"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/10/2016

A jurisprudência do STJ sobre a recorribilidade das decisões de equidade está a mudar?


1. No sumário de STJ 15/9/2016 (492/10.0TBBAO.P1.S1) pode ler-se o seguinte:

[...] X - Não se questionando a indemnizibilidade dos danos sofridos pelos autores (dano morte, danos não patrimoniais e dano patrimonial futuro), mas apenas o seu quantum, a cuja fixação presidiu juízo equitativo (arts. 496.º, n.º 3, e 566.º, n.º 3, do CC), não cabe ao STJ, por não envolver a resolução de uma questão de direito, sindicar os valores exactos dos montantes indemnizatórios concretamente arbitrados.

XI - A sua apreciação cingir-se-á ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado.
 

Isto é: o acórdão entende que, como o STJ só conhece de matéria de direito (cf. art. 46.º LOSJ; art. 682.º, n.º 1 e 2, CPC) e como uma decisão proferida segundo a equidade se baseia, não num critério normativo, mas na justiça do caso concreto, o STJ não tem competência decisória para controlar uma decisão tomada segundo critérios de equidade pelas instâncias. Como se refere no acórdão, esta orientação é defendida com clareza em STJ 7/10/2010 (839/07.6TBPFR.P1.S1, subscrito por Lopes do Rego, Barreto Nunes e Orlando Afonso):

Finalmente – e no nosso entendimento – não poderá deixar de ter-se em consideração que tal «juízo de equidade» das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial, dos critérios que generalizadamente vêm sendo adoptados, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e, em última análise, o princípio da igualdade. 

Também como se refere no acórdão, esta orientação foi retomada em:

-- STJ 3/4/2014 (856/07.6TVPRT.P1.S1), em que se afirmou o seguinte: Sempre que a lei imponha o julgamento com base na equidade, a intervenção do STJ está limitada à verificação dos pressupostos e limites do recurso a tal fonte de direito, corrigindo, se for caso disso, o valor arbitrado nas instâncias;
 
-- STJ 18/6/2015 (2567/09.9TBABF.E1.S1), em que se defendeu o seguinte: Sempre que a lei imponha o julgamento com base na equidade, a intervenção do STJ está limitada à verificação dos pressupostos e limites do recurso a tal fonte de direito, corrigindo, se for caso disso, o valor arbitrado nas instâncias.

2. Em matéria da admissibilidade da revista para o STJ, pode colocar-se a seguinte questão: sendo a revista baseada na violação de lei (cf. art. 674.º, n.º 1, CPC), como justificar o recurso para o STJ quando o que é alegado pelo recorrente não é a violação de lei, mas antes a aplicação incorrecta de um juízo de equidade? Em resposta a esta pergunta, terá que se dizer que, no rigor dos princípios, a revista não deveria ser admitida, porque saber se a decisão proferida com base em critérios de equidade é a correcta não é algo que possa ser aferido segundo critérios legais, mas antes segundo critérios justiça no caso concreto, pelo que, por isso, não pode ser sindicada pelo STJ.

A este propósito pode ser invocado o lugar paralelo  da irrecorribilidade para o STJ das resolução tomadas no âmbito dos processos de jurisdição voluntária (cf. art. 988.º, n.º 2, CPC). Esta irrecorribilidade fundamenta-se na circunstância de que, como nesses processos o critério de decisão é a discricionariedade (cf. art. 987.º CPC) e como o STJ só conhece de recursos fundamentados na violação de lei, o STJ não pode conhecer de um recurso interposto de uma decisão tomada segundo critérios de conveniência e oportunidade.

Tendo-se concluído que a revista não deveria ser admitida quando o critério da decisão impugnada tenha sido a equidade, a pergunta que se impõe é a seguinte: qual tem sido a jurisprudência do STJ sobre a questão? Parece não haver dúvida de que essa jurisprudência é no sentido de admitir a revista, mesmo quando o critério de pronúncia da decisão impugnada tenha sido a equidade (como pode acontecer nas acções de responsabilidade civil (cf. art. 566.º, n.º 3, CC) e como sucede nas acções relativas à resolução ou modificação do contrato baseada em alteração das circunstâncias (cf. art. 437.º, n.º 1, CC)). Parece ter-se formado no STJ um costume jurisprudencial contra legem no sentido da admissibilidade da revista e da competência decisória do STJ para controlar decisões tomadas com base em critérios de equidade.


Nesta óptica, há que concluir que a orientação defendida nos acórdãos acima referidos não observa este costume jurisprudencial, dado que todos eles negam a competência decisória do STJ para controlar decisões baseadas em critérios de equidade.

3. Do que acima se expôs pode concluir-se que há fundamentos legais e doutrinários para não reconhecer ao STJ competência decisória quando o critério de decisão seja a equidade. Isto significa que nada há a objectar à orientação adoptada nos acórdãos acima referidos, dado que há efectivamente boas razões legais e doutrinárias para entender que o STJ não pode controlar a aplicação pelas instâncias do critério de equidade.

Uma coisa importa, no entanto, acrescentar. A questão não respeita apenas à competência decisória do STJ, mas também e desde logo às condições de admissibilidade do recurso de revista quando a decisão recorrida tiver sido proferida com base no critério da equidade. Na verdade, a competência decisória do tribunal ad quem condiciona naturalmente os fundamentos dos recursos que podem ser interpostos para esse tribunal. É porque a Relação conhece de matéria de facto e de direito que a apelação pode recair sobre qualquer dessas matérias; é porque o STJ só conhece de matéria de direito que a revista só pode ser interposta com base em violação de lei.

Sendo assim, a restrição da competência decisória do STJ quanto às decisões baseadas no critério da equidade significa que, quanto a estas decisões, só é possível interpor recurso com fundamento em matéria que, após essa restrição, continua a pertencer à competência do STJ. Em concreto, utilizando o critério utilizado em STJ 15/9/2016, a revista só é admissível com o fundamento de que a decisão recorrida não se situa nos "limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo" por desrespeitar, "nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade". 

4. Posto isto, o problema não é "se" o STJ tem fundamento para modificar a sua jurisprudência sobre a admissibilidade da revista interposta de decisões proferidas com base no critério da equidade, mas "como" é que o pode fazer.

Há alguns tempos, TEDH 30/7/2015 (30123/10, Ferreira Santos Pardal/Portugal) censurou o desrespeito pelo STJ da sua própria jurisprudência (cf.Jurisprudência europeia (TEDH) (8)). Apesar de se poder falar de um costume jurisprudencial contra legem quanto à admissibilidade da revista interposta de decisões proferidas segundo um critério de equidade, não pode impedir-se que a problemática dessa admissibilidade seja repensada à luz de novos argumentos.

Ao contrário do que sucedeu no caso analisado pelo TEDH -- em que o STJ se afastou da sua jurisprudência constante com base em argumentos que o próprio já analisara e rejeitara --, agora trata-se de discutir a questão da recorribilidade das decisões proferidas com base na equidade num enquadramento que o STJ nunca considerou. Aliás, desconhece-se qualquer debate na jurisprudência do STJ sobre a recorribilidade das decisões tomadas com base na equidade. Parece que sempre se partiu do princípio de que essa recorribilidade era indiscutível e inquestionável.

A verdade é, todavia, que aquela recorribilidade tem muito de discutível e de questionável.  Assim, não havendo motivos para impedir o STJ de mudar de orientação quanto à admissibilidade da revista interposta de decisões tomadas com base em critérios de equidade, é desejável que, atendendo ao valor da confiança decorrente da estabilidade jurisprudencial, essa mudança ocorra rapidamente.

O que não se pode verificar durante muito tempo é uma flutuação da jurisprudência de caso para caso quanto à competência decisória do STJ em matéria de equidade. O STJ tem de decidir num prazo relativamente curto se quer aderir à nova orientação sobre a recorribilidade das decisões proferidas com base em critérios de equidade ou se quer continuar a orientar-se pelo referido costume jurisprudencial contra legem e, por isso, por uma recorribilidade irrestrita daquelas decisões. 

Times They Are a Changin -- agora também em matéria de recorribilidade para o STJ das decisões proferidas segundo critérios de equidade. Exigível é, no entanto, que, a bem da estabilidade da jurisprudência e da confiança nas decisões dos tribunais, a mudança, a verificar-se, seja rápida.

5. É natural que se coloque o problema de saber se o que acima se disse a propósito da recorribilidade para o STJ das decisões de equidade também vale para a sua recorribilidade para as Relações. 

A questão colocada merece -- tanto quanto é possível resolvê-la sem muitas considerações -- uma resposta negativa. A justificação é a seguinte: apenas a revista tem de ter por base a violação de lei, porque somente o STJ tem a sua competência limitada à matéria de direito; o mesmo não pode ser dito quanto à apelação, porque as Relações não têm nenhuma restrição quanto às matérias de que podem conhecer: estes tribunais são, se assim se pode dizer, tribunais de competência decisória genérica (como, aliás, também o são os tribunais de 1.ª instância).

MTS