"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/01/2018

Jurisprudência (771)



Objecto do recurso; ampliação;
condenação ilíquida


1. O sumário de STJ 7/9/2017 (412/2000.L1.S1) é o seguinte: 

I - Não tendo o R. requerido a ampliação do âmbito da apelação do A., nos termos do art. 636º, nº 1 do CPC, para reapreciação da parte da sentença onde expressamente se consignou que a atribuição do veículo tinha natureza retributiva e que o R. ao privar o A. da sua utilização diminui-lhe ilegalmente a retribuição e que estava obrigado a atribuir-lhe a viatura, a sentença transitou em julgado quanto a esta questão, pese embora o R. tenha sido absolvido da pedida entrega do veículo por se ter considerado não ser já possível a reconstituição in natura, uma vez que o contrato de trabalho tinha, entretanto, cessado.

II – O facto de o A. não ter provado o exato valor dos prejuízos que invocara na ação declarativa, mas apenas que os mesmos ocorreram, não impede a condenação do R. em quantia a liquidar posteriormente.

III – Pese embora o DL 49 408 de 29 de novembro de 1969 não contivesse norma que expressamente consagrasse o direito do trabalhador à ocupação efetiva, o mesmo era admitido na doutrina e na jurisprudência, constituindo uma decorrência do estabelecido nos arts. 58º, nº 1 e 59º, nº 1, al. b) da CRP - direito ao trabalho e como forma de realização pessoal.

IV – Tendo o R. mantido o A., que tinha cargo diretivo, durante mais de 16 anos sem lhe atribuir quaisquer funções, com o que fez sentir desautorizado e causado incómodos, é adequada a fixação da indemnização por danos não patrimoniais em € 10.000,00.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte: 

"Vejamos [...] as referidas questões que constituem o objeto do recurso, mas não sem que antes se esclareça que este tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações e conclusões, mas apenas as questões suscitadas ([...]).

4.2.1 – Se deve manter-se a condenação do R. no pagamento de uma quantia a liquidar em execução de sentença pela não entrega de veículo automóvel, no período compreendido entre a data da citação e 28/12/2002.

Consignou-se na sentença:

«(...) Conforme se vem entendendo, a atribuição de veículo automóvel ao trabalhador constitui verdadeira retribuição quando concedida em contrapartida do seu trabalho e tem essa natureza quando correm pela entidade patronal as despesas do veículo, manutenção e seguros e o trabalhador pode fazer uso dele para transporte seu do serviço para casa e vice-versa, utilizá-lo nos fins-de-semana e destiná-lo ao seu uso estritamente pessoal, gratuito, nomeadamente nos feriados e férias, sem que lhe seja exigida a apresentação de relatórios da quilometragem percorrida (Acórdãos do STJ de 22/11/94, BMJ, n.º 441, pág. 133, de 23/11/94, CJ/STJ, Ano II, T. 3, pág. 297 e de 24/10/2001, AD 486, pág. 912).

No caso dos autos, verifica-se que o veículo automóvel que o BB atribuiu ao autor era utilizado para fins pessoais e profissionais custeando o BB as despesas inerentes à utilização dessa viatura - manutenção, reparação e seguro a cargo do réu, ficando ainda a cargo da ré as despesas de aparcamento, estas tão só quando a viatura era utilizada no desempenho de funções.

Dúvidas não restam, pois, que a atribuição da viatura reveste, no caso do autor trabalhador com o nível 18 a natureza retributiva, de prestação em espécie, representando um acréscimo real da retribuição mensal efectiva do autor.

E sendo assim, como é, o facto de o BB ter privado o autor da utilização dessa viatura traduziu-se numa diminuição da retribuição mensal do autor e, consequentemente, numa violação do princípio consagrado no artigo 21.º n.º 1 al. c) do RJCIT e na alínea c) do n.º 1 da cláusula 30.a do ACTV.

Deveria, por conseguinte, a ré atribuir ao autor uma viatura com a qualidade das que têm vindo a ser atribuídas aos trabalhadores com o nível 18.»

Pese embora esta conclusão, o R. não foi absolvido do respetivo pedido por se ter entendido que, tendo o contrato cessado por caducidade em 28/12/2002, «a referida obrigação do réu se deve considerar extinta por impossibilidade superveniente não imputável ao credor - artigo 790.º, n.º 1 do Código Civil».

O A. não se conformou com esta absolvição e na sua apelação pediu a condenação do R. no respetivo pedido indemnizatório.

O R., porque vencedor conformou-se não tendo requerido, sequer, a ampliação do âmbito do recurso.

No acórdão recorrido referiu-se em fundamento da decisão:

«Duas notas prévias. Em primeiro lugar, não tendo o R. recorrido, quanto a este pedido transitou em julgado a sentença até ao ponto em que entendeu que “Deveria, por conseguinte, a ré atribuir ao autor uma viatura com a qualidade das que têm vindo a ser atribuídas aos trabalhadores com o nível 18”. Em segundo lugar, embora a acção tenha sido proposta em 11.12.2000, o acto de propositura da acção não produz efeitos em relação ao réu senão a partir do momento da citação (art.º 267.º n.º 2, do CPC), pois é a partir daí que tomou conhecimento da acção e foi confrontado com os pedidos, entre eles, de entrega de viatura “com a qualidade das que têm vindo a ser atribuídas aos Directores de nível 18 (…)”.

Na revista, contrapõe o R. que “4. O segmento da douta sentença que está em causa não constitui qualquer decisão que pudesse se impugnada, em sede de recurso, pelo ora Recorrente. Pelo contrário, trata-se tão só de uma conclusão a que chegou o Tribunal de 1.ª Instância, sem que, contudo, tenha representado qualquer condenação que pudesse o ora Recorrente impugnar.

5. O ora Recorrente, quanto àquele segmento, não ficou vencido em nada, pelo que não poderia, atento o disposto no artigo 631.º do Código de Processo Civil, interpor recurso.

6. Só agora o Réu ficou vencido nesta parte, e, por isso, só agora a pode impugnar, o que faz pela presente Revista.»

Vejamos.

Foi entendido e expressamente consignado na sentença que a atribuição do veículo tinha natureza retributiva e que o R. ao privar o A. da sua utilização diminui-lhe ilegalmente a retribuição e, bem assim, que estava obrigado a atribuir-lhe uma viatura com a qualidade das que têm vindo a ser atribuídas aos trabalhadores com o nível 18 e demais prestações conexas. O R. só não foi condenado no cumprimento desta obrigação por se ter entendido não ser já possível a reconstituição in natura, pelo facto do contrato ter cessado.

É assim evidente que o R., embora vencendo, decaiu quanto ao fundamento invocado pelo A. e contestado pelo R., de que lhe assistia o direito à atribuição da viatura.

Estabelece o art. 639º, nº 1 do CPC, sob a epígrafe “Ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido”:

“No caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação”.

A este propósito refere Abrantes Geraldes ([
In RECURSOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 2.ª edição, 2014, pág. 96-97]):
«[P]ode não ser de todo indiferente para a manutenção do resultado expresso através da decisão recorrida o modo como o tribunal a quo a fundamentou se acaso vierem a ser acolhidos pelo tribunal ad quem questões suscitadas pelo recorrente. Neste caso, se porventura fosse vedada ao recorrido a possibilidade de promover a ampliação do objecto do recurso, poderia ver-se definitivamente prejudicado num momento em que já não teria capacidade para reagir. (…)

É verdade que, mais do que os fundamentos, o importante para a parte que deduz uma pretensão ou que a contradita, é o resultado final que fica condensado na conclusão da sentença. Daí que, não sendo esta impugnada e traduzindo-se o interesse em discussão no modo como foi acolhido na decisão, com os efeitos delimitados pelo caso julgado assim formado, é indiferente para a parte vencedora a eventual rejeição de algum ou mesmo de todos os fundamentos que tenha invocado para sustentar a sua posição, tal como lhe é indiferente a omissão de pronúncia sobre os argumentos determinada pela inocuidade em face da concreta resposta judiciária.

Não assim quando a parte vencida, na perspectiva do resultado final da acção, interponha recurso da decisão. Nesta eventualidade, já não é indiferente para a contraparte a resposta que o tribunal a quo deu ou deveria ter dado aos fundamentos de facto ou de direito por si invocados. Na verdade, se acaso o tribunal ad quem reconhecer razão aos fundamentos invocados pelo recorrente, pode revelar-se importante para a defesa dos interesses do recorrido que também se pronuncie sobre as questões que oportunamente esgrimiu e que foram objecto de resposta favorável. (…)

A solução legal prevista para situações de sucumbência circunscrita aos fundamentos da acção ou da defesa proporciona à parte vencedora, com total razoabilidade, a possibilidade de suscitar a reapreciação de questões em que tenha decaído, esconjurando os riscos derivados de uma total adesão do tribunal de recurso aos argumentos do recorrente.»

Assim, não tendo o R. requerido a ampliação do âmbito do recurso do A. por forma a ver reapreciada a questão do direito deste à atribuição do veículo que foi reconhecido na sentença, esta transitou em julgado quanto a ela, não merecendo censura o referido entendimento da Relação ([...]).

Doutro passo, pugna o recorrente pela manutenção da tese da 1ª instância de extinção da obrigação por impossibilidade superveniente não imputável ao credor, nos termos do art. 790º, nº 1 do CC.

Sobre esta questão pode ler-se no acórdão revidendo:

«Há que reconhecer razão ao A., quando defende que o Tribunal a quo aplicou indevidamente o art.º 790.º do CC.

Afirma-se nesta disposição que a obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor (n.º1).

Como elucida Antunes Varela, a impossibilidade pode ser objectiva ou subjectiva e total ou parcial: “A prestação torna-se impossível quando, por qualquer circunstância (legal, natural ou humana), o comportamento exigível do devedor se torna inviável (...)» [Das Obrigações Em Geral, Vol. II. 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1980, p. 67].

Ora, entre a citação da Ré e a caducidade do contrato de trabalho nenhum obstáculo existia a que o R. decidisse cumprir a obrigação contratual, que veio a reconhecer-se ser devida, entregando ao A. uma viatura “com a qualidade das que têm vindo a ser atribuídas aos Directores de nível 18 (...)”. A obrigação cessaria com a caducidade do contrato de trabalho, posto que a partir desse facto deixava de ser devida.

Não foi essa a opção do R., mas tal não pode significar que não possa ser cumprida, já não através da entrega do veículo, mas antes através de indemnização do prejuízo causado pelo incumprimento.

Estamos, pois, perante um caso de incumprimento imputável ao devedor, enquadrável no disposto no art.º 798.º do CC, onde se dispõe: “O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.

Como elucida o mesmo autor, “[A] principal sanção estabelecida para o não cumprimento consiste, portanto, na obrigação de indemnizar o prejuízo causado ao credor”, contudo, para tanto sendo necessário que o não cumprimento lhe seja imputável, significando isso a verificação de vários pressupostos, nomeadamente “o facto objectivo do não cumprimento (..); a culpa; o prejuízo sofrido pelo credor; o nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo” [Op. cit., p. 90/91].

A ilicitude resulta, no domínio da responsabilidade contratual, da relação de desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado. No caso, deveria o R, ter cumprido a obrigação de entregar ao A. uma viatura automóvel “com a qualidade das que têm vindo a ser atribuídas aos Directores de nível 18 (..)”, mas não o fez.

A culpa significa actuar em termos de a conduta do devedor ser pessoalmente censurável ou reprovável, sendo que tanto pode ser dolosa como negligente. Contudo, no caso do não cumprimento da obrigação, é ao devedor que “Incumbe (...) provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua” [art.º 799.º, n.º1, do CC]. A presunção legal é ilidível, mas o R. nada alegou nem demonstrou para a afastar.»

Subscrevemos estas considerações.

Estabelece o art. 562º do CC, que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.

Ora, tendo o contrato cessado não pode a obrigação ser cumprida in natura, ou seja, não pode o R. ser condenado a proporcionar ao A. o veículo nos termos e para os fins que vêm sendo referidos.

Todavia, nos termos do art. 566º, nº 1 do CC, “a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível…”.

Invoca o R., noutra vertente, que “12. A indemnização a que alude agora o douto Acórdão recorrido foi peticionada pelo Autor sob a forma de "pagamento das despesas que o autor terá de pagar a terceiros, ainda não liquidadas, a apurar nos termos do disposto o artigo 55.º do Código Civil relativas à viatura que teve de pedir emprestada conforme alegado para suprir o incumprimento do réu na substituição da viatura que este lhe afectou por decisão de 26/03/86".

13. O ora Recorrente foi absolvido deste pedido - e bem - por o Tribunal ter entendido que a alegação do Autor não permitia saber qual o beneficio económico que representava a utilização daquela viatura, não sendo caso de recurso ao disposto no artigo 661.º, n.º 2 do Código de Processo Civil dado que este preceito só terá aplicação nos casos em que não seja possível liquidar a obrigação como consequência de não se conhecerem com exactidão as unidade[s] componentes de determinada universalidade ou se ainda se não tiverem revelado ou estarem em evolução algumas ou todas as consequências de determinado facto, no momento da propositura da acção declarativa, o que não é manifestamente o caso.”

Relativamente à atribuição do veículo e prestações em espécie conexas, o A. formulou na alínea C dois pedidos distintos:

“C- No cumprimento das obrigações seguintes:

1. Entrega, nos termos acordados, de uma viatura com a qualidade das que têm vindo a ser atribuídas aos Diretores de nível 18, diretamente dependentes do órgão máximo de gestão do réu, com efetiva função de direção de estrutura orgânica de nível 1;

2. Pagamento das despesas que o autor terá de pagar a terceiros, ainda não liquidadas, a apurar nos termos do disposto no artigo 551.º do Código Civil, relativas à viatura que teve de pedir emprestada conforme alegado, e documento junto sob o n° 57, para suprir o incumprimento do réu na substituição da viatura que este lhe afetou por decisão de 26.03.86, e regulamento junto sob o n.º 84;”

Sobre o pedido formulado em 1, pronunciou-se a 1ª instância, como vimos referindo, no sentido do R. estar obrigado à sua atribuição, embora não tenha sido proferida a consequente condenação por se ter considerado extinta a obrigação por impossibilidade de cumprimento mercê da cessação do contrato.

Relativamente ao 2º pedido consignou-se na sentença, sob a epígrafe “C2) Pagamento das despesas que o autor terá de pagar a terceiros, ainda não liquidadas, a apurar nos termos do disposto no artigo 55.º do Código Civil, relativas à viatura que teve de pedir emprestada conforme alegado para suprir o incumprimento do réu na substituição da viatura que este lhe afectou por decisão de 26/03/86, e regulamento junto sob o n.º 8”:

«Esta pretensão do autor improcede, demonstrado que não está - e não foi sequer alegado pelo autor como lhe competia (artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil) qual o benefício económico correspondente à atribuição ao autor da viatura em causa para o seu uso particular.

É que essa atribuição só integra o conceito de retribuição na medida exacta do benefício económico que daí resulta para o trabalhador (Acórdãos da Relação de Lisboa, de 05/05/93, CJ, Ano XVIII, T. 3, pág. 168, do STJ, de 23/11/94, CJ/STJ, Ano II, T. 3 pág. 297, já citado e do STJ, de 05/03/97, CJ/STJ, Ano V, T. 1, pág. 290).

Ora, a este respeito, o autor nada de concreto alega, limitando-se a afirmar, que para suprir o incumprimento da ré na substituição da viatura que este lhe afectou teve de pedir emprestada uma viatura.

Sem elementos que permitam saber qual o benefício económico que representava para o autor a utilização da viatura que o BB tinha atribuído ao autor, conclui-se que a causa de pedir a este respeito invocada pelo autor, conexionada com o pedido conduz em termos lógicos à improcedência da pretensão do autor de receber qualquer quantia pela privação desse uso.

E não é caso de remeter para execução de sentença, ao abrigo do disposto no artigo 661.º n.º 2 do Código de Processo Civil, o apuramento dessa quantia.

Na verdade, este dispositivo só permite remeter para execução de sentença quando não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, mas entendida esta falta de elementos não como a consequência do fracasso da alegação ou prova, na acção declarativa, sobre o objecto ou a quantidade mas sim como a consequência de ainda se não conhecerem com exactidão, as unidades componentes de determinada universalidade ou de ainda se não terem revelado ou estarem em evolução algumas ou todas as consequências de determinado facto, no momento da propositura da acção declarativa, o que não é manifestamente o caso.»

Como se vê, o R. foi absolvido do pagamento das despesas que o autor terá de pagar a terceiros… relativas à viatura que teve de pedir emprestada conforme alegado para suprir o incumprimento do réu na substituição da viatura, pese embora o tenha sido com o fundamento de que o A. não provou qual o benefício económico correspondente à atribuição… da viatura em causa para o seu uso particular.

Ora, o não reconhecimento do direito ao ressarcimento das despesas, cuja ocorrência nem foi provada, não afeta o direito que foi reconhecido, à atribuição da viatura ou à correspondente indemnização em dinheiro, como decidido pela Relação, a liquidar posteriormente porquanto, embora se tivesse provado o dano, os autos não contêm elementos suficientes para a respetiva quantificação, como vem sendo jurisprudência consolidada desta 4ª Secção ([...]).

Pelo referido a revista improcede nesta parte."


[MTS]