Produção de prova; dever de colaboração;
inversão do ónus da prova; poderes do STJ
1. Inscreve-se no âmbito do recurso de revista a apreciação do modo como as instâncias qualificaram a actuação de uma das partes no contexto da inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º, nº 2, do CC.
2. A inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º, nº 2, do CC, exige uma actuação culposa da parte que tenha determinado a impossibilidade de a contraparte demonstrar os factos que lhe competiam.
3. Tais condições não se verificam numa situação em que a parte, depois de ter sido notificada, procedeu à junção de vastíssima documentação bancária e justificou a não junção de outros documentos com base em razões objectivas ligadas quer ao dilatado período a que respeitam, quer ao facto de terem sido produzidos por outra entidade bancária que foi objecto de fusão concretizada há mais de 20 anos.
4. Os documentos referentes a depósitos e outras operações bancárias não têm as características da abstracção e da literalidade que envolvem os títulos de crédito, pelo que ao cliente de instituição bancária não pode ser reconhecida pretensão que se baseia em documentos forjados por um funcionário da instituição com o objectivo de iludir o cliente e de ocultar operações que não ficaram reflectidas na contabilidade bancária.
5. Tendo o funcionário da instituição bancária, a coberto de uma procuração subscrita pelo cliente, efectuado operações não autorizadas de levantamento e de transferências de montantes depositados em contas do cliente/procurador, mas tendo também efectuado operações que traduziram a cobertura de responsabilidades assumidas pelo mesmo (v.g.saques de cheques), a quantificação do dano patrimonial sofrido pelo cliente deve ser feita através do diferencial entre as referidas operações.
6. A instituição bancária, atenta a sua qualidade de comitente relativamente ao respectivo funcionário, responde objectivamente pelos danos causados por este na esfera do cliente, responsabilidade que não é afastada pelo facto de aquele também ter agido como procurador do cliente.
7. O facto de o cliente ter constituído seu procurador o referido funcionário bancário, conferindo-lhe poderes para movimentar contas bancárias, não releva para efeitos de aplicação do disposto nos arts. 570º e 571º do CC.
6. A instituição bancária, atenta a sua qualidade de comitente relativamente ao respectivo funcionário, responde objectivamente pelos danos causados por este na esfera do cliente, responsabilidade que não é afastada pelo facto de aquele também ter agido como procurador do cliente.
7. O facto de o cliente ter constituído seu procurador o referido funcionário bancário, conferindo-lhe poderes para movimentar contas bancárias, não releva para efeitos de aplicação do disposto nos arts. 570º e 571º do CC.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"[,,,] As instâncias deveriam ter operado a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º, nº 2, do CC, pelo facto de o R. não ter procedido à junção de 325 documentos?
Com vista a uma resposta afirmativa à questão enunciada, os AA. alegam que o Banco R. foi notificado para juntar documentos que constam dos seus arquivos, mas não procedeu à junção de 325 desses documentos com relevo para o apuramento dos montantes que foram depositados pelos AA., falha que se teria revelado essencial para a elaboração do relatório pericial e para a demonstração de factos relevantes.
A questão suscitada inscreve-se nos limites do recurso de revista. Com efeito, ainda que a intervenção do Supremo em sede de delimitação da matéria de facto provada e não provada dependa da verificação de alguma das situações previstas no art. 674º, nº 3, do CPC, não está em causa qualquer “erro de apreciação de provas”, antes uma alegada violação de norma de direito probatório material que, na perspectiva dos AA., se mostrou decisiva para o apuramento da matéria de facto.
A falta de colaboração das partes tendo em vista a descoberta da verdade pode determinar consequências de ordem diversa, nos termos do art. 417º, nº 2, do CPC, norma para onde explicitamente remete o art. 430º sobre a não junção de documentos na posse da parte contrária.
Segundo aquele preceito, a recusa de colaboração é susceptível de ser livremente apreciada na generalidade dos casos, ressalvando-se, contudo, dessa livre apreciação as situações que se reconduzam à inversão do ónus da prova que acaba por se impor às partes e também aos Tribunais.
Deste modo, tal como é viável a interferência do Supremo Tribunal de Justiça na matéria de facto cuja fixação esteja associada a alguma ofensa a disposição expressa de lei que exija determinado meio de prova ou que fixe a força valor probatória de algum meio, também deve admitir-se que, no âmbito do recurso de revista, possa ser sindicado pelo Supremo o modo como as instâncias interpretaram e aplicaram uma norma de direito probatório material, como a do art. 344º, nº 2, do CC, na medida em que, sendo acolhida a pretensão dos recorrentes, tal se possa traduzir na modificação do juízo probatório subjacente à decisão da matéria de facto provada e não provada.
Todavia, apesar da admissibilidade, em abstracto, da questão, o seu mérito não deve ser reconhecido in casu, uma vez que não se encontram preenchidos os pressupostos de que depende aquele mecanismo probatório, dependente da verificação de um comportamento culposo da contraparte que tivesse determinado a impossibilidade de a parte onerada demonstrar os factos que eram relevantes para a acção ou para a defesa.
Os AA. não identificam com precisão os factos que alegadamente deveriam considerar-se provados em decorrência da pretendida inversão do ónus de prova, sendo manifestamente insuficiente a invocação de uma alegada falta de colaboração do R.
De todo o modo, malgrado as dificuldades reveladas pelo R. de aceder a elementos documentais muito distanciados no tempo e que foram emitidos ainda pelo Banco CC, antes de esta instituição bancária ter sido integrada, por via de fusão bancária, no Banco R., este cooperou com o Tribunal de 1ª instância e com os peritos tendo em vista a clarificação dos acontecimentos que geraram os danos que os AA. vieram invocar, não se revelando a existência de algum comportamento culposo da sua parte. [...]
Acresce que as dificuldades que rodeiam litígios, como o presente, cujo resultado depende do apuramento de factos distanciados no tempo não afectam apenas a posição dos AA. no que concerne aos depósitos que alegadamente teriam sido efectuados e para cuja prova seriam determinantes alguns documentos arquivados pelo R. Também o R., conquanto seja depositário da documentação, acaba por se defrontar com semelhantes dificuldades relativamente ao exercício do seu direito de defesa, tendo em conta a elevadíssima massa documental que sustenta a infinidade de operações bancárias, o relacionamento mantido com a sua rede de clientes e os problemas que decorrem da gestão dessa massa documental. Circunstâncias que no caso concretamente se mostram ainda agravadas pelo facto de os documentos a que os AA. aludem terem sido emitidos quando ainda estava em actividade o Banco CC, entretanto integrado, por via de fusão, no Banco R., tornando ainda mais compreensíveis as dificuldades que foram relatadas pelo R. no que concerne à localização e envio de toda a documentação relacionada com os factos controvertidos.
Enfim, no contexto invocado pelo R. para a falta de junção de todos os demais documentos que porventura poderiam relevar para a decisão da causa, podemos afirmar que o R. fez a demonstração prevista no art. 431º, nº 2, do CPC, impedindo a aplicação da sanção civil prevista no art. 344º, nº 2, do CC.
Ademais, a par da ausência de demonstração de um comportamento culposo da parte do R. para se eximir ao dever de colaboração traduzido na junção exaustiva de toda a documentação (em papel ou microfilmada) que teoricamente poderia importar à decisão da matéria em litígio, não pode dar-se como devidamente preenchido o outro requisito legal respeitante aos efeitos produzidos no exercício do ónus probatório que recaía sobre o A.
Conquanto a junção de outros documentos pudesse clarificar algumas dúvidas com que os peritos e o tribunal de 1ª instância se defrontaram no que concerne ao apuramento de todas as operações bancárias conexas com os AA., enquanto clientes do Banco R., não há razões suficientes para concluir que a falta de junção de alguns documentos tenha sido a causa da impossibilidade ou sequer da dificuldade de prova de alguns dos factos que àqueles interessavam.
A extensão e a densidade do relatório pericial de fls. 5003 e segs. e do complemento de fls. 5196 e segs., assim como o número de diligências que anteriormente foram feitas no sentido de identificar a documentação relevante para o apuramento dos factos controvertidos revelam que não existe base legal para penalizar o R. com uma medida tão drástica quanto a inversão do ónus de prova.
Por conseguinte, sendo verdade que nem todos os factos que os AA. alegaram foram considerados provados, não emerge dos autos um circunstancialismo suficientemente claro (actuação maliciosa ou inércia da parte do Banco R.) que seja susceptível de determinar a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º, nº 2, do CC, nada havendo a censurar à opção das instâncias quando procederam à livre apreciação dos meios de prova (neste sentido e em face de uma situação semelhante cfr. o Ac. do STJ, de 12-10-10, www.dgsi.pt)."
[MTS]