"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/01/2025

Jurisprudência 2024 (77)


Legitimidade;
pressuposto de acto processual; pressuposto processual*


1. O sumário de RG 11/4/2024 (100/14.0TBMDC-A.G1) é o seguinte:

I - A fundamentação das decisões judiciais, para além de expressa, clara, coerente e suficiente, deve também ser adequada à importância e circunstância da decisão; assim, as decisões judiciais, ainda que tenham que ser sempre fundamentadas, podem sê-lo de forma mais ou menos exigente (de acordo com critérios de razoabilidade) consoante a função dessa mesma decisão.

II - Importa distinguir entre os casos em que o tribunal deixa de se pronunciar efectivamente sobre questão que devia apreciar e aqueles em que esse tribunal invoca razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção, sendo coisas diferentes deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte, por não ter o tribunal de esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente.

III - A oposição à execução constitui o meio processual pelo qual o executado exerce o seu direito de defesa perante a pretensão do exequente.

IV - Sendo deduzida uma concreta pretensão contra o executado, este pode defender-se desta, expondo todos os fundamentos susceptíveis de conduzir à extinção da execução, atenta a ligação funcional existente entre a oposição e a execução, assistindo-lhe legitimidade activa para se opor à execução.

V - Ocorre interesse em agir sempre que o demandante tenha necessidade de intervenção judicial para reconhecimento da sua pretensão, tal como a configura no exercício da sua liberdade de conformação da acção, e que a intervenção judicial que pede seja apta a proporcionar-lhe tal utilidade.

VI - A alteração anormal das circunstâncias, na abrangência do preceito em causa, corresponde a uma modificação superveniente e insólita ou inabitual da base negocial em que as partes tenham fundado a celebração do contrato, sendo que essa base negocial, no domínio da alteração das circunstâncias, assume carácter objectivo e deve respeitar simultaneamente a ambos os contraentes.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

3.2.2. Do erro de julgamento da decisão recorrida ao julgar verificadas as excepções dilatórias da ilegitimidade activa e da falta de interesse em agir.

A apelante veio pugnar ainda no recurso, e em breve resumo, que o tribunal recorrido não teve em consideração que a co-executada BB veio apresentar oposição à execução no âmbito de embargos do executado no apenso C deste mesmo processo com o nº 100/14...., no âmbito da qual invocou a falsidade das procurações e que ainda aguarda decisão; que a recorrente é parte legítima e tem interesse em agir nos presentes autos de embargos de executado uma vez que foi apenas com a condição da aludida BB também intervir na qualidade de fiadora, que a própria também assinou, julgando que tudo estivesse em conformidade e de acordo como todos os preceitos legais, sendo indispensável apurar se as procurações ou as assinaturas atribuídas àquela são autênticas, verificando-se todos os pressupostos do art.º 437º, nº 1 do CC para ser declarada a resolução do contrato por alteração das circunstâncias.

Vejamos.

Proibindo a justiça privada ou autotutela (art.º 1º do NCPC), a ordem jurídica concede ao credor de prestação não satisfeita, através do exercício da acção executiva, a faculdade de obter a sua efectivação coerciva, ou seja, a faculdade de satisfazer o interesse patrimonial correspondente ao seu direito (art.º 10º, nº 4 do NCPC) – na acção executiva pode o credor obter a realização coactiva da prestação não cumprida, enquadrando-se esta, por isso, na efectividade da tutela jurisdicional e na garantia do acesso aos tribunais para a defesa dos direitos e interesses legítimos (art.º 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa).

A finalidade da acção executiva consiste, pois, na obtenção do interesse patrimonial contido na prestação não cumprida, sendo o seu objecto, sempre (e apenas) um direito a uma prestação – nesse objecto contém-se somente a faculdade de exigir o cumprimento da prestação e o correlativo poder de aquisição dessa prestação, poder que corresponde à causa debendi e, portanto, funciona como causa de pedir da acção executiva (os factos dos quais decorre esse poder são os mesmos que justificam a faculdade de exigir a prestação) - Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, p. 606.

A acção executiva pressupõe, assim, um direito de execução do património do devedor, ou seja, “um poder resultante da incorporação da pretensão num título executivo, pois que é desta que resulta que o credor possui não só a faculdade de exigir a prestação, mas também a de executar, em caso de incumprimento, o património do devedor” (autor e obra citados, p. 626).

Deduzido que seja o requerimento executivo, o executado pode deduzir oposição à execução por embargos (cfr. art.º 728º e seguintes do NCPC), a qual se destina a contestar o direito do exequente, quer através da impugnação da própria exequibilidade do título, quer através da alegação de factos que, em processo declarativo, constituiriam matéria de excepção.

Os autos de oposição à execução por embargos introduzem no processo executivo, uma fase declarativa independente, com a particularidade do oponente, devedor presumido da dívida exequenda, poder evidenciar quaisquer factos impeditivos, modificativos ou extintivos da própria exequibilidade do título executivo, da inexistência de causa debendi ou do direito do exequente.

A este propósito, é, pacificamente, defendido na nossa doutrina que “Devendo a execução actuar com referência ao direito representado no título, podem sobrevir factos que lhe retirem legitimidade ou correspondência com a realidade substancial, para além de poderem subsistir vícios processuais ou substantivos procedentes da formação do título. Daí permitir-se ao executado fazer valer as eventuais discordâncias com a realidade ou a eventuais ilegitimidades numa sede autónoma de cognição, fora do procedimento executivo propriamente dito, através exactamente da oposição à acção executiva” (neste sentido, vide, Amâncio Ferreira, in Curso de Processo Execução, p. 145).

Os autos de oposição à execução por embargos visam, deste modo, a extinção da execução – aliás, é esse o único pedido que aí pode ser deduzido -, mediante o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo, ou da falta dum pressuposto, específico ou geral, da acção executiva (neste sentido, ver Lebre de Freitas, in A Acção Executiva, p. 141).

Com efeito, na acção executiva, o direito de defesa do executado corporiza-se num pedido de extinção da execução (cfr. art.º 732º, nº 4, do NCPC), ainda que processualmente tal defesa não integre o procedimento de execução e deva ser tramitado em apenso declarativo autónomo (cfr. Rui Pinto, in A acção executiva, 2020, p. 366).

E, quer se considere a oposição à execução como contestação à petição inicial da acção executiva, quer como uma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo, certo é que a oposição à execução consubstancia o meio idóneo à alegação dos factos que constituem matéria de excepção (ver, neste sentido, Lebre de Freitas, in A Acção Executiva, p. 162 e ac. da RL de 27.05.2021, relatado por Carlos Castelo Branco e acessível in www.dgsi.pt).

Na verdade, como refere Lopes Cardoso, in Manual da Acção Executiva, 3ª edição, reimpressão, 1992, p. 250 “pelos embargos, o executado assume a autoria dum processo declarativo, destinado a contestar o direito do exequente, quer impugnando a própria exequibilidade do titulo, quer alegando factos que em processo declarativo constituiriam matéria de excepção.”. Ver ainda na mesma senda, ac. da RE de 25.02.2021, relatado por Tomé de Carvalho e disponível in www.dgsi.pt.

A oposição à execução constitui, pois, o meio processual pelo qual o executado exerce o seu direito de defesa perante a pretensão do exequente.

Sendo deduzida uma concreta pretensão contra o executado, este pode defender-se desta, expondo todos os fundamentos susceptíveis de conduzir à extinção da execução, atenta a ligação funcional existente entre a oposição e a execução.

Não se olvida que, constituindo a oposição à execução uma relação processual própria, deve estar assegurada a presença dos pressupostos processuais comuns a qualquer causa. As partes devem, nomeadamente, apresentar personalidade, capacidade e legitimidade, sendo o executado e o exequente, respectivamente o autor e o réu desta causa (cfr. art.º 728º, nº 1 e 732º, nº 2, do NCPC e ainda Rui Pinto, obra citada, p. 404).

E ainda que se verifique uma pluralidade de executados, qualquer deles tem legitimidade activa para se opor à execução (neste sentido, autor e obra citados, p. 441).

Entendemos, pois, que assiste razão à apelante quanto à questão de lhe caber legitimidade processual no âmbito da presente oposição que corre por apenso à execução onde figura como executada.

Essa legitimidade ad causam advém-lhe, pois, da qualidade de executada.

Ou seja, a executada/opoente tem evidentemente interesse em contradizer a obrigação exequenda invocada pelo banco exequente e em pedir a extinção da execução - isto, independentemente da posição assumida pelos restantes co-executados e da co-executada BB ter ou não deduzido ela própria oposição à execução.

Deste modo, não podemos deixar de concluir que a opoente é parte legítima nos presentes autos de oposição à execução, mediante embargos de executado.

Saber se os argumentos invocados pela opoente para se opor à execução carecem de utilidade e aptidão para a procedência dos embargos, como entendeu o tribunal recorrido, já se prende com a outra questão – a da falta de interesse em agir – também abordada na decisão recorrida.

O interesse em agir, que Manuel de Andrade apelida de “interesse processual” (in, Noções Elementares do Processo Civil, 1979, p. 79) consiste, basicamente, no interesse de utilizar a máquina judiciária, ou na necessidade de recorrer ao processo.

Por isso, diz Manuel de Andrade, que o mesmo consiste em estar “o direito do demandante carecido de tutela judicial; é o interesse de utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo”, ou, em delimitação negativa, “não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece” (obra e lugar citado).

E, igualmente por isso, “o interesse em agir deve ser analisado também à luz dos princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça, em dupla vertente: consagração e limitação.

Por um lado, o acesso ao direito e à justiça implica uma visão necessariamente restrita do âmbito de exigência deste interesse processual, já que ao cidadão enquanto tal, ou aos estrangeiros e apátridas por equiparação, assiste o direito de exporem as suas pretensões em sede judicial e de obterem apreciação e decisão sobre elas. (…)

Mas, dada a natureza escassa dos recursos, a própria consagração do acesso ao direito na mesma norma leva a delimitar tal direito pela necessidade de mobilização dos órgãos jurisdicionais, uma vez que a mobilização acrítica e sem interesse constitui um desvio de recursos que os fará faltar a quem deles necessita.” – vide, ac. da RL de 26.09.2019, relatado Ana de Azeredo Coelho, disponível in www.dgsi.pt.

O interesse em agir consiste assim na verificação da necessidade ou utilidade da acção tal como configurada pelo autor, sendo definido como “a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção” (vide, Abrantes Geraldes in “Temas da Reforma do Processo Civil”, p. 229), a aferir objectivamente, em relação à normatividade jurídica.

Tem, pois, de se considerar que ocorre interesse em agir sempre que o demandante tenha necessidade de intervenção judicial para reconhecimento da sua pretensão, tal como a configura no exercício da sua liberdade de conformação da acção, e que a intervenção judicial que pede seja apta a proporcionar-lhe tal utilidade.

Por outro lado, quer da doutrina, quer da jurisprudência, decorre também relativa unanimidade quanto à natureza processual do interesse em agir como pressuposto processual que, faltando, pode determinar genericamente a verificação de uma excepção dilatória inominada, determinante da absolvição da instância – cfr. art.ºs 278º, nº 1, al. e), 576º, nº 2, 577º e 578º, todos do NCPC.

Pressuposto processual, por encontrar a sua razão de ser no intuito de obviar a acções inúteis, recolhida da consideração de que, se a lei proíbe expressamente a prática de actos inúteis (princípio da limitação dos actos constante do art.º 130º, do NCPC), por maioria de razão terá de proibir acções inúteis [vide, Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, I, Almedina, 2010, p. 447].

Ver no mesmo sentido, na jurisprudência, entre muitos outros, o ac. do STJ de 8.02.2022, processo nº 115/20.9YHS.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt.

No presente caso, a apreciação do interesse em agir tem de ser feita, pois, à luz da utilidade que a recorrente prossegue com a oposição à execução e, sobretudo, diremos nós, à luz da aptidão da mesma a proporcionar-lha.

Com efeito, e como bem se salienta na decisão recorrida, a provar-se que a co-executada BB não assinou as procurações a conferir poderes a procurador para subscrever o contrato dado à execução, na qualidade de fiadora, estaremos em presença de inexistência/ineficácia de contrato, mas apenas relativamente àquela. Com efeito, o contrato em discussão só não produziria qualquer efeito relativamente à aludida BB por nele não ter intervindo, mas continuaria a vincular todos os demais intervenientes, ou seja, quanto aqueles que o subscreveram, incluindo a apelante.

Veja-se que segundo o art.º 292º do CC – cuja disciplina, como vem a ser entendido, se estende aos casos de ineficácia - a nulidade parcial de um contrato não afecta a parte não viciada, se não forem alegados e provados factos, por quem tiver interesse na nulidade total, de que o contrato não seria outorgado sem a parte viciada. Este normativo prevê uma presunção de nulidade parcial do negócio ilidível pela prova de que não seria outorgado sem a parte viciada. E esta prova ou ilisão da presunção terá de ser feita por quem tiver interesse na nulidade total do contrato. Cfr., a este propósito o ac. desta Relação de Guimarães de 10.03.2016, relatado por Espinheira Baltar e acessível in www.dgsi.pt.

Ora, no caso em apreço, e conforme também se assinala na decisão recorrida não foi invocado qualquer vício de vontade da opoente susceptível de invalidar a fiança prestada pela apelante, tendo apenas sido alegados factos atinentes à propalada nulidade/ineficácia parcial do contrato - baseada na falsificação das assinaturas da co-executada -, pelo que esta nulidade/ineficácia parcial, ainda que viesse a ser demonstrada, nunca atingiria a totalidade do dito negócio e por maioria de razão a fiança prestada pela ora recorrente.

Veja-se que, no âmbito do presente recurso, a embargante nem sequer veio pôr em causa a apontada falta de alegação de qualquer vício de vontade capaz de abalar a validade da fiança por si prestada no âmbito do contrato de mútuo dado à execução."

*3. [Comentário] O caso em análise no acórdão da RG suscita a seguinte questão: pode dizer-se que a embargante é parte legítima porque é executada e, ao mesmo tempo, entender-se que lhe falta legitimidade para suscitar uma questão relativa a uma outra co-executada? A RG entendeu que não e, por isso, considerou que o que falta a esse embargante é o interesse em agir ou interesse processual.

É discutível que seja esta a melhor solução. No fundo, o que o caso mostra é que, quando se diz que o executado tem legitimidade para embargar, se está a referir apenas ao acto de embargar. Dito de outra forma: 

-- A legitimidade para embargar refere-se a um acto processual -- a dedução dos embargos; isto é: neste plano, está em causa a legitimidade para a prática de uma acto processual;
 
-- Da legitimidade para embargar há que distinguir a legitimidade para invocar nesses embargos algo que não tem a ver com a relação material controvertida entre a parte embargante e a parte exequente; é isto que justifica que a embargante CC não possa colocar em causa os poderes da pessoa que a executada BB decidiu mandatar para constituir a fiança; de acordo com o critério enunciado no art. 30.º, n.º 3, CPC, falta ao embargante legitimidade processual.

Posto isto, uma pergunta se coloca: o que é que sucede se a parte embargante invocar a falta de poderes do mandatário de uma co-executada no acto de constituição da fiança? A resposta é segura: dado que essa falta de poderes nada tem a ver com a relação material controvertida entre o embargante e o exequente, o embargante é parte ilegítima para pedir seja o que for quanto a essa falta de poderes, pelo o exequente deve ser absolvido da instância quanto a esse pedido (art. 278.º, n.º 1, al. d), CPC).

b) Da legitimidade para embargar (legitimidade para um acto processual) não se segue a legitimidade do embargante para invocar nos embargos seja o que for. Se o embargante invocar algo que não tem a ver com a relação material controvertida entre ele e o exequente, falta a esse embargante legitimidade processual e o exequente deve ser absolvido da instância.

Portanto, a matéria em análise no acórdão nada tinha a ver com o interesse em agir, mas antes com a dualidade da legitimidade como pressuposto de acto processual e como pressuposto processual.

MTS