"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/01/2018

Jurisprudência (780)


Citação; interrupção da prescrição;
ficção da citação


1. O sumário de RP 16/10/2017 (3432/14.3TBVNG-A.P1) é o seguinte:

I - A hipótese do nº 2 do artigo 323º do Código Civil requer para o seu funcionamento que a citação se não efetive nos cinco dias subsequentes à instauração da acção, por causa não imputável ao autor ou exequente, ficcionando-se, nessa eventualidade, a interrupção da prescrição.

II - Esta previsão legal é também aplicável aos casos em que o processo se inicia com um vício imputável ao autor ou exequente, impeditivo da realização da citação, vício suprido espontânea ou a convite do tribunal pelo menos cinco dias antes da data em que se completaria a prescrição.

III - Nos casos em que a não efetivação da citação é imputável ao autor ou exequente, mas também aos serviços de justiça por não terem atempadamente convidado aquele a suprir as patologias obstativas da efetivação da citação, o nº 2 do artigo 323º do Código Civil não é aplicável, só o sendo quando a não efetivação da citação não é imputável àquele que instaurou a ação.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 

"O recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida alegando para o efeito, em síntese, que instaurou a acção executiva cerca de oito meses antes de se completar o prazo prescricional, que requereu a correcção da forma do processo da acção executiva volvidos oitenta e seis dias após a sua instauração e que respondeu à notificação que lhe foi feita para juntar aos autos o original do título exequendo no segundo dia do prazo processual que lhe foi facultado, razão pela qual apenas lhe é imputável um atraso de cerca de quatro meses na efetivação da citação do embargantes; na falta de junção do original do título exequendo há lugar à prolação de despacho a determinar essa junção, sendo o prazo para abertura de conclusão de cinco dias e o prazo para prolação dessa decisão de dez dias, não sendo imputável ao recorrente a prolação dessa decisão do tribunal depois de já se mostrar expirado o prazo prescricional, devendo esta ter sido efetuada ainda no decurso do mês de junho de 2014 e em todo o caso, a citação dos executados devia processar-se mesmo sem a junção aos autos do original do título exequendo.

Cumpre apreciar e decidir.

O título exequendo é uma livrança e no caso destes autos demandam-se avalistas da subscritora da livrança, obrigações que estão sujeitas a um prazo prescricional de três anos a contar da data de vencimento do título (artigos 77º, 32º, 1º parágrafo, 78º, 1º parágrafo e 70º, 1º parágrafo, sendo todos os artigos da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças). Assim sendo, o prazo trienal de prescrição completou-se em 17 de fevereiro de 2015.

Porém, o embargante foi citado em 02 de outubro de 2015, enquanto a embargante foi citado em 03 de outubro do mesmo ano, ou seja, em ambos os casos já depois de expirado o aludido prazo trienal.

Como é sabido, no caso de prazo prescricional, ao invés do que sucede relativamente ao impedimento da caducidade (veja-se o artigo 331º, nº 1, do Código Civil), não basta a simples instauração da ação para operar a sua interrupção, sendo necessária a citação ou a notificação judicial de qualquer ato que exprima direta ou indiretamente a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente (artigo 323º, nº 1, do Código Civil).

Contudo, sempre que a citação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida [...], por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias (artigo 323º, nº 2, do Código Civil).

A questão a que importa responder é esta: a citação dos embargantes para além de 17 de fevereiro de 2015 é imputável ao recorrente?

O recorrente admite um atraso de quatro meses na efetivação da citação dos embargantes. Porém, porque instaurou a ação executiva cerca de oito meses antes do termo do prazo prescricional, não aceita que as demoras processuais resultantes do atraso dos serviços lhe sejam imputáveis.

Que dizer?

A ação executiva de que estes autos dependem iniciou-se sob forma sumária, forma processual em que a citação apenas ocorre após a efectivação da penhora (artigo 856º, nº 1, do Código de Processo Civil). Porém, isso não tem obstado a que a jurisprudência entenda que em tal caso a prescrição se tenha por interrompida nos cinco dias subsequentes à instauração da acção executiva, pois que nesse caso a não realização da citação nesse prazo decorre do figurino processual que o legislador deu a essa forma processual, não devendo o exequente ser penalizado por isso.

Contudo, no caso dos autos, ocorreu um erro na forma de processo, pois que o valor facial do título exequendo excedia o dobro da alçada do tribunal de primeira instância, sendo por isso inaplicável a forma sumária, mas antes a forma ordinária (artigo 550º, nº 1 e nº 2, alínea d), a contrario sensu, do Código de Processo Civil).

O ora recorrente apenas detetou esse erro em 18 de agosto de 2014 e logo cuidou de comunicar isso ao tribunal.

A partir de então, devia a ação executiva seguir os termos ordinários, com a necessária conclusão ao julgador a fim de proferir despacho liminar (artigo 726º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Porém, é imputada ao ora recorrente outra falha motivadora do atraso na realização da citação dos aqui embargantes, qual seja a falta de entrega do original do título exequendo nos termos previstos no nº 5 do artigo 724º do Código de Processo Civil.

De facto, de acordo com o previsto no artigo 724º, nº 5, primeira parte, do Código de Processo Civil, o ora recorrente devia ter oferecido o título exequendo em tribunal nos dez dias subsequentes à distribuição. Apesar de se tratar de disposição relativa ao processo ordinário, é a mesma subsidiariamente aplicável ao processo sumário, ex vi nº 3, do artigo 551º do Código de Processo Civil.

Por isso, mesmo com o erro na forma de processo cometido pelo ora recorrente, devia o mesmo ter observado o normativo citado e, não o cumprindo, havia lugar à aplicação da segunda parte do nº 5 do artigo 724º do Código de Processo Civil.

Seja como for, o certo é que a falta de oferecimento do original do título exequendo não constitui fundamento para recusa do requerimento executivo (veja-se a alínea d), do nº 1, do artigo 725º do Código de Processo Civil), nem tão-pouco de indeferimento liminar do mesmo requerimento, mas apenas e tão-só de convite para junção do original em falta (artigo 726º, nº 4, do Código de Processo Civil) [Neste sentido veja-se, com as necessárias adaptações, leia-se quanto se escreveu na alínea d) da página 191, das Lições de Processo Civil Executivo, Almedina 2016, da autoria de Marco Carvalho Gonçalves], já que a hipótese em análise não vem contemplada nos fundamentos de indeferimento liminar do requerimento executivo do nº 2, do artigo 726º do citado diploma legal.

No caso dos autos, tendo-se o processo iniciado indevidamente na forma sumária, ainda que o agente de execução não detetasse o erro na forma de processo cometido, sempre deveria suscitar a intervenção do juiz a fim deste proferir despacho convidando o exequente a juntar em tribunal o original do título exequendo, já que apenas deverá prosseguir as diligências executivas depois de se certificar da junção em tribunal do original do título exequendo. Sendo o título exequendo um título de crédito, só com o oferecimento do original o exequente demonstra verdadeiramente o seu direito cartular, sendo esta uma decorrência do princípio da incorporação [...].

Ao invés do que sustenta o recorrente, a falta de junção do original do título de crédito exequendo constitui obstáculo ao prosseguimento da acção executiva e, não sendo suprida a omissão no prazo previsto no nº 5 do 724º do Código de Processo Civil, há lugar à extinção da ação executiva.

A referência que na segunda parte do nº 5 do artigo 724º do Código de Processo Civil é feita ao executado não tem o alcance que o recorrente lhe pretende dar, significando apenas que na eventualidade da ação executiva prosseguir indevidamente sem a junção em tribunal do original do título exequendo, pode o executado requerer ao juiz que determine essa junção.

A questão que se coloca nesta altura é a seguinte: no caso de negligência ou mau funcionamento dos serviços de justiça motivadores da não deteção mais prematura dos erros cometidos pelo recorrente e impossibilitadores do seu suprimento e consequente efetivação atempada da citação, deve considerar-se preenchida a previsão do nº 2, do artigo 323º do Código Civil e assim verificada a ficcionada interrupção da prescrição?

A hipótese do nº 2 do artigo 323º do Código Civil requer para o seu funcionamento que a citação se não efetive nos cinco dias subsequentes à instauração da ação, por causa não imputável ao autor ou exequente, ficcionando, nessa eventualidade, a interrupção da prescrição. Trata-se de uma previsão legal que visa tutelar a parte que instaura a ação, protegendo-a contra os atrasos na realização da citação, desde que tal demora não lhe seja imputável e ainda que o tribunal em que foi instaurada a acção seja incompetente.

A nosso ver, esta previsão será também aplicável aos casos em que o processo se inicia com um vício imputável ao autor ou exequente, impeditivo da realização da citação, vício suprido espontânea ou a convite do tribunal pelo menos cinco dias antes da data em que se completaria a prescrição.

E será também aplicável a casos, como o dos autos, em que subsistiu a patologia obstativa da realização da citação associada a uma demora na movimentação dos autos por parte dos serviços de justiça? Dito de outro modo, será o nº 2 do artigo 323º do Código Civil aplicável a casos em que a ação é instaurada vários meses antes do completamento do prazo prescricional, não sendo o autor ou exequente convidado pelos serviços de justiça a suprir a patologia obstativa da realização da citação e assim viabilizar a atempada efetivação da citação? Dito ainda de outro modo, contemplará a previsão do nº 2, do artigo 323º do Código Civil, atenta a sua teleologia legal, casos em que a não efetivação da citação é imputável ao autor ou exequente, mas também aos serviços de justiça por não terem atempadamente convidado aquele a suprir as patologias obstativas da efetivação da citação?

A nosso ver, a previsão legal em análise não abarca tais casos, só sendo aplicável quando a não efetivação da citação não é imputável àquele que instaurou a acção.

No caso dos autos, o recorrente, tal como espontaneamente veio dar conta do erro na forma de processo, devia também ter junto o original do título exequendo e, desde que o fizesse até pelo menos cinco dias antes do termo do prazo prescricional, cremos que beneficiaria da interrupção ficta prevista no nº 2 do artigo 323º do Código Civil.

Não o tendo feito, só de si se pode queixar, ainda que o funcionamento dos serviços de justiça não tenha sido exemplar. Contudo, este mau funcionamento dos serviços de justiça não ilide a responsabilidade do recorrente por não ter oportunamente oferecido em tribunal o original do título de crédito exequendo.

Pelo exposto, conclui-se que a decisão recorrida deve ser confirmada, sendo as custas do recurso da responsabilidade do recorrente, em virtude de ter decaído (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil)."

[MTS]