"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/01/2018

Jurisprudência (766)

 
Cessão de créditos; notificação ao devedor;
acção executiva; falta de notificação
 
 
1. O sumário de RC 19/9/2017 (7825/16.3T8CBR.C1) é o seguinte:
 
I – Ainda que não se configure como elemento essencial para a perfeição do contrato e para a efectiva transmissão do crédito, a notificação da cessão ao devedor – ou a sua aceitação – corresponde a uma condição de eficácia da cessão relativamente ao devedor, pelo que, antes dessa notificação ou aceitação, o cessionário não está legitimado a exigir o crédito ao devedor e a instaurar contra o mesmo a respectiva acção executiva.

II – Tal notificação não poderá ser efectuada mediante a citação a efectuar na acção executiva, devendo o credor/cessionário – no requerimento executivo – alegar (e provar documentalmente, se possível) que a cessão de créditos já foi notificada ao devedor/executado ou que este já a aceitou.

III – Tendo sido omitida a alegação desse facto e não resultando do requerimento executivo que o mesmo não tenha ocorrido e que, por essa razão, esteja em causa uma excepção não suprível, não deve ser imediatamente indeferido o requerimento executivo, devendo ser dada ao exequente a oportunidade de suprir essa deficiência, ao abrigo do disposto no artigo 726º, nº 4, do CPC.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
 
"A decisão recorrida indeferiu liminarmente o requerimento executivo, ao abrigo do disposto no artigo 726º, nº 2, b), do CPC, por entender que a Exequente não preenche os requisitos de legitimidade processual e substantiva para demandar os Executados, uma vez que não alegou ter notificado os Executados da cessão de créditos com base na qual alega ter adquirido o crédito que aqui vem exigir e uma vez que, sem essa notificação, a cessão não produz efeitos em relação aos devedores (artigo 583º, nº 1, do CC).

Discordando dessa decisão, considera a Exequente que: [...]

- A notificação ao devedor, a que alude o artigo 583º, nº1 do Código Civil, de que o seu credor cedeu o crédito a outrem, pode ser feita através de citação para a execução proposta pelo credor cessionário contra os Executados; [... ]. 
 
Analisemos, então, a questão. 
 
Conforme decorre do disposto no artigo 53º do CPC, a legitimidade das partes no processo executivo afere-se, em regra, pelo título executivo: é a pessoa que figura no título como credor que tem legitimidade para promover a execução e é a pessoa que figura no título como devedor que tem legitimidade para ser demandado. 
 
Essa regra comporta, no entanto, algumas excepções que estão previstas no artigo 54º e entre as quais se encontra o caso de ter havido sucessão no direito ou na obrigação, ou seja, as situações em que, por força de transmissão do direito ou da obrigação, o real devedor ou credor já não é aquele que figura no título. Quando assim acontece, determina o artigo 54º, nº 1, que a execução deve correr entre os sucessores do credor ou do devedor, devendo o exequente alegar, no próprio requerimento para a execução os factos constitutivos da sucessão. Trata-se, portanto, de fazer a habilitação dos sucessores do credor ou do devedor que figuram no título executivo, dispensando-se o incidente de habilitação no caso de a sucessão ter ocorrido antes da propositura da execução. Mas, tal como acontece no incidente de habilitação, o exequente está, naturalmente, obrigado a alegar e provar os factos constitutivos da sucessão. 
 
No caso sub judice, quem figura no título como credor é o D... e a execução foi instaurada pela A... que, em cumprimento da norma supra citada, alegou os factos constitutivos da sucessão do crédito, alegando e provando ter celebrado com o D... um contrato de cessão de créditos por via do qual este lhe transmitiu o crédito que vem reclamar na presente execução. 
 
Dispõe, todavia, o artigo 583º, nº 1, do CC, que a cessão de créditos apenas produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada ou desde que ele a aceite. E, porque a Exequente não alegou – no requerimento executivo – que tal notificação ou aceitação tivesse ocorrido, coloca-se a questão de saber se tal notificação pode ser efectuada através da citação para a execução. 
 
A questão é controvertida na nossa jurisprudência. 
 
No sentido de que tal notificação pode ser efectuada através da citação para a execução, pronunciaram-se as seguintes decisões: 
 
- O Acórdão do STJ de 10/03/2016 (proc. nº 703/11.4TBVRS-A.E1.S1); 
 
- O Acórdão da Relação de Coimbra de 22/11/2016 (proc. nº 3956/16.8T8CBR.C1); 
 
- O Acórdão da Relação de Coimbra de 06/07/2016 (proc. nº 467/11.1TBCNT-A.C1). 
 
No sentido de que tal notificação não pode ser efectuada através da citação para a acção declarativa (e cuja argumentação nos parece valer para a acção executiva) pronunciaram-se as seguintes decisões:
 
- Acórdão do STJ de 12/06/2003 (processo nº 03B1762);

- Acórdão da Relação do Porto de 18/06/2007 (processo nº 0753072) [...]

Refira-se, antes de mais, que, na nossa perspectiva, a aludida questão assume (ou pode assumir) contornos um pouco diferentes no âmbito de uma acção declarativa e no âmbito de uma acção executiva, sendo que apenas iremos aqui abordar a questão na perspectiva da acção executiva.

Tal questão foi objecto de apreciação e decisão nos Acórdãos desta Relação (citados pela decisão recorrida) de 16-02-2016 e de 31-05-2016 [Proferidos nos processos nºs. 8457/15.9T8CBR.C1 e 2450/15.9T8CBR.C1] que foram subscritos (como Adjunta) pela aqui Relatora, onde se entendeu que a notificação em causa não pode ser efectuada através da citação para a execução, devendo, ao invés, ser alegada e provada no requerimento executivo.

E, ainda que a questão seja discutível, entendemos, para já, não existirem razões para divergir da posição assumida nos citados Acórdãos.

Vejamos porquê.

Pensamos ser de aceitar a ideia de que a notificação em questão não se configura propriamente como um facto constitutivo da transmissão do crédito, devendo considerar-se que tal transmissão ocorre por mero efeito do contrato de cessão de créditos entre o cedente e o cessionário [...]. Mas, ainda que não se configure como elemento essencial para a perfeição do contrato e para a efectiva transmissão do crédito, a notificação da cessão ao devedor – ou a sua aceitação – corresponde seguramente a uma condição de eficácia da cessão relativamente ao devedor, uma vez que, sem essa notificação ou aceitação, a cessão não produz qualquer efeito em relação ao devedor. Significa isso, portanto, que, antes dessa notificação ou aceitação, o cessionário não pode exigir o crédito ao devedor, nem este está obrigado a satisfazer-lhe a prestação, importando notar que – como resulta do disposto no artigo 583º, nº 2, do CC –, a não ser que o devedor tenha conhecimento da cessão (facto que o cessionário terá o ónus de provar), tem eficácia liberatória e é oponível ao cessionário o pagamento que o devedor faça ao cedente.

Nessas circunstâncias, parece-nos difícil admitir que o cessionário possa instaurar uma execução contra o devedor sem alegar que a cessão já foi notificada ao devedor ou que este já a aceitou, uma vez que esse facto é condição necessária para que o cessionário possa provocar a agressão ao património do devedor que é visada pela execução. Veja-se que, no âmbito do processo sumário (como, aliás, aqui acontecia), a penhora é efectuada antes da citação e, portanto, a admitir-se – como pretende a Apelante – que a notificação da cessão de créditos pode ser efectuada por via da citação para a execução, tal significaria que o devedor veria o seu património agredido pelo cessionário antes de essa cessão lhe ser notificada e, portanto, num momento em que tal cessão ainda não produzia, quanto a ele, qualquer efeito.

Pensamos, portanto, que, enquanto a cessão não for notificada ao devedor ou enquanto este a não aceitar, o cessionário não está legitimado a exigir o crédito ao devedor e, portanto, não está legitimado a instaurar contra o mesmo a respectiva acção executiva.

A situação que nos ocupa é equiparável à que se verifica quando a obrigação está dependente de condição suspensiva ou de uma prestação por parte do credor ou de terceiro e relativamente à qual a lei determina – cfr. artigo 715º do CPC – que incumbe ao credor alegar e provar documentalmente, no próprio requerimento executivo, que se verificou a condição ou que efectuou ou ofereceu a prestação. De facto, ainda que, no caso, a obrigação seja, em si mesma, imediatamente exigível porque a sua constituição ou exigibilidade não está dependente de qualquer condição, o direito do cessionário dessa obrigação não opera em relação ao devedor enquanto este não for notificado da cessão ou enquanto a não aceitar e, portanto, a exigibilidade da obrigação por parte do cessionário está efectivamente dependente dessa notificação ou aceitação.

Pensamos, portanto, em face do exposto, que, tal como acontece com o credor de uma obrigação condicional, também o cessionário da obrigação deve alegar, no requerimento executivo, que se verificou o facto do qual depende a eficácia da cessão relativamente ao devedor/executado. Trata-se, portanto, de fazer a alegação – e subsequente prova complementar (documentalmente se for possível ou, não o sendo, por outra via após contraditório) – de factos ou circunstâncias que, condicionando o direito do exequente relativamente ao executado, não resultam do título executivo, com vista a demonstrar e fornecer ao tribunal o grau de certeza necessário para admitir a acção executiva e a consequente agressão do património do executado. E, tal como a lei prevê a produção de prova e diligências complementares para tornar a obrigação certa, exigível e líquida, se o não for em face do título, também essa prova se revelará necessária quando o título não fornece elementos bastantes para criar o grau e certeza necessário de que o credor que se apresenta a propor a execução tem o direito de exigir aquela obrigação ao devedor. Daí que, nos casos em que a titularidade do crédito já não tem correspondência com o título – por ter ocorrido sucessão no direito – o exequente tenha que alegar os factos constitutivos da sucessão com vista a demonstrar que é ele o titular do crédito e, estando em causa uma cessão de créditos, deverá também alegar (e provar documentalmente, se tal for possível) que está em condições de exigir o crédito ao executado em virtude de tal cessão lhe ter sido notificada ou ter sido por ele aceite, não podendo, por conseguinte, ser admitida uma execução instaurada por cessionário do crédito sem que seja alegada a prévia notificação/aceitação dessa cessão pelo devedor.

Ora, a Exequente não alegou que tal notificação tenha sido efectuada ou que os Executados tenham aceitado a cessão de créditos e, portanto, não resulta do título executivo e não resulta do requerimento executivo que a cessão de créditos produza (já) os seus efeitos relativamente aos devedores e que, nessa medida, estejam reunidos os pressupostos necessários para que a Exequente lhes possa exigir o crédito mediante a propositura de uma acção executiva."

[MTS]