Indemnização civil;
ónus de alegação; danos supervenientes
1. O sumário de RP 5/5/2016 (2028/14.4TBSTS-A.P1) é o seguinte:
I - Se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos o lesado pode, nos termos do art.º 569.º do C.C., reclamar, no decurso da acção, indemnização mais elevada.
II - Essa possibilidade não depende da superveniência objectiva dos danos revelados no decurso do processo.
III - Essa possibilidade tem implícita a faculdade de o lesado alegar no decurso da acção os factos que consubstanciam os danos superiores.
IV - As normas processuais que regulam o articulado superveniente e a ampliação do pedido têm de ser interpretadas de forma a permitirem concretizar esses poderes do lesado.
2. Na fundamentação do acórdão diz-se o seguinte:
"O articulado superveniente é o articulado que [...] permite introduzir no processo factos supervenientes à apresentação do articulado da parte.
O n.º 1 do artigo 588.º prescreve que os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão. O n.º 2 acrescenta que para este efeito se consideram supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos para a apresentação dos articulados normais da acção, como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo, neste caso, produzir-se prova da superveniência.
O n.º 3 fixa o prazo para a apresentação do articulado superveniente: a) na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respectivo encerramento; b) nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado a audiência prévia; c) na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores. E o n.º 4 consigna que o juiz deve proferir despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa.
Decorre destes normativos que o juiz apenas pode indeferir o articulado superveniente com fundamento na sua extemporaneidade ou na falta de interesse dos novos factos para a boa decisão da causa.
Vejamos agora outra perspectiva.
O artigo 260.º do Código de Processo Civil consagra o chamado princípio da estabilidade da instância ao estatuir que “citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”. Em conformidade com essa disposição, o artigo 564.º do mesmo diploma acentua que a citação do réu produz, entre outros, o efeito de tornar estáveis os elementos essenciais da causa, nos termos do artigo 260.º.
Daqui resulta que após a citação do réu a modificação dos elementos subjectivos (as partes) e objectivos (a causa de pedir e o pedido) da lide apenas pode ter lugar nos casos em que a lei a consente e o seu exercício depende dos requisitos com que a lei define esses casos, ainda que, uma vez preenchidos os requisitos dos casos legais de modificação, o direito processual de operar essas modificações se assuma como um direito potestativo cujo exercício depende somente da vontade do interessado.
A modificação dos elementos objectivos da lide (causa de pedir e pedido) pode ter lugar por acordo das partes ou sem esse acordo, nas condições e sob os requisitos dos artigos 264.º e 265.º do Código de Processo Civil.
Para o caso interessa a modificação na falta de acordo. Nessa situação, segundo o artigo 265.º, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor. Já opedido pode ser reduzido em qualquer altura e pode ainda ser ampliado até ao encerramento da discussão em 1.ª instância desde que a ampliação seja o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.
O n.º 5 do artigo 265.º tem, no entanto, uma particularidade para as acções de indemnização fundadas em responsabilidade civil. Nessas acções, o autor pode requerer, até ao encerramento da audiência final em 1.ª instância, a condenação do réu nos termos previstos no artigo 567.º do Código Civil, mesmo que inicialmente tenha pedido a condenação daquele em quantia certa, ou seja, pode haver uma modificação do pedido à margem das condições dos nos. 1 e 2 do mesmo preceito.
Por fim é necessário ter em conta que nas acções de indemnização por responsabilidade civil a causa de pedir é complexa já que compreende factos destinados ao preenchimento dos diversos pressupostos da responsabilidade, como sejam, o acto ilícito, a culpa, o nexo de causalidade e os danos. Sendo complexa, não équalquer alteração dos factos alegados que importa uma modificação da causa de pedir da acção de responsabilidade civil.
Com efeito, tendo sido alegados na petição inicial factos concretos para consubstanciar os danos causados pelo acto ilícito, a causa de pedir ficou definida e não se altera se o autor se limita depois a acrescentar novos danos. Estes novos factos destinados apenas a concretizar os danos decorrentes do facto ilícito complementam a causa de pedir apresentada, acrescentando-lhe algo mas sem que se possa dizer que a acção passa a ter uma nova e distinta causa de pedir ou passa a ter um novo fundamento que antes não possuía.
Esta é a perspectiva puramente processual. Mas existe uma perspectiva substantiva do problema que importa consequências decisivas. Na verdade, em relação às obrigações de indemnização, a lei civil mostra particular preocupação em assegurar que o lesado é inteiramente ressarcido, procurando eliminar alguns obstáculos a esse ressarcimento decorrentes do apuramento da totalidade dos danos.
Dispõe assim o artigo 569.º do Código Civil que quem exigir a indemnização não necessita de indicar a importância exacta em que avalia os danos, nem o facto de ter pedido determinado quantitativo o impede, no decurso da acção, de reclamar quantia mais elevada, se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos.
Esta solução tem uma tripla vantagem: assegurar que o lesado é indemnizado da totalidade dos danos que sofreu; permitir que ao mesmo tempo se faça a prova da totalidade dos danos, aproveitando o esforço probatório; evitar a necessidade da instauração posterior de uma nova acção, na qual acabaria por se repetiractos de instrução de factos apurados na acção anterior.
Por isso, o artigo 265.º do Código de Processo Civil tem de ser interpretado, no que concerne às acções de indemnização, de forma a assegurar a aplicação material desta norma de direito substantivo, não podendo a sua aplicação estrita inviabilizar a possibilidade de o lesado reclamar no processo danos superiores àqueles que inicialmente pediu mas que o processo permitiu apurar que efectivamente ocorreram.
Note-se que o artigo 569.º do Código Civil não limita a atendibilidade dos danos superiores revelados no processo à sua superveniência. A aplicação da norma não depende de os danos acrescidos terem ocorrido apenas depois da instauração da acção ou terem sido conhecidos do lesado apenas depois dessa data. Mesmo que já fossem conhecidos do lesado e este se tenha esquecido de os alegar ou tenha mesmo erradamente decidido não os alegar logo na petição inicial, desde que venham a ser apurados (revelados) no processo, o lesado pode, ainda assim, pedir no processo uma indemnização por estes danos.
Tendo estas normas legais presentes pode agora, com grande segurança, afirmar-se que o articulado superveniente não podia ser rejeitado, como foi, com fundamento na sua falta de interesse para a boa decisão da causa.
Os novos factos alegados são efectivamente factos constitutivos do direito de indemnização que o autor quer exercer através da acção, na medida em que uma vez demonstrados, se estiverem demonstrados os demais requisitos da responsabilidade, permitirão fundar neles um direito indemnizatório.
São ainda factos complementares da causa de pedir complexa na medida em que acrescentam outras dimensões do dano decorrente do acto ilícito que serve de fundamento à acção e são mesmo factos principais na medida em que são necessários para que o tribunal possa atribuir uma indemnização também pelo dano decorrente da incapacidade permanente que sobreveio das lesões corporais causada pelo acto ilícito.
É certo que a autora ainda não ampliou o seu pedido de forma a incluir neste o valor indemnizatório correspondente a essa incapacidade. Pode compreender-se que essa ampliação não tenha sido feita se se der a circunstância de a autora ainda desconhecer o grau de incapacidade permanente que a afecta, aspecto que será relevante para a fixação do valor da indemnização, ainda que tivesse sido avisado proceder, em simultâneo com a apresentação do articulado superveniente, à ampliação do pedido, deduzindo um pedido de indemnização por este dano em valor a liquidar ulteriormente.
Todavia, não se podia indeferir o articulado superveniente com fundamento de que não há pedido para acolher os novos factos uma vez que nos termos dos artigos 569.º do Código Civil e 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, a autora ainda poderá ampliar o pedido até ao encerramento da discussão em 1.ª instância por se tratar de um mero desenvolvimento do pedido primitivo. E terá mesmo de o fazer sob pena de, na sentença, o tribunal ficar limitado ao valor do pedido formulado na petição inicial!
Permitindo o artigo 569.º do Código Civil que o lesado por acto ilícito possa, no decurso da acção, reclamar quantia mais elevada que a pedida na petição inicial se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos, dada a instrumentalidade do processo em relação ao direito substantivo ou material, tem de se encontrar na lei processual norma que consinta ao lesado alegar os factos que consubstanciam esses danos acrescidos.
Essa norma é o artigo 265.º do Código de Processo Civil desde que devidamente interpretado. Quando exige a confissão do réu para permitir a modificação da causa de pedir, o n.º 1 da norma reporta-se aos casos de alteração da causa de pedir (quando a causa de pedir era uma e passa a ser outra) ou de ampliação da causa de pedir (a causa de pedir deduzida mantém-se mas acrescenta-se um novo fundamento resultante de um facto jurídico concreto). Tratando-se, como se trata aqui, de completar a causa de pedir, de aperfeiçoar um dos elementos essenciais dessa causa já alegado mas em relação ao qual houve desenvolvimentos com relevo para a boa decisão da causa, caso em que a causa de pedir permanece a mesma apenas havendo modificação ao nível de aspectos acessórios ou complementares da mesma, a ampliação do pedido, admitida pelo n.º 2 da norma, tem de consentir, necessariamente, a alegação dos factos jurídicos necessários para fundamentar essa ampliação, para o que o articulado a usar é o articulado superveniente.
O fundamento que se podia invocar para rejeitar o articulado seria o da superveniência. Isto porque que no caso da superveniência subjectiva (factos que só foram conhecidos depois da apresentação do articulado normal) a parte final do n.º 2 do artigo 588.º do Código de Processo Civil exige a parte faça prova da superveniência dos factos que veio alegar, sendo certo que no caso a ré, ouvida sobre a admissibilidade do articulado, questionou que estejamos mesmo perante factos que a autora só agora tenha conhecido.
Sucede, no entanto, conforme já se assinalou, que o artigo 569.º do Código Civil não exige que os novos danos sejam objectiva ou subjectivamente supervenientes para permitir ao lesado obter a indemnização dos mesmos na acção já instaurada e onde apenas havia alegado outros danos de menor extensão. Nessa medida, a parte final do n.º 2 do artigo 588.º do Código de Processo Civil tem de ser interpretada restritivamente nos casos de acções de indemnização, que são as únicas a que se refere o artigo 569.º do Código Civil, pela razão já mencionada do benefício do lesado.
De modo a respeitar o disposto no artigo 569.º do Código Civil, nessas acções o lesado não necessita de provar a superveniência subjectiva dos novos factos alegados, porque mesmo que já os conhecesse eles ainda podem ser atendidos na acção que já corre termos. O que significa, em conclusão, que não havia fundamento para rejeitar o articulado superveniente e que os factos da incapacidade permanente da lesada, agora alegados, devem ser aditados aos temas de prova e ser objecto de instrução."
3. O acórdão da RP merece tanto um juízo de rejeição, como de aceitação. O conteúdo do acórdão justifica esta afirmação aparentemente contraditória.
Não deve ser seguida a orientação, defendida no acórdão, segundo a qual o art. 569.º CC "não exige que os novos danos sejam objectiva ou subjectivamente supervenientes". O preceito não permite a alegação superveniente de danos que já eram (ou deviam ser) conhecidos do autor no momento da propositura da acção. A não se entender assim, aquele preceito não respeitaria à possibilidade da alegação de danos supervenientes, antes estabeleceria uma excepção à preclusão de factos não alegados e aceitaria nas acções de responsabilidade civil um grau de diligência inferior àquela que é exigível em qualquer outra acção (para não dizer que aceitaria a negligência do autor na alegação de danos já verificados).
Em todo o caso, o acórdão merece aceitação, já que a autora alegou efectivamente danos supervenientes ("ligeira deformação osteofitária das superfícies articulares do tarso, bem como tarso-metatarsiana, por aparente osteoartrose numa fase inicial"). Sendo assim, há que considerar admissível a invocação em juízo daqueles factos.
Em todo o caso, o acórdão merece aceitação, já que a autora alegou efectivamente danos supervenientes ("ligeira deformação osteofitária das superfícies articulares do tarso, bem como tarso-metatarsiana, por aparente osteoartrose numa fase inicial"). Sendo assim, há que considerar admissível a invocação em juízo daqueles factos.
Pode acrescentar-se que é irrelevante analisar se a alegação daqueles factos implica uma alteração da causa de pedir, dado que a invocação de factos supervenientes é sempre admissível, independentemente da verificação dos requisitos da alteração da causa de pedir que constam (agora) do art. 265.º, n.º 1, CPC.
MTS