"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/01/2018

Jurisprudência (777)



Penhora; oposição; terceiro;
acção de reivindicação


I. O sumário de RE 12/10/2017 (290/16.7T8LAG.E1) é o seguinte:

1 – A defesa do direito de propriedade na sequência de penhora efectuada em execução em que não é parte quem se arroga tal direito não tem de ser judicialmente efectivada através da dedução de embargos de terceiro.

2 – Inexiste, pois, erro na forma de processo se quem se arroga o referido direito optar pela propositura de uma acção com processo comum de declaração tendo em vista o reconhecimento do mesmo direito.

II. Na fundamentação do acórdão consta o seguinte: 

"A questão a decidir resume-se a saber se é legalmente admissível a defesa do direito de propriedade, na sequência de penhora efectuada em execução em que não é parte quem se arroga tal direito, através da propositura de uma acção com processo comum, ou, se, ao invés, tal defesa apenas poderá ser judicialmente efectivada através da dedução de embargos de terceiro.

A sentença recorrida pronunciou-se neste último sentido. Entendeu-se, nela, que a pretensão deduzida pelo ora recorrente enferma de erro na forma de processo porquanto o exercício do direito por si invocado tem a sua sede adjectiva própria, não na instauração de uma acção declarativa autónoma, mas sim na dedução de embargos de terceiro, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do CPC, incidentalmente no âmbito da acção executiva em que tenha sido realizada a penhora.

Analisemos a questão, começando por convocar as normas do CPC mais relevantes:
 
Artigo 2.º, n.º 2: A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.
 
Artigo 342.º, n.º 1: Se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
 
Artigo 344.º, n.º 2: O embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respectivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas.
 
Artigo 346.º: A rejeição dos embargos, nos termos do disposto no artigo anterior, não obsta a que o embargante proponha acção em que peça a declaração da titularidade do direito que obsta à realização ou ao âmbito da diligência, ou reivindique a coisa apreendida.
 
Artigo 839.º, n.º 1: Além do caso previsto no artigo anterior, a venda só fica sem efeito: 
 
(…) d) Se a coisa vendida não pertencia ao executado e foi reivindicada pelo dono.

Importa também ter em consideração o disposto nas seguintes normas do Código Civil:
 
Artigo 1311.º, n.º 1: O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
 
Artigo 1313.º: Sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião, a acção de reivindicação não prescreve pelo decurso do tempo.
 
Com interesse para a resolução do problema que temos entre mãos, resulta deste conjunto de normas o seguinte:
 
O titular do direito de propriedade sobre uma coisa pode sempre recorrer aos tribunais com o objectivo de ver reconhecido esse seu direito. Se a coisa estiver em poder do demandado e o proprietário pretender a condenação deste na respectiva restituição, a acção será de reivindicação. Se o proprietário tiver a coisa em seu poder e, ainda assim, tiver interesse em obter o reconhecimento judicial do seu direito de propriedade contra determinada pessoa que, por forma diversa da detenção, ponha este último em causa, poderá, igualmente, fazê-lo. Esta acção não será de reivindicação, mas tal não impede a sua admissibilidade, atento o disposto nos artigos 2.º, n.º 2, e 10.º, n.º 3, al. a), do CPC [...]. Tal como a acção de reivindicação, esta última acção não prescreve pelo decurso do tempo, sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião, pois o fundamento substantivo é o mesmo: a imprescritibilidade do direito de propriedade [...].
 
Se o direito de propriedade for posto em causa, por penhora ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, em processo de que o respectivo titular não seja parte, poderá este último defendê-lo através da dedução de embargos de terceiro, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do CPC. Porém, em parte alguma a lei impõe que, sendo dessa natureza a ofensa ao direito de propriedade, o titular deste apenas possa requerer judicialmente a sua defesa através de embargos de terceiro, ficando, assim, inibido de propor uma acção de reivindicação ou uma acção declarativa de simples apreciação. Bem pelo contrário, o artigo 346.º do CPC pressupõe, precisamente, que tais acções são sempre admissíveis, esclarecendo que o serão mesmo na hipótese de rejeição dos embargos de terceiro. Ou seja, nem sequer a rejeição dos embargos de terceiro prejudica, de alguma forma, a admissibilidade das mesmas acções.
 
Nem podia deixar de ser assim, sob pena de sermos conduzidos a soluções absurdas. Suponhamos que, quando o proprietário tem conhecimento da ofensa ao seu direito, a coisa já foi judicialmente vendida ou adjudicada. Por força do disposto no artigo 344.º, n.º 2, do CPC, ele já não pode deduzir embargos de terceiro. Teria, então, perdido o seu direito de propriedade em consequência da referida venda ou adjudicação? Ou continuaria a ser titular do direito, mas sem poder recorrer à tutela jurisdicional do mesmo, por não ter deduzido embargos de terceiro tempestivamente? A resposta a qualquer destas questões é, obviamente, negativa, e, caso houvesse dúvidas, seria o próprio CPC, através do seu artigo 839.º, n.º 1, al. d), a desfazê-las, ao estabelecer que a venda fica sem efeito se a coisa vendida não pertencia ao executado e foi reivindicada pelo dono. Ou seja, o proprietário não deixa de o ser e, consequentemente, continua a ter ao seu dispor todos os meios de defesa do seu direito. Como, aliás, nunca deixou de ter.
 
Sendo assim, até à venda ou adjudicação judicial da coisa, o proprietário tem ao seu dispor, em alternativa, a acção declarativa comum, de simples apreciação ou de reivindicação, e os embargos de terceiro. Depois daquela venda ou adjudicação, estão-lhe vedados estes últimos, restando-lhe a primeira [...]."
 
[MTS]