Agente de execução; remuneração adicional;
proporcionalidade; inconstitucionalidade
O sumário de RP 2/6/2016 (5442/13.9TBMAI-B.P1) é o seguinte:
I - O critério da constituição do direito à remuneração adicional é a obtenção de sucesso nas diligências executivas, o que se verifica sempre que na sequência das diligências do agente de execução se conseguir recuperar ou entregar dinheiro ao exequente, vender bens, fazer a adjudicação ou a consignação de rendimentos, ou ao menos, penhorar bens, obter a prestação de caução para garantia da quantia exequenda ou que seja firmado um acordo de pagamento.
II - A remuneração adicional do agente de execução prevista na Portaria n.º 282/2013, de 29.08, é sempre devida desde que haja produto recuperado ou garantido, excepto, nos processos executivos para pagamento de quantia certa em que há lugar à citação prévia do executado, se este efectuar o pagamento integral da quantia em dívida até ao termo do prazo para se opor à execução.
III - O artigo 50.º, n.º 5, em conjugação com a tabela VIII, da Portaria n.º 282/2013, interpretado no sentido de permitir que o agente de execução possa pedir de remuneração variável mais de €73.000,00 quando apenas procedeu à penhora de quatro imóveis indicados pelo exequente e hipotecados para garantia do crédito exequendo e, por sua iniciativa, à penhora de um crédito, após o que a execução se extinguiu por acordo de pagamento entre exequente e executado, é inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso ínsitos no princípio do Estado de direito democrático consignado no artigo 2.º da Constituição.
IV - É ainda inconstitucional por violação do direito de acesso à justiça e aos tribunais na medida em que da referida norma resulte responsabilidade para o próprio exequente, o qual, face ao custo desmesurado que poderá ter de suportar com o pagamento ao agente de execução nos casos em que o seu direito de crédito tenha um valor significativo, verá significativa e desproporcionadamente cerceado o seu direito de acesso à justiça sempre que for incerta a existência de bens cuja penhora e venda possa gerar um produto suficiente para aquele pagamento.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Na data da instauração da execução as funções de agente de execução eram reguladas pelo Estatuto da Câmara dos Solicitadores aprovado pelo Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de Abril.
Segundo os artigos 123.º, 116.º e 99.º do Estatuto, as competências específicas de agente de execução, onde se incluíam as de praticar diligentemente os actos processuais de que seja incumbido, com observância escrupulosa dos prazos legais ou judicialmente fixados e dos deveres deontológicos, eram exercidas por solicitador ou advogado em regime de profissão liberal remunerada. Nos termos do artigo 126.º o agente de execução era obrigado a aplicar, na remuneração dos seus serviços, as tarifas aprovadas por Portaria, as quais podiam compreender uma parte fixa e uma parte variável, dependente da consumação dos efeitos ou dos resultados pretendidos com a actuação do agente de execução. A mesma redacção que corresponde agora ao artigo 173.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução.
Entretanto, aquele diploma foi substituído pela Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro, que criou a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução e aprovou o respectivo Estatuto.
Segundo o artigo 162.º deste Estatuto, o «agente de execução é o auxiliar da justiça que, na prossecução do interesse público, exerce poderes de autoridade pública no cumprimento das diligências que realiza nos processos de execução, nas notificações, nas citações, nas apreensões, nas vendas e nas publicações no âmbito de processos judiciais, ou em actos de natureza similar que, ainda que não tenham natureza judicial, a estes podem ser equiparados ou ser dos mesmos instrutórios».
Por sua vez o artigo 173.º prescreve que o agente de execução é obrigado a aplicar, na remuneração dos seus serviços, as «tarifas aprovadas por Portaria» do Governo, as quais «podem compreender uma parte fixa, estabelecida para determinados tipos de actividade processual, e uma parte variável, dependente da consumação dos efeitos ou dos resultados pretendidos com a actuação do agente de execução».
A remuneração do agente de execução encontra-se presentemente regulamentada na Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto, que entrou em vigor em 01.09.2013, aplicando-se ao processo em apreço (artigos 63.º e 62.º, n.º 2, da Portaria).
Nos termos do n.º 1 do artigo 50.º do referido diploma, o agente de execução tem direito a ser remunerado pela tramitação dos processos, actos praticados ou procedimentos realizados de acordo com os valores fixados na tabela do anexo VII da Portaria, os quais incluem a realização dos actos necessários com os limites nela previstos.
O n.º 5 dessa norma estabelece que nos processos executivos para pagamento de quantia certa, no termo do processo é devida ao agente de execução uma remuneração adicional, que varia em função: a) do valor recuperado ou garantido; b) do momento processual em que o montante foi recuperado ou garantido; c) da existência, ou não, de garantia real sobre os bens penhorados ou a penhorar.
O n.º 6 estabelece, por sua vez, que para este efeito se entende por «valor recuperado» o valor do dinheiro restituído ou entregue, do produto da venda, da adjudicação ou dos rendimentos consignados, pelo agente de execução ao exequente ou pelo executado ou terceiro ao exequente, e por “valor garantido» o valor dos bens penhorados ou da caução prestada pelo executado, ou por terceiro ao exequente, com o limite do montante dos créditos exequendos, bem como o valor a recuperar por via de acordo de pagamento em prestações ou de acordo global.
O n.º 9 determina que o cálculo da remuneração adicional se efectua nos termos previstos na tabela do anexo VIII da Portaria.
O n.º 11 consagra que o valor da remuneração adicional apurado nos termos da tabela do anexo VIII é reduzido a metade na parte que haja sido recuperada ou garantida sobre bens relativamente aos quais o exequente já dispusesse de garantia real prévia à execução.
Por fim, o n.º 12 estatui que nos processos executivos para pagamento de quantia certa em que haja lugar acitação prévia, se o executado efectuar o pagamento integral da quantia em dívida até ao termo do prazo para se opor à execução não há lugar ao pagamento de remuneração adicional.
De referir que o anexo VIII da Portaria tem a seguinte redacção: «o valor da remuneração adicional do agente de execução destinado a premiar a eficácia e eficiência da recuperação ou garantia de créditos na execução nos termos do artigo 50.º é calculado com base nas taxas marginais constantes da tabela abaixo, as quais variam em função do momento processual em que o valor foi recuperado ou garantido e da existência, ou não, de garantia real sobre os bens penhorados ou a penhorar».[...]
A questão que se coloca nos autos consiste em saber se [...]a remuneração adicional apenas é devida quando a recuperação da quantia tenha tido lugar na sequência de diligências promovidas pelo agente de execução e não é devida quando a dívida seja satisfeita ou garantida de modo voluntário, sem a intermediação do agente de execução. [...]
A nosso ver, resulta da redacção do artigo 50.º da Portaria que desde que haja produto recuperado ou garantido a remuneração adicional é sempre devida, excepto numa situação, a de nos processos executivos para pagamento de quantia certa em que há lugar à citação prévia do executado este efectuar o pagamento integral da quantia em dívida até ao termo do prazo para se opor à execução (n.º 12), caso em que a intervenção do agente de execução foi apenas para realizar a citação, acto que não é exclusivo nem específico da acção executiva, pelo que se pode entender que a intervenção do agente que é própria da execução coerciva ainda não se iniciou.
O critério da constituição do direito à remuneração adicional é a obtenção de sucesso nas diligências executivas, sucesso que ocorre sempre que na sequência dessas diligências, realizadas pelo agente de execução, se conseguir recuperar ou entregar dinheiro ao exequente, vender bens, fazer a adjudicação ou a consignação de rendimentos, ou ao menos, penhorar bens, obter a prestação de caução para garantia da quantia exequenda ou que seja firmado um acordo de pagamento, sendo certo que neste último caso o sucesso depende (da medida) do cumprimento do acordo (n.º 8).
O legislador apenas excluiu a remuneração adicional nos casos em que a citação antecede a realização as penhoras e o executado efectua o pagamento integral da quantia em dívida até ao termo do prazo para se opor à execução, por presumir que nessa situação, não tendo ainda sido realizadas penhoras e devendo estas realizar-se apenas após a concessão de prazo para o pagamento voluntário, a actuação do agente de execução foi totalmente indiferente para a obtenção do pagamento e não gerou qualquer expectativa em relação à remuneração devida pelo seu envolvimento do processo.
Em todas as demais situações em que haja valor recuperado ou garantido, a remuneração adicional é devida, ainda que a extinção da execução decorra de acto individual do devedor (pagamento voluntário), de acto conjunto de credor e devedor (acordo de pagamento) ou mesmo de um acto do próprio credor (desistência da execução, cf. n.º 2 do artigo 50.º). É esse, cremos, o sentido do que se fez constar na exposição de motivos da Portaria [...].
Não vemos, aliás, qualquer mal no sistema misto (a qualificação é do legislador) que combina remuneração fixa com remuneração adicional variável. Se o valor da remuneração fixa não for especialmente aliciante, a remuneração variável pode constituir de facto um forte incentivo à celeridade e eficácia da intervenção do agente de execução, sendo certo que enquanto profissional obrigado a respeitar fortes condicionantes no exercício da sua actividade lhe deve ser proporcionada justa e adequada remuneração.
Por outro lado, se exigirmos que se demonstre um nexo causal entre a actividade do agente de execução e a forma de extinção da execução para se reconhecer o direito à remuneração adicional variável, estaremos a introduzir uma incerteza e insegurança na determinação da remuneração do agente de execução que seguramente o legislador procurou evitar com a criação de uma tabela de remuneração. Estaremos também a abrir a porta ao surgimento de inúmeros conflitos entre o agente e o devedor a propósito da remuneração que obrigarão os juízes de execução a decidir aspectos perfeitamente secundários quando se lhes retirou o grosso da intervenção relevante que até aí tinham no processo executivo. Estaremos ainda a incentivar o agente de execução a obstar a qualquer solução que não passe pela venda de bens para evitar perder essa fatia da remuneração ou a torná-lo parte activa em actos que só às partes dizem respeito, como a negociação entre credor e devedor para estabelecer acordos de pagamento. Por fim, estaremos a introduzir uma álea na determinação da remuneração (qual a medida da contribuição do agente de execução? como se calcula? como se demonstra? quem tem de a demonstrar? a percentagem prevista na Portaria deve depois ser corrigida emfunção da medida dessa contribuição?) que só pode redundar em forte prejuízo para a eficácia e celeridade do processo executivo.
Nessa medida, entendemos que pese embora no caso a execução tenha sido extinta na sequência do acordo de pagamento em prestações celebrado por exequente e executado (e em cuja negociação e celebração o agente de execução não refere sequer ter estado envolvido ou para ela contribuído de algum modo, o que é algo absolutamente distinto da circunstância de o texto do acordo fazer várias referências a actos praticados pelo agente de execução), exactamente porque também nessa situação se verificam os requisitos de que depende o direito à remuneração adicional (alcance da finalidade do processo executivo e existência de valor garantido), o agente de execução podia reclamar uma remuneração adicional. [...]
Nesse contexto factual, pergunta-se se o agente de execução pode ter o direito a uma remuneração variável, a acrescer à remuneração fixa por todos os actos que praticou, de €73.867,20?
A nossa resposta é a de que essa remuneração é excessiva e desproporcionada, acabando por representar uma autêntica espoliação do executado que a ordem jurídica não pode consentir e, como procuraremos demonstrar, não consente.
O pagamento ao agente de execução é um custo inerente ao processo executivo, integrando o conceito de custas processuais, particularmente o conceito de custas de parte. Nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil a decisão que julgue a acção condena em custas a parte que a elas houver dado causa. Essa disposição inclui forçosamente as custas da execução, as quais, nos termos do artigo 541.º do mesmo diploma, incluem os honorários e despesas devidas ao agente de execução. As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (artigo 529.º), sendo que estas últimas compreendem entre outras despesas, as remunerações pagas ao agente de execução e as despesas por este efectuadas (artigo 533.º).
No processo executivo, cabe ao exequente a designação do agente de execução (artigo 720.º) e a obrigação de pagar os respectivos honorários e o reembolso das despesas por ele efectuadas se não for possível obter o seu pagamento precípuo do produto dos bens penhorados (artigo 721.º). Todavia, se o executado não deduzir oposição à execução e/ou não obtiver vencimento nessa oposição, caso em que é responsável pelo pagamento das custas da execução, o pagamento das custas pelo exequente constitui um adiantamento destinado a assegurar que o agente de execução é pago, cabendo depois ao exequente o direito de reclamar o seu pagamento do executado a título de custas de parte (artigo 721.º).
Se o exequente fosse o único e definitivo responsável pelo pagamento da remuneração do agente de execução por si escolhido, podíamos aceitar que a fixação desta remuneração estivesse subordinada à livre negociação entre exequente e agente de execução, não dispondo de limites máximos ou mínimos. No entanto, mesmo nessa situação podia questionar-se até que ponto a tabela praticada pelos agentes de execução não constituiria, em certos casos ou atingido certo nível de remuneração, um entrave excessivo ao acesso ao direito e aos tribunais por parte de exequentes com menor capacidade negocial ou poder económico para suportar esse pagamento que seria condição da instauração das execuções indispensáveis ao exercício dos direitos de crédito.
Cabendo ao executado a obrigação de suportar a remuneração do agente de execução, que obviamente não escolheu e em cuja designação não foi sequer ouvido, a imposição legal dessa obrigação só pode ter o mesmo fundamento jurídico da imposição da obrigação de pagamento das custas processuais. Do que se trata, portanto, é de onerar o responsável pela necessidade de usar os meios judiciais com a obrigação de suportar a maior parte dos custos gerados por esses meios. Sendo assim, deve entender-se que essa obrigação tem de seradequada e proporcional e não pode exceder aquilo que se mostrar razoável face ao envolvimento, ao esforço e ao contributo do agente de execução para o resultado do processo executivo.
O princípio da proporcionalidade, também designado de princípio da “proibição do excesso”, é o corolário do princípio da confiança inerente à ideia de Estado de Direito democrático (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa). [...]
A solução da Portaria n.º 282/2013 para a remuneração variável do agente de execução [...] permite que o seu valor escape ao controle jurisdicional da sua adequação e proporcionalidade ao não prever um limite máximo para a remuneração adicional e consentir que a mesma seja obtida e possa atingir valores significativos ainda que a acção executiva tenha tido uma tramitação muito simples e a actuação do agente de execução tenha sido escassa e muito pouco relevante para o desfecho da execução.
Na medida em que conduza, como sucede no caso, a que o agente de execução possa reclamar o direito a uma remuneração variável superior a €73.000,00 (!) quando apenas procedeu à penhora de quatro imóveis indicados pelo exequente e já hipotecados para garantia do crédito exequendo e, por sua iniciativa, à penhora de um crédito, após o que a execução se extinguiu por acordo de pagamento entre exequente e executado, a nosso ver, o artigo 50.º, n.º 5, em conjugação com a tabela VIII, da Portaria n.º 282/2013, é inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso ínsitos no princípio do Estado de direito democrático consignado no artigo 2.º da Constituição.
Numa determinada perspectiva é ainda inconstitucional por violação do direito de acesso à justiça e aos tribunaisna medida em que da referida norma resulte responsabilidade para o próprio exequente, o qual, face ao custo desmesurado que poderá ter de suportar com o pagamento ao agente de execução nos casos em que o seu direito de crédito tenha um valor significativo, verá significativa e desproporcionadamente cerceado o seu direito de acesso à justiça sempre que for incerta a existência de bens cuja penhora e venda possa gerar um produto suficiente para aquele pagamento."
[MTS]