"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/10/2016

Jurisprudência (459)


 
Direito a alimentos;  Reg. 4/2008; ProtCobrAl
lei aplicável

1. O sumário de RC 31/5/2016 (582/13.7TMCBR.C1) é o seguinte:

I – Aplicando ao caso o art.º 5.º do Protocolo de Haia para efeitos da determinação da legislação aplicável nos termos da remissão efectuada pelo art.º 15.º do Regulamento (CE) nº 4/2009 do Conselho de 18 de Dezembro de 2008, “aplicável às obrigações alimentares decorrentes das relações de família, de parentesco, de casamento ou de afinidade” - cfr. o artigo 1.º, n.º 1 -, a lei aplicável é a lei alemã.

II - Consequência da adopção do sistema de divórcio constatação de ruptura, a nossa lei consagra actualmente, conforme é sabido, o princípio da auto-suficiência, daí decorrendo o carácter temporário da obrigação a favor dos ex-cônjuges (cf. art.º 2116.º).

III - Fundada tal obrigação num dever de solidariedade pós conjugal, a sua constituição depende da necessidade do credor e das possibilidades do devedor; de carácter essencialmente alimentar, a prestação fica sujeita a alterações nos termos do art.º 2102.º e cessa tão logo o titular do direito seja capaz de prover à sua subsistência ou o devedor fique sem recursos que lhe permitam continuar a suportá-la (cf. art.ºs 2012.º e 2013.º).

IV - Percorrendo os preceitos reguladores da obrigação de alimentos no BGB, logo na abertura o art.º 1569.º consagra o princípio da responsabilidade pessoal, impondo que cada cônjuge, depois do divórcio, providencie pela sua subsistência podendo, se não tiver condições para o fazer, reclamar do ex-cônjuge uma prestação alimentar, assim consagrando uma solução próxima da acolhida pelo n.º 1 do art.º 2016.º citado.

V - Afigura-se que nenhuma substancial diferença existiria entre o regime de alimentos a ex-cônjuge fixado na lei alemã e aquele que resulta do nosso Código Civil. Todavia, perturbando de algum modo tal identidade de soluções, dispondo sobre “a medida dos alimentos”, preceitua o art.º 1578.º que “A medida dos alimentos será calculada nos termos do padrão de vida na constância do casamento”, alimentos que deverão cobrir todas as necessidades do alimentando, incluindo um seguro de saúde que contemple cuidados de longa duração e as despesas referentes a formação académica ou profissional, formação complementar ou reconversão profissional nos termos dos artigos 1574.º e 1575.º.

VI - Embora o BGB consagre no já citado artigo 1569.º o princípio de que cada cônjuge há-de garantir, após o divórcio, a sua subsistência, afirmando o art.º 1577.º, em coerência, que o ex-cônjuge não poderá requerer alimentos nos termos dos precedentes artigos enquanto e na medida em que conseguir prover à sua subsistência, não deixa de se fazer referência, no § 2.º do preceito, ao artigo 1578.º (e também ao artigo 1578.ºb) que, conforme se viu, referencia a prestação alimentar ao padrão de vida obtido na constância do casamento. O princípio da responsabilização de cada cônjuge surge assim de algum modo limitado pelo princípio da co-responsabilização pós-conjugal.
 

2. Da fundamentação do acórdão extrai-se a seguinte parte: 

"O autor, devedor de alimentos, veio a juízo pedir se declare cessada a obrigação de os prestar ao seu ex-cônjuge, aqui ré, alegando que em virtude de alterações relevantes verificadas ao nível dos rendimentos disponíveis de um e do outro, nem a credora deles carece, nem ao requerente é já possível prestá-los.

Autor e ré têm nacionalidade alemã - o autor adquiriu também entretanto a nacionalidade portuguesa - casaram-se e divorciaram-se na Alemanha, tendo o acordo que celebraram quanto a alimentos sido objecto de homologação por banda de tribunal alemão. Na ponderação de tais factores, e aplicando ao caso o art.º 5.º do Protocolo de Haia para efeitos da determinação da legislação aplicável nos termos da remissão efectuada pelo art.º 15.º do Regulamento (CE) nº 4/2009 do Conselho de 18 de Dezembro de 2008, “aplicável às obrigações alimentares decorrentes das relações de família, de parentesco, de casamento ou de afinidade” - cfr. o artigo 1.º, n.º 1 -, determinou o Tribunal “a quo” que a lei aplicável era a lei alemã, decisão acatada pelas partes e que se nos afigura correcta.

Consequência da adopção do sistema de divórcio constatação de ruptura, a nossa lei consagra actualmente, conforme é sabido, o princípio da auto-suficiência, daí decorrendo o carácter temporário da obrigação a favor dos ex-cônjuges (cf. art.º 2116.º). Fundada tal obrigação num dever de solidariedade pós conjugal, a sua constituição depende da necessidade do credor e das possibilidades do devedor; de carácter essencialmente alimentar, a prestação fica sujeita a alterações nos termos do art.º 2102.º e cessa tão logo o titular do direito seja capaz de prover à sua subsistência ou o devedor fique sem recursos que lhe permitam continuar a suportá-la (cf. art.ºs 2012.º e 2013.º).

Finalmente, a auto-suficiência não é aferida à luz do padrão de vida conjugal, antes afirmando expressamente o legislador que o credor de alimentos não tem o direito de exigir a sua manutenção (cf. art.º 2016.º, n.º 3). Não obstante, não deixou de prever que na fixação dos alimentos seja tido em conta a medida da colaboração prestada pelo cônjuge credor à economia do casal (art.º 2016-A, no seu n.º 1), afloramento do critério da compensação que justifica o reconhecimento do crédito a que alude o n.º 2 do art.º 1676.º fora do campo específico da obrigação alimentar [...].

Percorrendo agora os preceitos reguladores da obrigação de alimentos no BGB, logo na abertura o art.º 1569.º consagra o princípio da responsabilidade pessoal, impondo que cada cônjuge, depois do divórcio, providencie pela sua subsistência podendo, se não tiver condições para o fazer, reclamar do ex-cônjuge uma prestação alimentar, assim consagrando uma solução próxima da acolhida pelo n.º 1 do art.º 2016.º citado.

Os preceitos imediatos conferem ao ex-cônjuge direito a alimentos estando em causa a instrução ou educação de um filho comum, obrigação que se mantém até aos 3 anos de idade do menor e podendo prolongar-se quando razões de equidade assim o justifiquem (artigo 1570.º); quando, por motivos de idade, doença ou incapacidade, não lhe seja exigível o exercício de uma actividade profissional (artigos 1571.º e 1572.º); e ainda quando, embora não tenha direito à prestação no domínio da previsão de nenhum dos artigos precedentes, não consiga arranjar uma actividade profissional devidamente remunerada ou aquela que desenvolve não seja suficiente para prover à sua subsistência nos termos do art.º 1578.º, caso em que poderá peticionar, a título de alimentos, a diferença (art.º 1573.º).

Harmonizando-se com o aludido princípio da auto-suficiência ou responsabilidade pessoal, o art.º 1574.º impõe ao cônjuge necessitado a obrigação de exercer uma actividade profissional remunerada, atribuindo-lhe o art.º 1575.º o direito a alimentos quando “na perspectiva de contrair casamento ou durante o casamento não tenha concretizado a sua formação escolar ou profissional ou a tenha interrompido”, caso em que a prestação se manterá pelo tempo necessário à conclusão da formação com sucesso, de modo a poder vir a exercer uma actividade profissional remunerada adequada que lhe permita assegurar a sua subsistência. Tal disposição é ainda aplicável no caso do ex-cônjuge pretender complementar a sua formação ou reconverter-se profissionalmente, “de modo a compensar os prejuízos advindos no âmbito do casamento”.

Finalmente, o art.º 1576.º confere o direito a alimentos ao ex-cônjuge quando razões ponderosas o justifiquem “e pelo tempo estritamente necessário, quando não seja expectável o exercício de uma actividade remunerada adequada e a recusa da prestação de alimentos seja grosseiramente injusta”.

Para efeitos do enquadramento legal da questão importa ainda atender a quanto dispõe o art.º 1577.º, preceito que consagra o requisito da necessidade, dispondo no seu §1.º que “O ex-cônjuge não pode requerer alimentos nos termos dos artigos 1570.º a 1573.º, 1575.º e 1576.º enquanto e na medida em que consiga prover à sua subsistência através dos seus próprios rendimentos e património”.

Aqui chegados, afigura-se que nenhuma substancial diferença existiria entre o regime de alimentos a ex-cônjuge fixado na lei alemã e aquele que resulta do nosso Código Civil. Todavia, perturbando de algum modo tal identidade de soluções, dispondo sobre “a medida dos alimentos”, preceitua o art.º 1578.º que “A medida dos alimentos será calculada nos termos do padrão de vida na constância do casamento”, alimentos que deverão cobrir todas as necessidades do alimentando[2], incluindo um seguro de saúde que contemple cuidados de longa duração e as despesas referentes a formação académica ou profissional, formação complementar ou reconversão profissional nos termos dos artigos 1574.º e 1575.º.

Sendo a lei alemã a aplicável, a medida dos alimentos, ao invés do que ocorre à luz da legislação portuguesa, encontra-se ainda indexada ao padrão da vida conjugal do dissolvido casal [...], como forma de garantir o princípio da divisão pela metade e que o cônjuge credor partilhe da condição económica que, ao fim e ao cabo - é este o pressuposto - foi alcançada graças ao esforço conjunto de ambos. Este preceito, invocado pela recorrida como impeditivo da procedência da pretensão do apelante seu ex-marido, tem sido objecto, conforme a própria informou, de interpretação restritiva por banda do Supremo Tribunal de Justiça Federal Alemão, interpretação todavia censurada pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão, que a considerou violadora da Lei Fundamental, conforme resulta da decisão proferida em 25 de Janeiro de 2011 no processo 918/10 [...]. Justificaria a solução legal, mantida inalterada pelo legislador alemão a despeito das alterações que veio introduzindo no regime dos alimentos a ex-cônjuge, a ideia de que o cônjuge que sacrifica os seus interesses individuais dando primazia ao interesse comum, prescindindo amiúde da sua valorização e contribuindo para a valorização do outro cônjuge, há-de ser compensado finda a sociedade conjugal pelos prejuízos daí decorrentes, os quais, caso contrário, acabaria por suportar sozinho [...]. 


É certo que o Tribunal Constitucional Federal Alemão [...] declarou inconstitucional a interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça Federal Alemão da 1.ª parte do § 1.º do art.º 1578.º do BGB quando admitiu, para efeitos da fixação da prestação a atribuir ao ex-cônjuge, a relevância da mudança operada nas condições económicas da vida conjugal por força de um casamento sucessivo, utilizando o método da tripartição (que pressupõe, grosso modo, a consideração dos rendimentos globais e sua divisão “por cabeça”). Reafirmou então o TC que o preceito convoca a condição económica do dissolvido casal tendo por referência o momento em que o divórcio se tornou definitivo (critério estático), o que terá sido querido pelo legislador, que não alterou o preceito mau grado as demais alterações introduzidas. Todavia, logo ressalvou que as exigências de equivalência na protecção dos cônjuges sucessivos se encontravam satisfeitas com a nova regulamentação dos art.ºs 1569.º, 1578.ºb) e 1609.º.

Detenhamo-nos, pois, nestes dois últimos preceitos.

Nos termos do citado artigo 1578.ºb), o direito a alimentos do cônjuge divorciado, mesmo tendo em conta as necessidades de um filho comum que se encontre à sua guarda, pode ser reduzido para as despesas de subsistência adequadas no caso do apuramento dos alimentos com base na situação económica conjugal se mostrar contrário à equidade. Deverão, todavia, ser aqui consideradas em particular eventuais desvantagens ocorridas no matrimónio no que respeita à possibilidade do cônjuge credor de alimentos garantir a sua própria subsistência. Tais desvantagens são essencialmente as decorrentes do período dedicado à criação e educação de um filho comum, a divisão do trabalho doméstico e da actividade profissional durante o casamento, bem como a duração deste (§1.º).

Consoante prescreve o §2.º, o direito a alimentos do cônjuge divorciado, mesmo tendo em conta as necessidades de um filho comum à guarda desse credor de alimentos, deverá ser limitado no tempo, sempre que um direito sem limite de tempo se mostre contrário à equidade.

Por seu turno, o art.º 1609.º, dispondo para a pluralidade de credores, estatui que, existindo vários alimentados e não podendo o obrigado prestar alimentos a todos, segue-se a seguinte ordem:

1. Filhos solteiros menores e equiparados nos termos do art.º 1603.º, §2.º, 2.ª frase;

2. Progenitores que, devido à guarda do filho, tenham ou pudessem ter direito a alimentos em virtude de divórcio, bem como cônjuges e ex-cônjuges de longa duração; determinado que se trata de um casamento de longa duração, deverá ter-se em conta o disposto no 1578b) §1.º, 2.ª e 3.ª frases.

3. Cônjuges e ex-cônjuges que não se enquadrem no ponto 2. [...]

6. Progenitores. [...].

[...] não se tendo verificado alteração relevante da situação da requerida à data do acordo que permita concluir pela desnecessidade dos alimentos, ocorreu no entanto alteração relevante da situação económica do autor/apelante, a impor a redução dos alimentos face à injustiça a que conduz a utilização do critério da manutenção do padrão de vida existente à data do divórcio de autor e ré, o que se faz ao abrigo do disposto no art.º 1578b) do BGB.".

3. O § 1578b BGB estabelece, na versão inglesa do Ministério da Justiça e da Protecção dos Consumidores do Governo Federal, o seguinte:


Section 1578b
Reduction and time limitation of maintenance on grounds of inequity
(1)The maintenance claim of the divorced spouse is to be reduced to cover the reasonable necessities of life where an assessment of the maintenance claim oriented to the marital standard of living would be inequitable even if the concerns of a child of the spouses entrusted to the person entitled in order to be cared for or brought up were observed. Here, particular account is to be taken of how far, as a result of the marriage, disadvantages have occurred with regard to the possibility of taking care of one’s own maintenance or a reduction of the maintenance claim would be unfair, consideration being given to the duration of the marriage. Disadvantages within the meaning of sentence 2 may result above all from the duration of the care or upbringing of a child of the spouses, as well as from the organisation of household management and gainful employment during the marriage.
(2)The maintenance claim of the divorced spouse is to be limited in time where a maintenance claim without time limitation would be inequitable even if the concerns of a child of the spouses entrusted to the person entitled in order to be cared for or brought up were observed. Subsection (1) sentences 2 and 3 applies with the necessary modifications.
(3)The reduction and time limitation of the maintenance claim may be combined.
 
O preceiito refere-se a uma redução ou a uma limitação temporal da prestação de alimentos quando uma prestação sem qualquer limitação seria injunsta, estabelecendo como base para a aferição desta injustiça as desvantagens que o ex-cônjuge credor sofreu com o casamento quanto à possibilidade de adquirir meios de subsistência próprios: a título exemplificativo, o preceito refere, como critérios para aferir esta possibilidade, a duração dos cuidados devidos a um filho comum, a organização do agregado familiar e o exercício de actividades remuneradas durante o casamento e ainda a duração do próprio casamento. A doutrina alemã fala a este propósito de "ehebedingte Nachteile" ("desvantagens causadas pelo casamento") (cf., por exemplo, PWW/Soyka § 1578b Rn. 4). Incumbe ao devedor da prestação alegar que as "desvantagens causadas pelo casamento" não existem (ou já não existem) e ao credor da prestação impugnar esta alegação (PWW/Soyka § 1578b Rn. 14).

Isto significa que o preceito não pode ser utilizado para justificar a diminuição da prestação de alimentos com base na desnecessidade de quem a recebe e da impossibilidade de quem a presta. Em especial, quanto a este último aspecto deveria ter sido utilizado o § 1581 BGB:


Section 1581
Ability to pay
If the person obliged, with regard to his earnings and property situation, taking into account his other duties, is unable without endangering his own appropriate maintenance to pay maintenance to the person entitled, he need pay maintenance only to the extent that is equitable, taking into account the needs and the earnings and property situation of the divorced spouses. He need not realise the basic assets to the extent that the realisation would be uneconomical or, taking into account the financial circumstances of both spouses, inequitable.


MTS