"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/10/2016

Jurisprudência (468)



Direito ao recurso; alçada; sucumbência
constitucionalidade




O sumário de STJ 19/5/2016 (122702/13.5YIPRT.P1.S1) é o seguinte:

1. Com excepção dos casos previstos no art. 629º, nº 2, do CPC (ressalvado pelo art. 671º, nº 2, al. a)), a interposição de recurso de revista pressupõe que o valor da acção seja superior à alçada da Relação e que o valor da sucumbência seja superior a metade dessa alçada.

2. O direito ao recurso e designadamente o de interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pode ser limitado pelo legislador ordinário.

3. A norma do art. 629º, nº 1, do CPC, que limita o direito ao recurso em função do valor do processo e do valor da sucumbência não sofre de inconstitucionalidade material.
 

II. Da fundamentação do acórdão retira-se o seguinte trecho:

"Atenta a natural escassez dos meios disponibilizados para administrar a Justiça, a necessidade da sua racionalização contende com a admissibilidade ilimitada de recursos que, aliás, não encontra sustentação no texto constitucional.

Por isso a jurisprudência constitucional vem expressando o entendimento de que, em matéria cível, o direito de acesso aos tribunais não integra forçosamente o direito ao recurso ou o chamado duplo grau de jurisdição. [Cfr. Lopes do Rego, Comentários ao CPC, pág. 453, e “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, págs. 763 e segs., citando jurisprudência do Tribunal Constitucional, segundo a qual o que existe é um “genérico direito ao recurso de actos jurisdicionais, cujo conteúdo pode ser traçado pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude”, ainda que seja vedada “a redução intolerável ou arbitrária” desse direito. Cfr. ainda diversa jurisprudência citada por Lebre de Freitas e Cristina Máximo dos Santos em O Processo Civil na Constituição, págs. 167 e segs. Sobre o princípio do duplo grau de jurisdição e sua conexão com a CRP cfr. ainda Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., págs. 72 a 76] Também tem sido assumido que tal direito não é necessariamente decorrente do que se dispõe na Declaração Universal dos Direitos do Homem ou na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. [Cfr. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, págs. 99 e 100].

Em suma, o direito ao recurso, como na generalidade dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, não se apresenta com natureza absoluta, convivendo sempre com preceitos que fazem depender a multiplicidade de graus de jurisdição de determinadas condições objectivas ou subjectivas. [Cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 75].

Seguramente que a previsão da existência de três graus de jurisdição no ordenamento jurídico-constitucional implica que a lei ordinária admita a possibilidade de serem interpostos recursos para a Relação ou desta para o Supremo Tribunal de Justiça. Nessa medida, seria inconstitucional a exclusão arbitrária do direito de recorrer em determinados processos ou a elevação do valor das alçadas a tal ponto que vedasse a interposição de recursos relativamente a acções de valor significativo, contrariando o princípio da proporcionalidade.

Sendo permitido afirmar que está vedado ao legislador suprimir em bloco a recorribilidade ou fazê-la depender de circunstâncias que traduzam a violação do princípio da proporcionalidade [Cfr. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, pág. 101, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 377, e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 75], tal não determina, porém, que toda e qualquer restrição a um ou mais graus de jurisdição traduza violação de regras ou de princípios constitucionais.

Como refere Lopes do Rego, as “limitações derivam, em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais” [Em “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, inserido em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, pág. 764.]

Embora a este respeito não se identifique um critério formal delimitador dos poderes do legislador ordinário, pode concluir-se, com Ribeiro Mendes, que, dentro dos princípios enunciados, o legislador “poderá ampliar ou restringir os recursos civis, quer através da alteração dos pressupostos de admissibilidade, quer através da mera actualização dos valores das alçadas” [Recursos em Processo Civil, pág. 101. Cfr. ainda Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 378, ou o Ac. do Trib. Const., de 6-4-99, BMJ 486º/44. Noutro acórdão, de 11-2-98, BMJ 474º/85, refere-se que os limites do direito de recorrer decorrentes da articulação entre o valor da causa e as alçadas não consubstanciam restrições a um direito fundamental – o direito ao recurso – incompatível com a Constituição, já que desta não resulta a existência de um direito irrestrito a impugnar todas as decisões judiciais, não podendo inferir-se dos princípios constitucionais a existência de um triplo grau de jurisdição].

O critério adoptado pelo legislador ordinário assenta essencialmente no valor do processo e da sucumbência, conexo com o valor da alçada da 1ª instância ou da Relação, consoante o recurso seja interposto para a Relação ou para o Supremo Tribunal de Justiça.

É, pois, o valor da alçada o factor que é determinante para a recorribilidade, sendo relativamente a esse referencial que se poderá aferir se a norma que o fixa está ou não está afectada pela violação do princípio da proporcionalidade."

[MTS]