"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/01/2018

Jurisprudência (774)

 
Recurso; alegações;
falta de conclusões

 
1. O sumário de STJ 19/9/2017 (3419/14.6T8OER-A.L1.S1) é o seguinte:

Nos termos do art. 641.º, n.º 2, al. b), do CPC, a falta de apresentação de conclusões das alegações no prazo peremptório para a dedução do recurso não pode ser suprida, designadamente na sequência de convite, antes determina o indeferimento do recurso. Tal norma, com essa interpretação, não viola os arts. 2.º e 20.º da Constituição.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte: 
 
"[...] a recorrente defendeu que o não conhecimento da apelação foi fruto de uma errada interpretação pela Relação dos arts. 641º nº 2, 639º nº 3 e 637º nº 2 do CPC, com ostensiva violação dos arts. 6º do mesmo código e 2º e 20º nº 4 da CRP.

Porém, contrariamente ao pretendido, a norma do invocado art. 641º nº 2 dispõe, claramente, que o requerimento de recurso é indeferido quando a alegação do recorrente não tenha conclusões, diferentemente do que estatui o também evocado art. 639º nº 3 para as hipóteses de as formuladas conclusões serem deficientes, obscuras, complexas ou de nelas se não ter procedido às especificações aludidas no número anterior do mesmo preceito, perante as quais deve o relator «convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada».

Ora, sem as conclusões da respectiva alegação, o recurso fica sem objecto cognoscível pelo tribunal superior porque, como é sabido, o mesmo é delimitado por tais «proposições sintéticas» «contendo todo um raciocínio lógico-jurídico a contrariar as razões adoptadas» na decisão posta em crise, não podendo «consistir na mera afirmação da procedência» da pretensão da recursiva, nos termos conjugados dos artigos 635º, nºs 4 e 5, e 639º, nºs 1 e 2 do CPC ([1]): sendo as conclusões que definem o objecto do recurso e, por isso, o âmbito do conhecimento do tribunal, a respectiva omissão torna o recurso sem objecto.

No caso que nos ocupa, não é sustentável que essa falta deva ou possa ser suprida após prévio despacho aperfeiçoador a que se refere o invocado art. 639º nº 3 da lei processual, norma que, obviamente, não abarca tal falta: não se trata de qualquer deficiência das conclusões, mas da omissão da sua formulação, a qual conduz à rejeição do recurso uma vez que só a sua deficiência consentiria o aperfeiçoamento.

Como se viu, o claro teor da norma invocada (art. 641º nº 2), em si mesmo e no confronto com o disposto no citado art. 639º nº 3, torna inconcebível a proposta interpretativa sustentada pela recorrente, que redundaria, na prática, na sua derrogação e na subsequente aplicação da norma contida neste segundo artigo, afinal, prevista para situações patentemente diferentes da falta aqui em causa.

O cotejo entre o disposto nos arts. 639º, nº 3, e 641º, nº 2, al. b), do NCPC ([...]), com o que preceituava o art. 690º nº 3 do CPC de 1939 ([...]) torna evidente a intenção do legislador: com a reforma dos recursos operada pelo DL 303/2007 de 24/08, o legislador optou, iniludivelmente, por eliminar o poder-dever de formulação do convite tendente à supressão da falta de conclusões de recurso, como estava previsto anteriormente, substituindo-o, explicitamente, pelo dever processual de indeferimento do recurso, perante tal falta.

E nem se diga, como é ventilado no recurso, que a esse dever processual de indeferimento se sobreporia a obrigação de formular convite à apresentação das conclusões em falta, em cumprimento do “dever de gestão processual” consignado no art. 6º, nº 2, do CPC.

O exercício deste último dever não dispõe de contornos de tal modo fluidos que o autorizem a colidir, quer com o princípio da legalidade e da tipicidade que comanda toda a tramitação processual – na qual, por isso, não podem deixar de ser observadas as formalidades expressamente regulamentadas –, quer com outros princípios fundamentais do nosso processo civil, entre os quais se salientam o da auto-responsabilidade das partes – resultando deste, directamente conexionado com o princípio basilar do dispositivo, que redunda inevitavelmente em prejuízo das mesmas a sua negligência ou inépcia na condução do processo, a seu próprio risco ([Cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 378]) – e o da preclusão – importando que, ao longo do processo, as partes estão sujeitas, entre outros ónus, ao de praticar os actos dentro de determinados prazos peremptórios.

Sublinhe-se que a apresentação de conclusões em falta, na sequência de convite a “aperfeiçoamento” das alegações, consubstanciaria, não apenas a violação da tipicidade processual e dos demais salientados princípios, mas também a ilegal validação de um acto praticado depois de extinto o respectivo prazo peremptório.

Realmente, a aceitação da proposta interpretativa formulada neste recurso desrespeitaria as regras impostas pelos arts. 9º e 10º do CC, porque, por um lado, não colheria na letra da lei um mínimo de correspondência verbal e contornaria os aspectos de ordem sistemática, histórica e racional envolvidos, afrontando, estrondosamente, o pensamento legislativo, e, ainda, porque, por outro lado, ao sugerir a regulação da falta de conclusões segundo uma norma aplicável a casos, supostamente, análogos, teria de pressupor tratar-se dum caso omisso, ou não previsto na lei, o que, evidentemente, não ocorre. Pelo contrário, a falta de conclusões é expressamente cominada com o indeferimento do recurso.

Como já se disse no Acórdão deste STJ de 18/10/2012 ([P. 6777/09.0TBSTB.E1.S1 - Prazeres Beleza.]), «De acordo com a versão resultante das alterações introduzidas no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, (…) a falta de conclusões das alegações impede irremediavelmente o conhecimento do recurso, que não deve ser admitido (nº 1 e nº 2, b) do artigo 685º-C do Código de Processo Civil)» ([...]).

Perante a apontada razão de ser do citado preceito, com o sentido que o respectivo teor literal imediatamente inculca, também não se acompanha a invocação de inconstitucionalidade da opção legislativa nele plasmada, feita no recurso a pretexto da sua suposta susceptibilidade de pôr em causa o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva: com a opção aqui questionada, o legislador ordinário limitou-se a regulamentar o direito ao recurso, não a impedir o seu exercício, emergindo a mencionada cominação, nele estabelecida, como inteiramente justificada, claramente razoável e proporcionada, face ao propalado princípio da auto-responsabilidade das partes, as quais, nos recursos, dispõem, necessariamente, de assessoria técnica altamente especializada. «Ao analisar os vários preceitos legais que consagram ónus processuais, tem o Tribunal Constitucional procurado averiguar se, por um lado, a consagração desses ónus se reveste de alguma utilidade, não redundando em mero formalismo, e se, por outro lado, o cumprimento de tais ónus se não reveste de excessiva dificuldade para as partes. Estando verificadas as duas condições, não resultaria violado o direito de acesso aos tribunais ou o princípio da proporcionalidade.». É o que o próprio TC reconheceu no seu Acórdão nº 259/02. E, com tais parâmetros, no posterior Acórdão nº 488/03, de 22-10-2003, a propósito dos ónus previstos no art. 690º do CPC então vigente, o mesmo Tribunal concluiu que «o cumprimento de tal ónus não implica excessiva dificuldade para o recorrente, dotado de patrocínio especializado».

Acresce que, ao pronunciar-se especificamente sobre a norma equivalente à aqui questionada [o artigo 685º-C, nº 2, b), na redacção conferida pelo DL 303/2007] – ao que sabemos, a única vez em que o fez – o TC, no seu AC nº 536/2011, de 15-11-2011 ([P. 191/2011 - Gil Galvão), im DR - II, Nº 243, de 21.12.2011, P. 49538]), depois de salientar «a inexistência, no âmbito do processo civil, de um genérico direito ao aperfeiçoamento», afirmou – embora com o voto de vencido em que a recorrente, exclusivamente, procura arrimo – que, «admitido um razoável grau de liberdade de conformação do legislador na matéria, encontram-se preenchidas duas condições – utilidade do ónus imposto e cumprimento não excessivamente oneroso para as partes – para que se possa concluir não estar violado nem o direito de acesso aos tribunais nem o princípio da proporcionalidade, não se justificando um qualquer juízo de inconstitucionalidade»."
 
3. [Comentário] Sem discutir a inconstitucionalidade do disposto no art. 641.º, n.º 2, al. b), CPC, sempre se poderá dizer que a interpretação do regime legal realizada no presente acórdão não é a única possível.

Efectivamente, procurando conjugar a regra do convite à sanação dos vícios processuais que consta do art. 6.º, n.º 2, CPC com o disposto no art. 641.º, n.º 2, al. b), CPC, pode entender-se que, primeiro, o tribunal deve convidar a parte a sanar o vício e só depois, no caso de este não ser sanado, decretar o indeferimento das alegações de recurso. Nesta óptica, a falta desse convite constitui uma violação do estabelecido no art. 6.º, n.º 2, CPC e, portanto, uma nulidade processual (art. 195.º, n.º 1, CPC).
 
Contra esta solução poder-se-ia invocar a analogia com o indeferimento liminar da petição (inepta) que não contém nenhum pedido (cf. art. 186.º, n.º 1 e 2, al. a), 577.º, al. b), e 590.º, n.º 1, CPC). Só que, neste caso, a parte pode apresentar uma nova petição inicial, sem perda de qualquer direito material (cf. art. 590.º e 560.º CPC), o que não sucede no caso de indeferimento das alegações de recurso.
 
MTS