"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/01/2018

Jurisprudência (762)


Execução; legitimidade passiva;
garantia real; terceiro


1. O sumário de RC 12/9/2017 (1922/15.0T8CTB-A.C1) é o seguinte:

I – O artº 54º, nº 2 do nCPC consagra um desvio à regra geral da determinação da legitimidade, concedendo essa legitimidade (passiva) em execução ao terceiro dono de bens dados como garantia real ao exequente, se o exequente pretender fazer valer essa garantia, independentemente de poder ou não também demandar o devedor.

II – Não se deve entender[...] que o artº 54º, nº 2 do nCPC apenas é aplicável a terceiros garantes de dívidas (conceito de terceiros para efeitos de registo), dada a própria redação desse preceito, que não dispõe no sentido de também ser exigível que o terceiro dono do bem ou dos bens dados em garantia seja igualmente garante da dívida.

III – Razão pela qual se deve entender que o artº 54º, nº 2 do nCPC não é apenas aplicável a terceiros garantes de dívidas, mas relativamente a terceiros como tal considerados para efeitos de registo.

IV – Consideram-se terceiros, para efeitos de registo, aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

V - É o caso do Exequente e da Embargante, que receberam ou adquiriram dos mesmos autores – os devedores ao Exequente – direitos incompatíveis entre si, como é o caso do efeito da doação feita à Embargante e da hipoteca constituída sobre o mesmo bem e a favor do Exequente, direitos que conflituam entre si, dado o disposto no artº 686º do C. Civil.

VI - Afigura-se-nos ser este o entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência, especialmente depois da entrada em vigor do Dec.Lei nº 533/99, de 11/12, que, na sequência dos Ac. UJ do STJ nº 15/97, de 20/05/1997, e do Ac. UJ do STJ nº 3/99, de 18/05/1999, ao introduzir o citado nº 4 ao artº 5º do CRPredial consagrou um conceito restrito de terceiro – os que adquiriram de um mesmo autor direitos entre si incompatíveis -, assim se evitando que o direito registado venha a ser arredado por um facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente.

VII - No confronto entre o direito real de garantia de hipoteca voluntária, registada, titulado pela exequente, e o direito de propriedade da opoente decorrente de transmissão anterior, não registada, deve prevalecer, quanto a nós, o direito real de garantia de hipoteca.

VIII - A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis está sujeita a registo e os factos a ele sujeitos só produzem efeitos em relação a terceiros após a data do respectivo registo – arts. 2º, nº 1, al. a) e 5º, nº 1, CRegP.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] cumpre reapreciar as questões de direito supra enunciadas, começando pela subquestão B1- Saber se a Embargante é parte legítima na execução, nos termos do artº 54º, nº 2 do nCPC, apesar de ser terceira não garante da dívida:

Como resulta claramente da citada disposição, ela consagra um desvio à regra geral da determinação da legitimidade, concedendo essa legitimidade (passiva) em execução ao terceiro dono de bens dados como garantia real ao exequente, se o exequente pretender fazer valer essa garantia, independentemente de poder ou não também demandar o devedor.

Este preceito corresponde, com apenas alterações de pontuação e de tempos verbais, ao anteior artº 56º do CPC, disposição esta que Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, vol.I, em notas ao artº 56º, comentava do seguinte modo: ‘A reforma do processo civil procurou, desde o início, solucionar os problemas de determinação da legitimidade nos casos de dívidas providas de garantia real que onere bens pertencentes ou na posse de terceiro – pondo termo às dúvidas consentidas pelo nº 2 deste preceito, numa redação anterior ao DL nº 329-A/95. 
 
... (Este diploma) concedeu legitimidade passiva para a execução, tanto ao proprietário dos bens onerados com a garantia, como ao respetivo possuidor, naturalmente nos casos em que o devedor pretende efetivar a garantia real (sem actuar contra o devedor), sem, todavia, se impor o litisconsórcio necessário, quer entre os referidos proprietário ou possuidor, quer relativamente ao próprio devedor; considerou-se, para tal, que cumpria ao exequente avaliar, em termos concretos e pragmáticos, quais as vantagens e inconvenientes que emergem de efetivar o seu direito no confronto de todos aqueles interessados passivos, ou de apenas algum ou alguns deles, devendo naturalmente ponderar que poderá ver-se confrontado com a possível dedução de embargos de terceiro por parte do interessado que não haja curado de demandar.’.

Donde resulta o citado desvio no conceito de legitimidade passiva para as execuções em que haja garantias reais sobre bens de terceiro (não do devedor), como sucede no presente caso, uma vez que os devedores/mutuários são F... e mulher, e que o bem dado em garantia real (hipoteca) pelos devedores ao Exequente era, já à data da constituição da hipoteca, da Embargante, a quem fora antes doado anteriormente, embora com a reserva de usufruto a favor dos doadores, seus pais.

Mas como o registo da doação ocorreu posteriormente ao registo da hipoteca, não há dúvidas acerca da qualidade de dono do imóvel à data da constituição da garantia – a Embargante –, por efeito do disposto no artº 954º, al. a) do C. Civil, e bem assim do interesse do Exequente, enquanto credor, na propositura da execução contra o dono desse bem, pelo que goza este de legitimidade indireta na execução instaurada, por força do citado artº 54º, nº 2, do nCPC.

Donde improceder esta subquestão suscitada pela Embargante.

***
 
Prosseguindo com a subquestão B2 - se se deve entender que o artº 54º, nº 2 do nCPC apenas é aplicável a terceiros garantes de dívidas (conceito de terceiros para efeitos de registo), é manifesto que assim não é, dada a própria redação desse preceito, que não dispõe no sentido de também ser exigível que o terceiro dono do bem ou dos bens dados em garantia seja igualmente garante da dívida.

Mas mesmo que seja entendido que também é exigível tal condição, afigura-se-nos que no caso deve ser entendido que o Exequente – a quem foi dado em hipoteca o bem em causa e a Embargante, donatária desse mesmo bem, são terceiros para efeitos de registo, dado o disposto nos artºs 2º, nº 1, als. a) e h), 4º, 5º, nºs 1 e 4, e 6º, nº 1, todos do Código Registo Predial, disposições estas das quais resulta claramente quais os actos/factos sujeitos a registo, a eficácia entre as partes dos factos sujeitos a registo e a oponibilidade dos factos sujeitos a registo contra terceiros, sendo que se consideram terceiros, para efeitos de registo, aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

É o caso do Exequente e da Embargante, que receberam ou adquiriram dos mesmos autores – os devedores ao Exequente – direitos incompatíveis entre si, como é o caso do efeito da doação feita à Embargante e da hipoteca constituída sobre o mesmo bem e a favor do Exequente, direitos que conflituam entre si, dado o disposto no artº 686º do C. Civil.

Razão pela qual se deve entender que o artº 54º, nº 2 do nCPC não é apenas aplicável a terceiros garantes de dívidas, mas relativamente a terceiros como tal considerados para efeitos de registo.

Afigura-se-nos ser este o entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência, especialmente depois da entrada em vigor do Dec.Lei nº 533/99, de 11/12, que, na sequência dos Ac. UJ do STJ nº 15/97, de 20/05/1997, e do Ac. UJ do STJ nº 3/99, de 18/05/1999, ao introduzir o citado nº 4 ao artº 5º do CRPredial consagrou um conceito restrito de terceiro – os que adquiriram de um mesmo autor direitos entre si incompatíveis -, assim se evitando que o direito registado venha a ser arredado por um facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente.

Vejam-se neste sentido, entre outros, o Ac. STJ de 21/04/2009, Col. Jur. STJ ano XVII, tomo II, pg. 37; Ac. STJ de 7/07/1999, Col. Jur. Ano XVII, tomo II, pg. 164; o Ac. STJ de 30/06/2011, proc.º nº 91-G/1990.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt/jstj [...]
 
No caso vertente, o confronto existente é entre um direito real de garantia (hipoteca e sua conversão em penhora) e um direito real de propriedade decorrente de uma doação, ambos resultantes de actos sucessivos dos executados, pais da embargante. [...]

Saber se embargante e exequente podem ser considerados terceiros para efeitos de registo tem de ser resolvido à luz da definição acolhida no acórdão uniformizador n° 3/99 e da norma do n° 4 do art. 5° C.R.Predial, norma, aliás, de natureza interpretativa.

Dúvidas não subsistem de que houve um transmitente comum deste direito: o executado que doa os prédios é o mesmo que depois sobre eles constitui voluntariamente hipoteca. E a donatária nenhuma intervenção teve no contrato de constituição de hipoteca.

A eficácia do registo aparece aqui intimamente conexionada com a boa fé de quem regista. Se os prédios estão inscritos no registo ainda em nome do doador, não traduzindo a nova realidade, ou seja, a transferência desse direito para a esfera jurídica da embargante/donatária, é legítimo dar protecção ao embargado que, desconhecedor (até prova em contrário, o que nem sequer foi alegado) da nova titularidade está a negociar com o titular inscrito do direito.

Estes dois direitos em confronto, ainda que não sendo da mesma natureza, enquanto um é um direito real de propriedade, o outro é um direito real mas só de garantia, são incompatíveis entre si, já que, conferindo a hipoteca ao seu beneficiário o direito de se fazer pagar pelo valor do respectivo bem, isso vai conflituar com o conteúdo pleno do direito de propriedade radicado noutra pessoa.

Assim, embargante e embargado, porque adquirentes de direitos incompatíveis entre si de um autor comum, são terceiros para efeitos de registo, na definição acolhida no acórdão uniformizador n° 3/99, e, nesta medida, a prioridade derivada do registo proclamada no n° 1 do art. 6° C.R.Predial vai determinar a prevalência do direito deste último e, consequentemente, a inoponibilidade do direito da embargante. [...]

A constituição de hipoteca voluntária registada sobre determinados imóveis prevalece sobre escritura de doação, anterior, não registada, incidente sobre esses mesmos imóveis.

Daí que perante a prevalência da hipoteca, os embargos tenham de improceder, como se decidiu na lª instância.

A embargante sustenta que à luz do Acórdão Uniformizador nº 3/99 não ocorre incompatibilidade entre o seu direito e o direito do recorrente, por se tratar de direitos de diferente natureza: o direito de propriedade e um direito real de garantia, a hipoteca.

Está fora de causa que, em abstracto, possam coexistir sobre a mesma coisa um direito de propriedade e uma hipoteca; e que a hipoteca tanto pode garantir uma dívida do proprietário como de um terceiro.

Só que essa evidência não conduz a considerar compatíveis os concretos direitos de propriedade e do credor hipotecário, no caso presente, pela razão já atrás apontada.

E não é exacto que assim se desrespeite o Acórdão Uniformizador nº 3/99. Contrariamente ao que a embargante sustenta, a lógica do acórdão conduz a distinguir consoante a penhora foi ou não precedida de hipoteca. Como se pode ler em Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol.II, Coimbra, 1987, 2ª reimp, nº 57, pág. 19 – transcrição que se faz porque o referido acórdão expressamente quis consagrar a noção de terceiro ali defendida – "Terceiros para efeitos de registo predial são as pessoas que do mesmo autor ou transmitente adquiram direitos incompatíveis (total ou parcialmente) sobre o mesmo prédio. Assim, se A vendeu certo prédio a B e depois a C, estes dois adquirentes são terceiros entre si, e portanto prevalece a venda que primeiro for registada, e que pode ser a 2ª não obstante dar-se o caso de já nessa altura não ser A mas B o verdadeiro proprietário do prédio. O mesmo sucede, mutatis mutandis, se A vendeu o prédio a B e depois constituiu uma servidão ou outro direito real (usufruto, hipoteca, etc) ou vice-versa, sem ter ressalvado, nesta hipótese, o direito real anteriormente constituído. Mas não assim se, em tal hiopótese, A fez a ressalva indicada. Nem ainda se o mesmo prédio foi vendido por A a B e por C a D. Neste caso B e D não serão terceiros entre si, prevalecendo, das duas vendas, aquela que tenha sido feita (se alguma o foi) pelo verdadeiro proprietário. Só neste último sentido é que pode dizer-se, como usualmente se diz, que o registo não dá direitos, mas apenas os conserva.
 
3. [Comentário] O acórdão discorre com acerto sobre matérias relacionadas com a legitimidade de terceiros no processo executivo e com o (doutrinariamente muito discutível) conceito restrito de terceiros para efeitos de registo. 
 
O acórdão apenas merece uma observação na parte que consta do número III do sumário: "Razão pela qual se deve entender que o artº 54º, nº 2 do nCPC não é apenas aplicável a terceiros garantes de dívidas, mas relativamente a terceiros como tal considerados para efeitos de registo". A questão é apenas de redacção: o que certamente se quis dizer é que o disposto no art. 54,º, n.º 2, CPC quanto à legitimidade de terceiros que são titulares de bens dados em garantia da dívida exequenda não deixa de ser aplicável pela circunstância de o terceiro executado também ser terceiro para efeitos de registo perante o exequente. 
 
Efectivamente, o disposto no art. 54.º, n.º 2, CPC é aplicável independentemente de o terceiro garante ser terceiro para efeitos de registo perante o exequente. Aliás, a situação mais frequente de utilização do disposto naquele preceito é aquela em que o terceiro garante não é terceiro para efeitos do registo perante o exequente. Por exemplo: A contrai uma dívida perante B que é garantida por uma hipoteca constituída sobre um prédio de C; C (que não é terceiro para efeitos de registo perante A) pode ser executado para pagamento dessa dívida.
 
MTS