"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/01/2018

Jurisprudência (761)


Execução; oposição:
meio processual


1. O sumário de RL 13/7/2017 (22493/05.0YYLSB-D-2) é o seguinte:

Contra situações criadas ou decisões proferidas nas execuções, o executado pode/deve reagir através de requerimentos, de arguição de nulidades ou de recursos e não através de procedimentos cautelares, pelo que a petição inicial deste deve ser – como foi – liminarmente indeferida, mas por falta de interesse processual – excepção dilatória inominada insuprível – e não por manifesta inviabilidade (ou seja, pela 2ª alternativa e não pela 1.ª alternativa, do art. 590/1 do CPC).

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A executada, na sequência de um despacho que, na execução, deferiu a requerida intervenção da força policial e arrombamento para que o Senhor Agente de Execução tomasse posse efectiva do imóvel, veio intentar procedimento cautelar comum pelo qual pretende ficar na posse efectiva do imóvel até à data da venda judicial do mesmo. [...]

Este procedimento cautelar foi indeferido liminarmente, ao abrigo dos arts. 226/4-b e 590/1, ambos do CPC.

A executada vem recorrer de tal despacho, para que seja revogado e substituído por outro que decrete a providência por existir probabilidade séria da existência do direito e por se mostrar fundado o receio da sua lesão.

O exequente contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso, no essencial com base na fundamentação do despacho recorrido.

*

Questão que importa decidir: se o procedimento não devia ter sido indeferido liminarmente.

*
[...] E depois o despacho recorrido indeferiu o procedimento com a seguinte fundamentação [...]:

"Começaremos por referir que, nos termos do art. 364 nºs. 1 e 2 do CPC o procedimento cautelar é dependência de uma causa – a causa principal – a que fica apenso.

Ora, a causa principal, in casu, é a acção executiva em que a requerente é executada e que visa a realização coerciva da prestação debitória, de que o exequente é credor.

Portanto, na execução não se vai conhecer, em definitivo, dos fundamentos do procedimento cautelar.

Conforme o art. 362/1 do CPC, a providência cautelar visa assegurar a efectividade de um direito ameaçado sempre que exista fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável desse direito.

Ora, a penhora é um acto judicial de apreensão de bens para ulterior alienação e satisfação do crédito exequendo (art. 735/1 do CPC), sendo destituído de sentido jurídico, desde logo, reagir contra a mesma mediante procedimento cautelar: “não é possível reagir contra a penhora já efectuada em processo executivo por meio de providência cautelar, seja porque esta é subsidiária perante os demais meios (cfr. o art. 362/3, por princípio), seja porque mesmo que exista lesão do direito, esta se consuma com a efectivação da penhora” (Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, 2013, p. 720).

Do mesmo modo, e por maioria de razão, também não poderá o executado reagir contra as diligências tendentes à venda dos bens penhorados mediante procedimento cautelar. Note-se que em causa não está qualquer acto do exequente, mas o cumprimento de actos previstos na lei e a executar pelo AE.

Apreciando concretamente a factualidade relevante, está acima descrito o que se passou na execução: a executada recusou o acesso do AE ao imóvel, alegando ter bens pessoais no mesmo, fundamentos que, aliás, não invoca neste processo, antes alegando uma situação de doença.

Foi nomeada fiel depositária, nos termos do art. 756/1-a do CPC, porquanto se trata da sua casa de habitação.

Porém não menos certo é que o poder de gozo do imóvel se transferiu para o processo com a penhora, sendo a executada mera possuidora precária […].

A executada, não quer aceitar que, desde a penhora, é uma mera detentora: “quando a penhora incide sobre o objecto corpóreo dum direito real (penhora de bem imóvel, penhora de bem móvel, penhora de quota em bem indiviso), a transferência de poderes de gozo importa uma transferência de posse. Cessa a posse do executado e inicia-se uma nova posse pelo tribunal: o depositário passa em nome deste, a ter a posse do bem penhorado” (Lebre de Freitas, A acção executiva, à luz do CPC de 2013, Coimbra Editora, 6ª ed., p. 300). […]

Ora, não tendo a executada a posse desde a penhora, o pedido que deduz nestes autos de “continuar na posse efectiva da habitação até à data da venda judicial do mesmo” nunca poderia ser deferido, porquanto não tem a posse do imóvel desde 2006. E, assim, não cabe à executada decidir se faculta ou não o acesso ao imóvel e se o imóvel “já foi alvo de inspecção pelo AE” (artigo 2 do articulado).

O AE tem de ter o acesso ao imóvel, também não sendo difícil compreender que eventuais interessados na aquisição do mesmo o pretendam visitar.

A executada é que se colocou na situação de ficar dependente de um arrombamento e intervenção da força policial, ao recusar, sem qualquer fundamento legal, a entrada no imóvel […]

É certo que [a executada] apresenta uma situação difícil do ponto de vista humano, atendendo à alegada doença, mas que em nada altera o que se veio de dizer.

O que se pode sugerir é que a executada, face à situação que descreve, procure apoio junto das entidades sociais […]

Face ao exposto, uma decisão de mérito a tomar teria sempre de ser de inviabilidade da pretensão.” [...]

Decidindo:

Desde logo, note-se que a executada nem tenta rebater a argumentação do despacho recorrido, o que não pode deixar de ser o reconhecimento da evidente falta de fundamento legal para a sua pretensão.

Pretensão esta que, no fundo, não é mais do que recorrer de uma decisão judicial através de um procedimento cautelar, o que não pode ser: as partes num processo, quando não estão de acordo com as decisões que aí sejam tomadas, devem recorrer delas e não interpor providências cautelares contra as mesmas. E quando não concordem com a forma como o processo está a decorrer, ou expõem no processo as suas pretensões através de requerimentos ou argúem nulidades, de modo a provocar despachos que, se lhe forem desfavoráveis, lhes permitam recorrer.

É certo que a lei permite que se reaja com embargos contra qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, se ele ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, mas isso apenas no caso de se ser terceiro ao processo (art. 342 do CPC) e não quando se é parte no processo em causa.

Adaptando-se o argumento essencial (que é o que se aceita) do despacho recorrido, se contra a penhora a lei prevê, na disponibilidade do executado, meios de reacção que não passam por providências cautelares, muito menos sentido há, em que o executado reaja, contra decisões que têm a ver com a situação dos bens penhorados, através de providências cautelares.

De resto, quanto à entrega da casa de habitação do executado, existe uma série de normas a tratar das cautelas devidas (arts. 733/5, 756/1-a, 757, n.ºs 1, 4 e 5, 764/4, 785/4, 861/6 e 863, n.ºs 3 a 5, todos do CPC), que mostram suficientemente que o legislador tratou da questão como incidentes da execução onde os bens foram penhorados, sem deixar espaço para providências cautelares contra as decisões aí tomadas. Se estas estão erradas, recorre-se contra as mesmas, eventualmente com efeito suspensivo (o recurso destas decisões seria necessariamente admissível: arts. 852, 853/1 e 2-a, 644/1-a e 644/2-h, todos do CPC).

Se a executada tinha ou não a posse efectiva do imóvel/casa de habitação/domicílio (arts. 756/1-a e 757/1 do CPC), posse efectiva que não se confunde com posse em nome próprio, nem com a posse jurídica; se tinha ou não o direito a permanecer como depositária da casa até à venda; se a entrega da casa se vai traduzir ou não, no caso, numa remoção de depositário sem observância das regras e cautelas legais (arts. 818, 761, 861/6 e 863, n.ºs 3 a 5, todos do CPC, eventualmente aplicáveis por analogia) dado o alegado estado da executada; etc., são tudo questões que a executada podia/devia ter posto através de requerimentos ao processo, arguições de nulidade e interposições de recurso, e não através desta providência cautelar.

Justifica-se, assim, o indeferimento liminar, mas por ser evidente a verificação de uma excepção dilatória insuprível, qual seja, a da falta de interesse em agir através deste meio processual (art. 590/1, 2.ª alternativa, do CPC: “falta [o interesse processual] sempre que o requerente possa atingir a garantia do direito, a regulação provisória ou a antecipação da tutela através de um meio mais adequado do que o procedimento cautelar, ou seja, quando, em função das circunstâncias, aquele procedimento não for o mais célere e económico para obter a tutela dos interesses do requerente”: Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, Lex 1997, 2.ª edição, pág. 234; “o recurso à tutela cautelar só é admissível se a ordem jurídica não colocar à disposição do requerente um outro meio processual menos gravoso que lhe permita proteger, de modo igualmente eficaz, o direito ameaçado” – Marco Carvalho Gonçalves, Providências cautelares, Almedina, 2015, págs. 216 a 219) e não pela inviabilidade (manifesta improcedência: art. 590/1, 1.ª alternativa) invocada no despacho recorrido, pois que, em abstracto, a providência pedida podia vir a ser procedente."


3. [Comentário] Há situações que, pela sua elevada patologia, são de tal modo desconformes perante o regime legal que suscitam manifestas dificuldades de solução dentro do próprio regime legal. É certamente o caso da utilização de uma providência cautelar como meio de reacção contra a penhora de um bem numa execução pendente.

Uma solução alternativa àquela que foi utilizada pela RL seria partir do regime do erro sobre o meio processual (cf. art. 193.º CPC). Nas situações -- como a que foi analisada pela RL -- em que, por inadequação formal absoluta do meio utilizado, não é sequer possível recorrer ao disposto no art. 193.º, n.º 1, CPC, tem-se entendido que o réu deve ser absolvido da instância pela verificação de uma excepção dilatória inominada (cf. art. 576.º, n.º 2, CPC). Nesta base, um indeferimento liminar também não é impensável (cf. art. 590.º, n.º 1, CPC).
 
MTS