"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/01/2018

Jurisprudência (765)


Título Executivo Europeu;
execução; oposição

1. O sumário de RP 18/9/2017 (3328/15.1T8AGD-A.P1) é o seguinte:

I - Estando em causa a execução em Portugal de uma decisão judicial proferida por Tribunal Italiano e certificada pelo mesmo Tribunal como “Título Executivo Europeu”, nos termos previstos no Regulamento (CE) nº805/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, não compete ao Tribunal da execução avaliar do mérito da decisão nem da sua certificação como Título Executivo Europeu (art. 21º, nº 2 do Regulamento).
 
II - Esta execução processa-se segundo os trâmites dos Estado-Membro de execução e nas mesmas condições que uma decisão proferida no Estado-Membro de execução (art. 20º, nº1 do mesmo Regulamento).
 
III - Deste modo, a oposição à referida execução apenas pode incidir sobre algum dos fundamentos previstos no art. 729º CPC.
 
IV - Invocando o executado a inexistência da divida, terá que justifica-la no âmbito da al. g) do referido artigo, ou seja, através de “qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação”, que seja posterior à data da sentença e, não se tratando da prescrição se prove por documento.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"- Da inconstitucionalidade das normas previstas no art. 21 e 23º do Regulamento (CE) 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de abril de 2004 -

Nas conclusões de recurso sob os pontos 4 a 10 suscita o apelante a inconstitucionalidade dos art. 21º e 23º Regulamento (CE) 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de abril de 2004, quando interpretados no sentido de limitar os fundamentos de oposição à execução instaurada com base em requerimentos de injunção europeia à qual foi aposta a fórmula executória”, sendo inconstitucional por violação do princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

A decisão recorrida fez aplicação do regime previsto no art. 23º do Regulamento (CE) 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de abril de 2004, onde se dispõe:

Suspensão ou limitação da execução

Quando o devedor tiver:

— contestado uma decisão certificada como Título Executivo Europeu, incluindo um pedido de revisão na aceção do artigo 19.º, ou

— requerido a retificação ou revogação da certidão de Título Executivo Europeu em conformidade com o artigo 10.º, o tribunal ou a autoridade competente do Estado-Membro de execução pode, a pedido do devedor:

a) Limitar o processo de execução a providências cautelares; ou

b) Subordinar a execução à constituição de uma garantia, conforme determinar;

c) Em circunstâncias excecionais, suspender o processo de execução.

Tal preceito não tem aplicação à concreta situação dos autos, porque o apelante não pretende obter a suspensão ou limitação da execução, mas sim a sua extinção.

Acresce referir que no regime previsto no 21º do Regulamento não se indica os fundamentos de oposição à execução, mas tão só os fundamentos para a recusa da execução e os fundamentos alegados não se enquadram na previsão da norma.

Prevê o Artigo 21.º, sob a epígrafe Recusa de execução:

1. A pedido do devedor, a execução será recusada pelo tribunal competente do Estado-Membro de execução se a decisão certificada como Título Executivo Europeu for inconciliável com uma decisão anteriormente proferida num Estado-Membro ou num país terceiro, desde que:

a) Envolva as mesmas partes e a mesma causa de pedir; e

b) Tenha sido proferida no Estado-Membro de execução ou reúna as condições necessárias para o seu reconhecimento no Estado-Membro de execução; e

c) Não tenha sido alegada, nem tiver sido possível alegar, a incompatibilidade para impugnar o crédito durante a ação judicial no Estado-Membro de origem.

2. A decisão ou a sua certificação como Título Executivo Europeu não pode, em caso algum, ser revista quanto ao mérito no Estado-Membro de execução.

Cumpre ao direito interno de cada Estado-Membro determinar os fundamentos da oposição à execução (art. 20º/1 do citado Regulamento).

O apelante não suscita a inconstitucionalidade da norma contida no art. 729º/g) CPC, norma que prevê os fundamentos de oposição quando está em causa a execução com fundamento em sentença.

Nas conclusões de recurso sob os pontos 7 a 8 alega o apelante um conjunto de factos que não constam da petição de oposição relacionados com a sua situação de carência económica e com a necessidade de recorrer ao apoio judiciário, para demonstrar que tal limitação impediu a apresentação de defesa, matéria que não foi apreciada pelo juiz do tribunal “a quo” e que por isso, não pode ser objeto de reapreciação.

O recurso consiste no pedido de reponderação sobre certa decisão judicial, apresentada a um órgão judiciariamente superior ou por razões especiais que a lei permite fazer valer [...]. O recurso ordinário (que nos importa analisar para a situação presente) não é uma nova instância, mas uma mera fase (eventualmente) daquela em que a decisão foi proferida.


O recurso é uma mera fase do mesmo processo e reporta-se à mesma relação jurídica processual ou instância [...]. Dentro desta orientação tem a nossa jurisprudência [...] repetidamente afirmado que os recursos visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova.

O tribunal de recurso vai reponderar a decisão tal como foi proferida e por isso, não pode levar em consideração novos factos ou argumentos de sustentação da defesa.

Contudo, sempre se dirá que face aos elementos que constam dos autos, o apelante apresentou defesa no processo pendente no Tribunal Italiano, sem recorrer ao apoio judiciário. Não usou do meio próprio para deduzir oposição e por isso a defesa não foi considerada na ação e processo pendente no tribunal em Itália.

Argumenta o apelante que o artigo 21º do regulamento 805/2004 quando interpretado no sentido de limitar os fundamentos de oposição à execução instaurada com base em requerimentos de injunção europeia à qual foi aposta a fórmula executória, é inconstitucional por violação do princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Como já se referiu o art. 21º não limita os fundamentos da oposição à execução, mas prevê apenas a recusa da execução. Os fundamentos de oposição à execução estão compreendidos na previsão do art. 20º do citado regulamento e são aqueles que o Estado-Membro da execução prevê para o processo de execução.

Por outro lado, a decisão certificada pelo Título Executivo Europeu e que constitui o título executivo, não se formou no âmbito de um procedimento europeu de injunção de pagamento, cujo regime consta do Regulamento (CE) 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2006. A decisão foi proferida ao abrigo do regime vigente no Estado Membro de origem.

Não merece censura a decisão do Tribunal que invocando o princípio do primado do direito da União Europeia aplicou o Regulamento (CE) 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de abril de 2004.

O princípio do primado do direito da União Europeia, a que se reporta o art.8.º da Constituição da Republica Portuguesa, só pode ser efetivo no respeito dos limites da competência da União e no respeito dos princípios e direitos fundamentais comuns aos Estados-Membros.

O Regulamento (CE) 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de abril de 2004 integra-se no regime normativo do Direito da União Europeia e reporta-se a matéria da competência do Direito da União, pois insere-se no âmbito de um plano para desenvolver um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, no qual seja assegurada a livre circulação de pessoas (Considerando 1). Na interpretação e aplicação do Regulamento no direito interno devem observar-se os princípios e normas do Tratado da União com a interpretação desenvolvida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, em obediência ao princípio da interpretação conforme.

A matéria em análise nos autos cai na previsão do citado Regulamento.

Será junto do Tribunal de Justiça da União Europeia, através do mecanismo do reenvio prejudicial (art. 267º TFUE) que se pode e deve questionar da conformidade do direito interno com as normas do Regulamento. Contudo, porque não suscita a apelante qualquer questão a respeito da aplicação do art. 20º do Regulamento, não existe fundamento para usar de tal instrumento de uniformização de interpretação.

Conclui-se, assim, que não merece censura a decisão recorrida quando ao abrigo do princípio do primado procedeu à aplicação do regime previsto no Regulamento (CE) 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de abril de 2004, pois só desse modo se pode garantir a efetividade do Direito da União Europeia, em obediência ao princípio da cooperação leal (art. 4º Tratado de Lisboa)."

3. [Comentário] a) A confiança mútua na administração da justiça realizada por qualquer tribunal de qualquer Estado-membro é uma condição essencial ao funcionamento do espaço judiciário europeu. Sem essa confiança mútua não seria sequer pensável o reconhecimento ou o exequatur automático de uma decisão proferida num Estado-membro em qualquer outro Estado-membro.

É por isso que no cons. (18) Reg. 805/2004 se afirma o seguinte: "A confiança mútua na administração da justiça nos Estados-Membros autoriza que o tribunal de um Estado-Membro considere que todos os requisitos de certificação como Título Executivo Europeu estão preenchidos, a fim de permitir a execução da decisão em todos os outros Estados-Membros sem revisão jurisdicional da correcta aplicação das normas processuais mínimas no Estado-Membro onde a decisão deve ser executada". Esta confiança mútua orienta o disposto no art. 1.º Reg. 805/2004 ("O presente regulamento tem por objectivo criar o Título Executivo Europeu para créditos não contestados, a fim de assegurar, mediante a criação de normas mínimas, a livre circulação de decisões, transacções judiciais e instrumentos autênticos em todos os Estados-Membros, sem necessidade de efectuar quaisquer procedimentos intermédios no Estado-Membro de execução previamente ao reconhecimento e à execução") e concretiza-se no estabelecido no art. 5.º Reg. 805/2004 ("Uma decisão que tenha sido certificada como Título Executivo Europeu no Estado-Membro de origem será reconhecida e executada nos outros Estados-Membros sem necessidade de declaração da executoriedade ou contestação do seu reconhecimento").

É também o princípio de confiança mútua que justifica a consagração do princípio da competência do Estado de origem para apreciar a oposição ao Título Executivo Europeu que se encontra estabelecida nos art. 10.º (Rectificação ou revogação da certidão de Título Executivo Europeu) e 19.º (Rectificação ou revogação da certidão de Título Executivo Europeu) Reg. 805/2004. A decisão proferida pelo tribunal do Estado de origem sobre esta oposição é automaticamente reconhecida em qualquer outro Estado-membro (cf. art. 36.º, n.º 1, Reg. 1215/2012).

Apenas quando o executado tenha utilizado no Estado de origem algum dos referidos meios de oposição pode solicitar no Estado de execução a suspensão ou a limitação da execução permitida pelo art. 23.º Reg. 805/2004. 

b) Quanto ao problema da inconstitucionalidade suscitado pelo recorrente, há que referir que o Reg. 805/2004 é particularmente exigente quanto às condições em que uma decisão pode ser certificada como Título Executivo Europeu, estabelecendo, para esse efeito, algumas normas mínimas que devem ter sido aplicadas no próprio processo em que foi reconhecido o crédito não contestado (cf. art. 12.º a 19.º Reg. 805/2004). Portanto, não é pensável a invocação pelo executado da violação do princípio da proibição da indefesa.

Não se ignora que este regime exige um esforço acrescido do devedor, desde logo no que respeita à apresentação da defesa no processo em que foi reconhecido o crédito não contestado. Mas também é claro que isso é uma contrapartida necessária (ou, se se quiser, um custo necessário) de um espaço judiciário europeu realmente operante e útil. 

c) Sobre a matéria, cf. P. Costa e Silva, Processo de Execução I (2006), 59 ss.; L. Mesquita, O Título Executivo Europeu como Instrumento de Cooperação Judiciária Civil na União Europeia (2012), 500 ss.; também com interesse Guia Prático para a aplicação do Regulamento relativo ao Título Executivo Europeu.

MTS