"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/01/2018

Jurisprudência (760)

 
Execução; herdeiro;
oposição à penhora

 
1. O sumário de RL 13/7/2017 (559/10.4TBCSC-C.L1-6) é o seguinte:
 
- Visando o incidente de substituição de uma das partes na relação substantiva em litígio, por sucessão, a determinação daquele que assume a qualidade jurídica do falecido, manifesto é que o herdeiro habilitado do executado não passa, doravante e por via da habilitação, a responder pessoalmente pelos encargos da herança.
 
- Almejando o executado/habilitado contrariar uma penhora que tenha incidido sobre bens que não recebeu do autor da herança, não os tendo herdado, é lançando mão do “incidente“ do artº 744º do Código de Processo Civil que pode lograr o seu levantamento.
 
- No âmbito do incidente indicado, e tendo a herança sido aceite pura e simplesmente, é ao herdeiro executado que incumbe alegar e provar que os bens penhorados não provieram da herança, sendo que, por aplicação do artº 293º, do CC, deve indicar os competentes meios de prova logo no requerimento em que suscite o incidente.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"[...] importa precisar que a execução da qual emerge a presente instância recursória, encontra-se actualmente a correr termos contra herdeiros de iniciais executados, e na sequência de incidente previsto no artigo 351º, nº 1, do Código de Processo Civil actual, dispositivo que regula o incidente de habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa.
 
O referido incidente, recorda-se, tem por desiderato assegurar que determinada pessoa sucedeu a outra na posição jurídica que esta ocupava e pode ter lugar como incidente dum processo pendente (habilitação-incidente), como elemento ou requisito da legitimidade das partes (habilitação-legitimidade) ,e como objecto de uma acção (habilitação-acção). (Cfr. Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. I , 3ª ed., págs. 573 e 574).

Visou portanto o incidente de habilitação desencadeado na presente execução colocar os sucessores dos iniciais executados na posição jurídica destes - na execução - e para com os mesmos poder prosseguir a instância coerciva, sendo que, suspensa a mesma logo que junto ao processo o documento que prove o falecimento da parte (artº 270º, do CPC), obrigado não está o exequente em instaurar uma nova execução contra a herança jacente (cfr. artº 2046º, do CC), antes deve diligenciar de modo a pôr termo à suspensão decretada e a qual apenas cessa quando da habilitação do sucessor da pessoa falecida (cfr. artº 276º, nº1, do CPC).

Isto dito, e estando em causa mero incidente de substituição de uma das partes na relação substantiva em litígio [...], por sucessão, ou seja, a determinação daquele que assume a qualidade jurídica do falecido, manifesto é que o herdeiro habilitado do executado não passa, doravante e por via da habilitação, a responder pessoalmente pelos encargos da herança.
 
É que, neste conspecto, a regra que “vigora” é a de que, é a herança que responde pelas dívidas do falecido, tal como decorre do disposto no artigo 2068º do Código Civil, rezando de resto o artº 2071º do mesmo diploma legal [sob a epígrafe de responsabilidade do herdeiro], que, sendo a herança aceita a benefício de inventário, só respondem pelos encargos respectivos os bens inventariados, salvo se os credores provarem a existência de outros bens (nº 1), e, sendo a herança aceita pura e simplesmente, a responsabilidade pelos encargos também não excede o valor dos bens herdados, mas incumbe, neste caso, ao herdeiro provar que na herança não existem valores suficientes para cumprimento dos encargos (nº 2). 
 
Explicando [com a clareza e acessibilidade de raciocínio que a todos habituou] o Prof. José Alberto dos Reis (Ibidem, pág. 307) como entender/interpretar as disposições substantivas do CC referidas e de teor idêntico, e aludindo ao princípio da separação de patrimónios, exemplificava assim qual o regime aplicável: 
 
“Um indivíduo contrai dívidas; esse facto importa, como consequência necessária, que o seu património fica sujeito ao pagamento. Mas seria inadmissível que, por tais dívidas, viesse a responder um património alheio, o património de outra pessoa. 
 
Posto isto, suponhamos que o devedor morre sem ter satisfeito as dívidas; os herdeiros respondem pelo pagamento, desde que aceitem a herança, mas a responsabilidade só pode tornar-se efectiva sobre o património que estava afectado ao pagamento – o património do falecido : o património próprio e pessoal dos herdeiros não pode ser objecto de execução para pagamento das dívidas do autor da herança. (…) É claro que se a pessoa é executada na qualidade de herdeiro, a execução destina-se ao pagamento de dívidas do autor da herança.
 
O princípio da separação de patrimónios e o princípio de que o património de terceiro não pode ser objecto de execução impõem este regime: para pagamento das dívidas do autor da herança não podem penhorar-se os bens próprios do herdeiro, só podem penhorar-se os bens constitutivos do património hereditário, os bens que o herdeiro recebeu do autor da herança.
 
Se a penhora recaísse sobre o património próprio do herdeiro, ofender-se-ia o princípio que isenta o património de terceiro. Como titular do seu património pessoal, o herdeiro é terceiro no que respeita às responsabilidades contraídas pelo de cujus“. [...]

Sempre que, por nomeação do exequente, sejam penhorados bens do herdeiro na execução por dívida da herança, este poderá opor-se, requerendo o levantamento da penhora. Para que o levantamento possa ser ordenado, impõe, porém, a lei ao executado o cumprimento do ónus de indicar os bens da herança que tenha em seu poder.
 
Cumprido este ónus, se a herança foi aceite a benefício de inventário e o exequente não se opõe ao levantamento, com melhor prova, o tribunal defere o requerimento e a penhora é levantada - nº 2 do artº 827º.
 
Se a aceitação é pura e simples e o exequente se opõe ao levantamento da penhora nos bens que nomeou o executado tem que provar por embargos de terceiro que os bens penhorados não provieram da herança e que desta não restam mais do que os indicados - alíneas a) e b) do nº3, do artº 827º -, sem que o tribunal não ordena o levantamento da penhora realizada“.
 
O regime substantivo referido, encontrando ainda hoje correspondente enquadramento e total suporte na lei adjectiva em vigor, assim se compreende que disponha portanto o actual artº 744º, nºs 1 e 2, do CPC [sob a epígrafe de bens a penhorar na execução contra o herdeiro] que “na execução movida contra o herdeiro só podem penhorar-se os bens que ele tenha recebido do autor da herança“, e que “quando a penhora recaia sobre outros bens, o executado, indicando os bens da herança que tem em seu poder, pode requerer ao agente de execução o levantamento daquela, sendo o pedido atendido se, ouvido o exequente, este não se opuser” [sic, para a primeira parte da frase].
 
Aqui chegados, e em face de tudo o acabado de expor, tudo aponta portanto para que, prima facie, o despacho proferido pelo tribunal a quo [...] [que deferiu a requerida penhora de todas as contas bancárias/aplicações bancárias e salários dos executados/HABILITADOS] apenas seja compreensível à luz de alguma precipitação da Exmª juiz titular dos autos, e sabendo-se como se sabe que, desempenhando a “penhora” um “papel” determinante na acção executiva, consubstanciando a mesma um “acto judicial de apreensão dos bens do executado, que ficam à disposição do tribunal para o exequente ser pago por eles…” (Cfr. Ana Prata, in Dicionário Jurídico, Vol. I, 5.ª Edição, Almedina, 2008, p. 1035), não deva o subjacente despacho (quando existe) ser proferido de “ânimo leve”, isto é, sem que o juiz aprecie/julgue previamente da legalidade da penhora requerida.
 
E, proferido que foi o despacho - em 6/7/2016 - de deferimento de requerimento de penhora de todas as contas bancárias/aplicações bancárias dos executados/HABILITADOS, a questão que importa resolver, e a qual integra o objecto da apelação, é a de saber se, em face do disposto no artº 620º, do CPC [caso julgado formal], vedado estava ao tribunal a quo, e no despacho apelado [posterior, porque de 9/11/2016], determinar o levantamento imediato das penhoras de saldos bancários titulados pelos habilitados, que o mesmo é dizer, dar o dito pelo não dito.
 
Vejamos.
 
Como vimos supra, respondendo pelas dívidas hereditárias apenas os bens de herança, mas existindo despacho a ordenar a penhora de bens do seu património pessoal, pertinente é considerar [raciocínio este que faz a apelante ] que, caso o herdeiro habilitado do executado não impugne - v. g. através de recurso - tal despacho, a penhora, apesar de ilegal, fica prima facie definitivamente sujeita aos fins de execução, ou seja, a penhora ordenada e concretizada, como que se convalida na esfera jurídica dos executados, formando caso julgado formal e esgotando o poder jurisdicional naquela matéria.
 
Será assim?
 
Temos para nós que, não obstante e em abstracto algo congruente, não merece ainda assim e de todo o entendimento da apelante ser como tal acolhido, não podendo tal fundamento justificar a procedência da apelação. 
 
É que, neste conspecto, recorda-se que, “obrigando” o velho CPC (na versão anterior às alterações nele introduzidas pelo DECRETO-LEI N.º 329-A/95, DE 12 DE DEZEMBRO) a que todo e qualquer acto de penhora estivesse sujeito a prévio despacho judicial que o ordenasse [cfr. artº 838º, nº1, relativo à penhora de imóveis, mas aplicável, ex vi dos artigos 855º e 863º, à penhora doutras espécies de bens (...)], certo é que, logo com as alterações nele introduzidas pelo DECRETO-LEI N.º 329-A/95, estabeleceu-se um expediente de oposição à penhora mais expedido, sem necessidade portanto de o executado lançar mão da via recursória (até então o recurso de agravo, a subir após a realização da penhora, nos termos do artº 923º,nº1, alínea c)).
 
Na verdade, com o artº 863º-A, do CPC, e sendo penhorados bens do executado, passou doravante a permitir-se ao próprio executado opor-se à penhora - através de mero requerimento atravessado nos autos - e requerer o seu levantamento, desde que suscitando questões que não hajam sido expressamente apreciadas e decididas no despacho que a ordenou. [...]
 
A referida possibilidade de oposição incidental do executado a despacho determinativo de penhora, saindo reforçada com as alterações introduzidas no CPC com o DL nº 38/2003, de 8/3 [o qual , como é consabido, veio alargar a possibilidade de realização da penhora sem necessidade de prévio despacho judicial], manteve-se com o actual CPC, dispondo v. g. o seu artº 784º, nº 1, alínea c), que, penhorados bens pertencentes ao executado, pode este opor-se à penhora com fundamento na Incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência.
 
Em suma, actualmente, e em face do exposto, menos sentido faz sustentar-se - como o faz a apelante - que um despacho que ordena a penhora, não fundamentado e meramente tabelar como é o proferido pelo tribunal a quo a 6/7/2016, seja susceptível de formação de um efectivo caso julgado, porque em rigor não decide ele, concreta e fundamentadamente, acerca do mérito do pedido de penhora (...).
 
O entendimento acabado de aflorar [...] era já defendido pelo Professor J. A. dos Reis (In Processo de Execução, 1º, pág. 397), pois que, quando na presença de despacho de tarifa, de tabela a ordenar a penhora, podia o mesmo, quando ilegal, ser invalidado a simples requerimento do executado, apenas estando-lhe vedado neutralizar o despacho anteriormente proferido quando este último despacho estivesse redigido em termos de dever entender-se que a questão (da legalidade da penhora) foi vista e resolvida pelo juiz ao ordenar a penhora, caso em que - para o anular - caberia lançar mão do agravo.

Em conclusão, porque como vimos supra o despacho de 6/7/2016 que ordenou a penhora de contas bancárias dos executados/habilitados foi essencialmente tabelar, não tendo havido qualquer julgamento prévio acerca da legalidade da penhora requerida sobre contas bancárias dos executados/habilitados, prima facie não estava assim a Exmª Juiz a quo impedida, no despacho apelado (o de 9/11/2016), de anular a ordem de penhora de saldos bancários, determinando o levantamento das penhoras entretanto concretizadas.
 
Sucede que, como já aflorado supra, a forma - adjectiva - de o herdeiro executado contrariar uma penhora que tenha incidido [logo, concretizada, que não apenas ordenada, mas ainda não executada] recaído sobre bens que não recebeu do autor da herança, não os tendo herdado, é através do “incidente“ do actual artº 744º, do Código de Processo Civil.
 
É que, recorda-se, logo aquando das alterações introduzidas no Velho CPC pelo DL 329-A/95 ,de 12/12, e com a nova redacção do n.º 3 do então art.º 827 do CPC [tendo sido suprimida a referência aos embargos de terceiro como sendo o meio processual adequado através do qual o herdeiro do executado podia obter o levantamento da penhora que alegadamente tivesse recaído sobre bens que são seus e não da herança, opondo-se o exequente ao levantamento da penhor], seguro passou a ser que o incidente de oposição à penhora era doravante o meio adequado para o herdeiro/executado reagir contra penhora efectuada sobre bens não recebidos do autor da herança - que não os embargos de terceiro.
 
Acresce que, estando o incidente de embargos de terceiro apenas disponível para titular de direito que não seja parte na causa (cfr. actual artº 342º do CPC ), manifesto é que o herdeiro do executado, habilitado no processo nos termos dos art.ºs 351º e segs. do CPC, passa a ser parte no processo executivo, estando-lhe vedado lançar mão dos referidos embargos.
 
Isto dito, e como vimos já supra, “quando a penhora recaia sobre outros bens, o executado, indicando os bens da herança que tem em seu poder, pode requerer ao agente de execução o levantamento daquela, sendo o pedido atendido se, ouvido o exequente, este não se opuser” (cfr. artº 744º, nº 2, do CPC).
 
In casu, [...] da motivação de facto, e no âmbito do despacho proferido a 21/9/2016 - pronunciando-se sobre requerimento de levantamento de penhoras efectuadas atravessado nos autos em 25/7/2016 pelos executados/habilitados -, a Exmª Juiz titular dos autos configurou - e bem - o incidente pelos executados desencadeado como integrando ele a previsão do artº 744º, do CPC, tanto assim que, no final, determinou que fosse a exequente ouvida, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 744.° n.º 2 do CPC.
 
Já a exequente [...] veio - através de requerimento de 6/10/2016 -, insistir pela manutenção das penhoras já concretizadas, requerendo que “os valores já penhorados ao abrigo dos presentes autos, sejam transferidos à ordem do tribunal”, ou seja, veio opor-se ao levantamento da penhora.
 
Ora, em face da oposição da exequente/apelante, reza o nº 3 do artº 744º, do CPC, que:
 
“3- Opondo-se o exequente ao levantamento da penhora, o executado só pode obtê-lo, tendo a herança sido aceite pura e simplesmente, desde que alegue e prove perante o juiz:
 
a) Que os bens penhorados não provieram da herança;
 
b) Que não recebeu da herança mais bens do que aqueles que indicou ou, se recebeu mais, que os outros foram todos aplicados em solver encargos dela.”
 
Ou seja, em rigor, a Exmª juiz a quo apenas poderia enveredar pela prolação de uma decisão a ordenar o levantamento da penhora às contas bancárias dos executados se, em sede de decisão do incidente de oposição à penhora subsumível à previsão do nº 2 do artº 744º do CPC, viesse a concluir pela procedência do mesmo, de resto em consonância com o disposto no artº 785º, n º 6, do CPC [aplicável por analogia, rezando ele que “A procedência da oposição à penhora determina que o agente de execução proceda ao levantamento desta e ao cancelamento de eventuais registos“].
 
Porém, decidindo - pelo menos implicitamente - pela procedência do incidente pelos executados despoletado, tudo indica que o tenha feito de forma “ilegal”, no essencial ancorando tal decisão em fundamentos que, se pertinentes para indeferir o requerimento da apelante de 6 de Junho de 2016 [...], são já desajustados para conduzir à procedência do incidente do artº 744º do CPC.
 
Senão, vejamos.
 
No incidente do artº do artº 744º, do CPC, e tendo o executado/habilitado aceite a herança pura e simplesmente [o que tudo aponta ter sido o caso dos autos, tanto assim que não alegaram e comprovaram - documentalmente - os executados a existência de um qualquer inventário], era sobre os executados/habilitados que incumbia alegar e provar, como vimos supra, que os bens penhorados não provieram da herança.
 
Ou seja, ao contrário do entendimento do tribunal a quo inserto no despacho apelado, não era sobre a exequente que incumbia alegar e provar que as quantias depositadas eram provenientes da venda pelos executados de bens móveis pertencentes à herança, antes era ónus dos executados alegar e provar que os bens penhorados não provieram da herança.
 
Porque ao incidente do artº 744º, do CPC é de aplicar o disposto nos artºs 293º a 295º do CPC [aplicáveis ex vi do artº 292º do CPC, e nº 2 do artº 785º do CPC, este último aplicável por analogia], incumbia desde logo aos executados indicar e ou requerer os meios de prova, o que in casu não se verificou.
 
Logo, nada justificando que pudesse o tribunal a quo concluir estar provado “Que os bens penhorados não provieram da herança ou que, os bens recebidos foram todos aplicados em solver encargos dela”, não podia o incidente de oposição pelos executados despoletado ter sido julgado procedente e, inevitavelmente, vedado estava ao tribunal a quo ter determinado “o levantamento imediato das penhoras de saldos bancários titulados pelos habilitados”.

A procedência da apelação, em suma, ainda que por razões diversas das invocadas, é forçosa."
 
[MTS]