"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/01/2018

Jurisprudência (779)


Matéria de facto; decisão; impugnação;
poderes da Relação


1. O sumário de STJ 21/9/2017 (526/14.9TBCNT.C1.S1) é o seguinte:

I - A expressa intenção – constante da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, apresentada na AR, da qual veio a resultar a Lei n.º 41/2013, de 26-06, que aprovou o novo CPC – de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto” traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação no julgamento do recurso da matéria de facto, cabendo, no entanto, ao recorrente definir o objecto do recurso e fundamentá-lo (art. 640.º, n.º 1, do CPC).

II - A jurisprudência do STJ tem sido uniforme no sentido de que, ao julgar o recurso da matéria de facto, a Relação deve formar a sua própria convicção de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e não apenas controlar a congruência da decisão de facto da 1.ª instância com os meios de prova produzidos (art. 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável por força do n.º 2 do art. 663.º do mesmo Código).

III - A aquisição do direito de propriedade por usucapião exige que se mantenha durante um certo tempo uma posse correspondente ao direito de propriedade, boa para usucapião (art. 1287.º do CC). Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir o direito para si, por usucapião (art. 1290.º do CC).

IV - Revelando os factos provados que o réu se limitou – como é natural numa situação de vida em comum (posto que se provou que autora e réu viveram maritalmente desde o início da década de 70 até ao ano de 2000) –, a usar os prédios em causa na acção (que a autora adquiriu e construiu), o mesmo só poderia tornar-se possuidor caso tivesse havido inversão do título da posse, já que a coabitação não cria posse, nem sequer no âmbito do casamento (art. 1265.º do CC).

V - Constituindo a invocação da inversão do título da posse defesa por excepção peremptória, que não é de conhecimento oficioso e que está sujeita ao princípio da concentração da defesa, deve a mesma ser feita na contestação.

VI - Estando demonstrada a razão da detenção dos prédios por parte do réu e estando assente a posse da autora como sua única proprietária, não pode o réu beneficiar da presunção de posse prevista no art. 1252.º, n.º 2, do CC.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"6. O recorrente alega que o acórdão recorrido errou na alteração dos pontos 9 e 11 da matéria de facto. Em seu entender, a Relação ultrapassou os limites da sua intervenção, que, no respeito pelos princípios da livre apreciação da prova e da imediação, se deve restringir “aos casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios e a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto”, apenas lhe cabendo reapreciar a “razoabilidade da convicção formada pelo tribunal de 1ª Instância (…).”

A questão da delimitação dos poderes de alteração da decisão de facto pela 2ª Instância foi já exaustivamente tratada pelo Supremo Tribunal de Justiça, justamente quanto a saber (1) como o recurso da matéria de facto foi concebido pelo Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro, em articulação com o registo da prova prestada em audiência, e (2) se a Relação tem de se limitar a controlar a congruência da decisão de facto da 1ª Instância com os meios de prova produzidos, ou se vale também em 2ª Instância o princípio da livre apreciação da prova, devendo a Relação formar a sua própria convicção probatória.

E o Supremo Tribunal de Justiça também teve já a oportunidade de se debruçar sobre a tradução, no Código de Processo Civil de 2013, da intenção expressa na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII, apresentada na Assembleia da República, da qual veio a resultar a Lei nº 41/2013, de 26 de Junho (que aprovou o referido Código) de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, o que se traduziu no reforço e ampliação dos poderes da Relação no julgamento do recurso da matéria de facto.

É certo que o Supremo Tribunal de Justiça sempre recordou o conteúdo e o preâmbulo do citado Decreto-Lei nº 39/95, para lembrar que cabe ao recorrente definir o objecto do recurso de facto e fundamentá-lo. Em síntese, e para além de outros requisitos cuja concretização tem variado, salienta-se que o recorrente tem de indicar os concretos pontos de facto que impugna, assim definindo o objecto do recurso, e por que razão os considera mal decididos, quais os meios de prova que impunham decisão diversa e, na lei vigente, que decisão deve ser proferida sobre a matéria impugnada (actual nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil). Apenas a título de exemplo, cfr. acórdão de 10 de Janeiro de 2015, www.dgsi.pt, proc. 6626/09.0TVLSB.L1.S1:“a impugnação da matéria de facto não se destina a que a Relação reaprecie global e genericamente a prova apreciada em 1.ª Instância, não sendo admissível, como se extrai do preâmbulo do DL n.º 39/95, de 15-02, um ataque genérico à decisão da matéria de facto e impondo-se, ao invés, ao recorrente um especial ónus de alegação no que respeita à definição do objecto do recurso e à sua fundamentação, em decorrência dos princípios da cooperação, lealdade e boa fé processuais, por forma a assegurar a seriedade do próprio recurso e a obviar a que este seja usado para fins dilatórios”. O ónus de delimitar o recurso e de o fundamentar prende-se justamente com a ideia de que se tratava apenas de detectar e corrigir “pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso" (preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95).

Não está em causa neste recurso que a autora, ao recorrer para a Relação, tenha cumprido as exigências de identificação e fundamentação do recurso de facto.

7. O Supremo Tribunal de Justiça também foi confrontado por diversas vezes com a segunda questão: saber se a Relação se limita a controlar a congruência da decisão de facto da 1ª Instância com os meios de prova produzidos, ou, diferentemente, deve formar a sua própria convicção, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, apesar de não valer em 2ª instância o princípio da imediação, como o recorrente observa. Uma nota: está apenas em causa a reapreciação de meios de prova constantes do processo, não houve renovação de prova nem produção de novos meios de prova (als. a) e b) do nº 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil).

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem sido uniforme no sentido de que se pretende a formação da convicção da Relação e não apenas o controlo de congruência. Recorda-se o que se escreveu, por exemplo, no acórdão de 2 de Março de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 29/04.0TBBRSD.P1.S1: “(…) é inevitável reconhecer que, com o sistema introduzido pelo Decreto-Lei nº 39/95, a lei fez prevalecer a garantia do segundo grau de jurisdição sobre as vantagens da imediação na produção da prova testemunhal; e que aceitou que, para a 2ª Instância, esta falta de imediação não prejudicava a efectividade do princípio da livre apreciação da prova, que vale em ambas as instâncias. Nada impede que a Relação valore diferentemente os mesmos depoimentos e, de acordo com este princípio da livre apreciação da prova, altere a decisão de facto que neles se baseou; a sua intervenção não está de forma alguma reduzida à eliminação de desconformidades flagrantes entre a decisão da 1ª instância e a prova. Note-se que a lei garante plenamente o contraditório do recorrido (…), no próprio recurso de apelação.”

Esta opção veio aliás a ter consagração expressa no Código de Processo Civil de 2013, assim se esclarecendo em texto de lei o objectivo da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (nº5 do artigo 607º, aplicável por força do nº 2 do artigo 663º).

Não interessa agora recordar outros meios de reforço dos poderes da Relação, no Código de Processo Civil de 2013; apenas se refere, como aliás faz a recorrida nas contra-alegações, que o texto vigente esclarece também que, no âmbito do recurso de facto, a 2ª Instância deve controlar a respectiva decisão (nº 1 do respectivo artigo 662º).

Nem tão pouco vem ao caso salientar que o Supremo Tribunal de Justiça não controla a decisão de facto, enquanto resulta de provas sem valor tabelado (nº 3 do artigo 674º e nº 2 do artigo 682º do Código de Processo Civil); nem a correcção de presunções judiciais, porque se situam ainda no âmbito da matéria de facto (como o recorrente recorda, nas alegações).

O recurso improcede, portanto, também quanto à segunda questão levantada."


[MTS]