do STJ de 10.03.2011, P. 5961/09.1TVLSB.L1,S1:

“Não podendo olvidar-se que sendo os tribunais arbitrais constitucionalmente configurados como “tribunais” – isto é, como entidades dotadas das características de independência e imparcialidade que caracterizam o núcleo essencial da função jurisdicional, a que compete definir o direito nas concretas situações litigiosas entre os particulares – não poderá deixar de lhes estar reservada uma relevante parcela da jurisdição, abrangendo, desde logo e em primeira linha, a aferição da sua própria competência emergente do legítimo exercício da autonomia privada pelos interessados, consubstanciada na convenção de arbitragem.”

Ora, a decisão arbitral de 04.04.2022, declarou a incompetência do tribunal arbitral para conhecer e decidir a presente providência com fundamento em que os visados são instituições bancárias estranhas à convenção arbitral, por não a terem subscrito, tendo decidido expressamente que “o tribunal não poderá vir a decretar qualquer medida que os tenha como destinatários, pela simples, mas decisiva razão de não ter competência para tal.”

É certo que o art. 36º da LAV prevê a intervenção de terceiros num processo arbitral em curso, mas como bem nota a Recorrente, tal adesão carece do consentimento de todas as partes na convenção de arbitragem, o que não sucede no caso.

A competência dos tribunais judiciais, com competência residual nos termos do art. 40º da LOSJ, aprovada pela Lei nº 62/2013 de 26.08 – “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” – para conhecer da presente providência tem apoio no art. 7º da LAV nos termos do qual “não é incompatível com uma convenção de arbitragem o requerimento de providências cautelares apresentadas num tribunal estadual, antes ou durante o processo arbitral, nem o decretamento de tais providências por aquele tribunal.”

Com o que procedem as conclusões do recurso, não podendo manter-se a decisão recorrida."

*3. [Comentário] Importa chamar a atenção para que não se está perante um "conflito de jurisdição" entre um tribunal arbitral e os tribunais judiciais, dado que o tribunal arbitral não declinou a sua competência com base na invalidade da cláusula arbitral e os tribunais judiciais não declinaram a sua competência com fundamento na validade dessa cláusula. O que sucedeu foi que o tribunal arbitral entendeu que a cláusula arbitral não abrangia todas as partes, pelo que -- pode concluir-se -- a providência cautelar que viesse a proferir seria inútil.

Sendo assim, não podia ocorrer nenhuma preterição de tribunal arbitral, o que, por si só, determina a competência dos tribunais judiciais para apreciar o procedimento cautelar.

[MTS]