"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/01/2018

Jurisprudência (778)


Prova; dever de colaboração; violação;
presunções judiciais


1. O sumário de RL 12/10/2017 (3070/12.5TBBRR-2) é o seguinte:

I. – Aquele que pede alimentos de outrem, tem o ónus de provar a sua necessidade deles e a possibilidade de o demandado os prestar (arts. 2004 e 342/1 do CC). Se se opõe, sem qualquer justificação, a que o tribunal investigue a sua conta bancária, tal pode ser levando em conta pelo tribunal para se convencer de que o demandante tem património susceptível de lhe proporcionar o suficiente para as suas necessidades ou, pelo menos, para impedir a prova de que ele viva apenas de uma pensão de velhice (art. 417, n.ºs 1 e 2, do CPC).

II. – O direito a alimentos entre ex-cônjuges (art. 2016 do CC) não é o genérico direito a alimentos, mas um direito especial, com natureza reabilitadora, excepcional, subsidiária e tendencialmente temporário.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"III – [...] quanto ao facto de a autora viver de uma pensão de reforma de 305,96€, a redacção do ponto sugere que a autora só vive com essa reforma e disso realmente não há prova suficiente.

Veja-se: a autora dizia (na “resposta à contestação”) que tinha pago metade do valor na compra da fracção – a casa onde vive – e mais tarde liquidou o valor ao réu quando este lhe vendeu a sua parte (fls. 89 a 91 da versão do processo electrónico existente neste TRL). Isto só por si indicia que a autora tem outros meios que não só a pensão de reforma.

Por outro lado, o réu veio requerer que “o Banco de Portugal seja oficiado com vista a informar quais as contas bancárias de que a autora é titular ou co-titular e respectivas entidades bancárias, e se inste as mesmas a informar dos saldos, incluindo PPR, produtos financeiros/imobiliários e seus derivados e os movimentos dos últimos 6 meses. Assim como informem as transacções a crédito oriundas de França.”

A isto seguiu-se este despacho: “[…] notifique-se a mesma [autora] para vir aos autos se pronunciar quanto ao pedido de informação requerido pelo [réu] no que concerne às suas contas bancárias, considerando que em causa está matéria relacionada com o sigilo bancário.”

A autora opôs-se a isso, dizendo que “no que respeita ao requerido pelo réu, relativo à conta bancária da autora, esta embora não tenha dinheiro na conta bancária onde recebe a pensão de reforma, não dá o seu assentimento para que a mesma seja objecto de ser junta aos autos” (sic, fl. 227 do processo electrónico).

A isto não se seguiu nenhum despacho.

A recusa da ré em permitir que o tribunal averiguasse a existência de património mobiliário da autora, deve ser naturalmente (e legalmente: art. 417/2 do CPC) levado em conta na convicção do tribunal quanto ao facto de a autora viver ou não só da reforma, independentemente de o tribunal dever ou não ter dado seguimento à questão, fazendo um pedido de levantamento de sigilo bancário (art. 417/4 do CPC). Quem faz um pedido de alimentos contra outra pessoa – para mais com base num direito excepcional como se verá à frente - é, supostamente, porque precisa deles e por isso tem de demonstrar essa necessidade (arts. 2016, 2004 e 342/1 do CC). Por isso, tem pelo menos o ónus de deixar que sejam vistas as suas contas bancárias ou que sejam averiguados outros valores do mesmo tipo junto de outras entidades. Não o permitindo, a falta de prova de que viva apenas da pensão tem de correr por sua conta.

Assim, a redacção do ponto de facto deve ser alterada de modo a não sugerir que está provado que a autora só viva da pensão (ou só da ajuda da amiga, ou só de ambas) porque claramente não está.

Ou seja, a convicção é clara de que a autora tem outros bens mobiliários e só por não querer que se soubesse da existência desses valores é que se opôs a que o tribunal averiguasse da existência desses valores. O que é suficiente para impedir a prova de que a autora só vive da pensão que invoca.

Pelo que o ponto 3 passa a ter a seguinte redacção:

3 – Desde Janeiro de 2012, o réu deixou de contribuir com qualquer valor para as despesas da autora; a autora, quando se desloca a França, vive a expensas de uma amiga que aí reside, que lhe dá alojamento e alimentação; a autora recebe 305,96€ mensais a título de pensão de velhice paga pelo CNP.

IV – Por último (agora sim), o réu ainda invoca a manifesta contradição entre factos provados e erro na apreciação da prova, quantos aos factos n.ºs 3 e 6, dizendo, depois de transcrever os pontos em causa, que:

Ficou provado que a autora nem sequer reside habitualmente em Portugal, uma vez que passou a viver em França a expensas de uma amiga desde que o réu deixou de contribuir para o sustento da autora. Ou seja, sem atendermos à alimentação (cujo valor não se apurou quanto é que a autora gasta mensalmente) a autora, que nem reside habitualmente em Portugal (o que explica consumos mínimos ao nível da electricidade, água e gás), gasta só com “comunicações e TV, no montante mensal de 37,16€, ou seja, só com “comunicações e TV” a autora gasta mais de 12% do rendimento mensal que aufere (305,96€)! Porventura alguém acredita que uma pessoa que só auferisse 305,96€ mensais fosse despender 37,16€ por mês em “comunicações e TV" numa casa “fechada”? Obviamente que a resposta é negativa e o que admira é como é que o tribunal a quo considerou estes factos provados sem os considerar ao menos estranhos e até contraditórios e que obviamente revelam é que a autora, se pode despender mensalmente o valor de 37,16€ só com “comunicações e TV”, numa casa que não habita regularmente, é porque não tem carências ou necessidade de alimentos, e obviamente porque não aufere tão só 305,96€/mês."

3. [Comentário] a) O acórdão não suscita nenhuma objecção: as consequências da violação do dever de colaboração da parte em matéria probatória estão correctamente tiradas e a censura que a RL realiza ao tribunal de 1.ª instância com base na presunção judicial de que, quem gasta € 37,16 em "comunicações e TV", não aufere apenas € 305,96 cabe na competência decisória das Relações e é indiscutivelmente razoável.

b) No caso decidido no acórdão, houve (ou podia ter havido) contraditório prévio sobre a contradição entre os factos n.ºs 3 e 6, pelo que nada há a objectar à apreciação desta questão pela RL.

Imagine-se, no entanto, que (um)a Relação, fazendo uso dos poderes atribuídos pelo art. 662.º, n.º 1, CPC, pretende utilizar uma presunção judicial não utilizada pelo tribunal de 1.ª instância e modificar a decisão deste tribunal sobre a matéria de facto. Nesta hipótese, a Relação não deve deixar de ouvir previamente as partes, de molde a evitar uma decisão-surpresa em matéria de facto (cf. art. 3.º, n.º 3, CPC).

A justificação desta solução é a seguinte: após a decisão da Relação, a parte não tem nenhuma hipótese de ilidir a presunção judicial utilizada 2.ª instância e de impugnar a prova admitida pela Relação.

Nem mesmo no caso de a decisão admitir recurso para o STJ se poderá dizer que essa ilisão pode ser feita perante o STJ, dado que, como se sabe, o STJ não conhece de matéria de facto (cf. art. 46.º LOSJ; art. 682.º, n.º 2, CPC).

Note-se que isto nada tem a ver com a competência do STJ para controlar as presunções judiciais utilizadas pelas instâncias (a jurisprudência e a doutrina alemães maioritárias admitem a "revisibilität" das presunções judiciais pelo BGH: cf., por exemplo, Laumen, in Baumgärtel/Laumen/Prütting, Handbuch der Beweislast/Grundlagen (2016), Kap. 17 42 ss.). Efectivamente, uma coisa é o STJ poder deduzir de um facto probatório um facto distinto daquele que as instâncias consideraram provado, outra é o STJ conhecer da ilisão de uma presunção judicial por uma das partes. No primeiro caso, o STJ não está a alterar o facto probatório considerado provado pelas instâncias, mas antes a controlar a presunção judicial utilizada pelas instâncias; em contrapartida, no segundo, estaria a conhecer de um facto destinado a ilidir uma presunção judicial, ou seja, de um facto que, sem questionar o uso da presunção judicial pela Relação, se destina a impugnar o facto presumido. 

Uma última observação: também no caso de o STJ alterar um facto provado com base numa presunção judicial não discutida pelas partes, o STJ deve, em cumprimento da proibição das decisões-surpresa, ouvir previamente as partes. Trata-se, novamente, de respeitar a proibição -- por vezes esquecida -- de decisões surpresa em matéria de facto (cf. art. 3.º, n.º 3, CPC).

MTS