"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/01/2018

Jurisprudência (775)


Princípio da dualidade das partes;
parte; falecimento; habilitação

1. O sumário de RL 21/9/2017 (2467-13.8TBCSC.L1-8) é o seguinte:

– Falecendo o autor da acção em que é Ré a sua mãe, a habilitação desta para com ela prosseguir a causa não é possível, já que passaria a ser simultaneamente Autora e Ré na mesma acção.
 
– Mas nada impede a habilitação do pai, a título incidental, para substituir o falecido na posição activa do litígio.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Está em causa apurar se é admissível a habilitação de herdeiros para ocuparem a posição do falecido autor, quando um de tais herdeiros é já Réu na mesma acção.

O Mº juiz a quo entendeu que não, já que a mesma pessoa não poderá ocupar simultaneamente as posições de Autor e Ré na mesma acção.

Este ponto não se discute, dada a sua evidência. Contudo, a questão não se esgota aqui.

Como se refere no acórdão desta Relação de Lisboa de 02/11/2010, mencionado na apelação, “a habilitação-incidental tem como desiderato promover a substituição da parte primitiva pelo sucessor na situação jurídica litigiosa, ocorrendo uma modificação subjectiva da instância (art. 270°, a), do C.P.C.), mediante a legitimação sucessiva do sucessor, enquanto tal e para a causa, ficando o seu efeito limitado a esta última, pois que o sucessor é habilitado não erga omnes, mas perante o litigante com o qual pleiteava o falecido.
 
“Importante, porém, é não olvidar nunca que a substituição ( modificação subjectiva da instância) de uma das partes opera-se no âmbito de uma relação jurídica processual complexa, que é independente da relação material e que se estabelece sempre entre determinados sujeitos [ as partes, a saber, autor/s e réu/s) , tendo um objecto (o pedido) e uma causa de pedir (...). 
 
Postas estas breves e sintéticas considerações, manifestamente, não é de conceber que, precisamente porque o requerido do incidente de habilitação "B" ,ocupa o lugar de réu na acção principal, possa agora e através da sua habilitação e colocação no lugar da autora/falecida da acção principal, passar a ocupar na referida relação jurídica processual, concomitantemente e também, o lugar de autor.
 
Ou seja, no âmbito de uma relação iurídica processual, não é concebível que uma parte ocupe, em simultâneo, dois dos três elementos subjectivos ( cada uma das partes e o Estado, sendo este representado pelo Juiz, e no exercício duma função de soberania, a função jurisdicional) que uma tal relação jurídica comporta e integra ( a de autor e de réu ). 
 
Que assim é decidiu já o STJ no Ac, de 2/6/1964, in BMJ, 138, pág. 298, ao considerar que" falecida a autora de acção intentada contra 2 dos seus filhos, não podem ser habilitados para, em seu lugar ocuparem a posição de autores, os seus filhos que nela figuram como réus, mas apenas os restantes ". 

Na mesma e douta decisão, a coadjuvar a apontada conclusão, considerou-se, e bem, que a habilitação incidental respeita tão só à transmissão da posição jurídica litigiosa, a qual não tem que coincidir com a transmissão universal dos direitos do falecido.”

Nada obsta a que o habilitando (pai do falecido autor) que não ocupava qualquer posição na causa possa vir a ser habilitado, sucedendo na posição do falecido autor, para com ele prosseguir o processo os seus termos. A Ré, mãe do Autor, é que não poderá ser habilitada já que tal a colocaria simultaneamente como Autora e Ré do mesmo processo.

Não se justifica pois que se declare, como no despacho recorrido, a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, pelo menos relativamente ao ora recorrente H...

Por outro lado, nada obsta a que um dos sucessores seja habilitado para ocupar a posição processual da parte falecida, desacompanhado do outro sucessor. Isto porque a legitimidade do sucessor se afere nos termos da relação material controvertida como a configurou o falecido autor.

Refere a este propósito Abílio Neto, “Código de Processo Civil Anotado” pág. 507, que “esta forma de habilitação (que se distingue da habilitação principal e da habilitação legitimidade) visa colocar o sucessor no lugar que o falecido ou o transmitente ocupavam em processo pendente. Daí que a sentença de habilitação não disponha de alcance geral, limitando-se os seus efeitos ao processo em que se originou o incidente: o sucessor habilitou-se ou foi habilitado, não erga omnes, mas apenas perante o litigante com o qual pleiteava o falecido ou o cedente”.

Também Lebre de Freitas segue esta mesma perspectiva, quando refere no seu “Código de Processo Civil Anotado” 1º, pág. 635:

“O ac. do STJ de 2.6.64, BMJ, 138, p. 298, julgou que, falecida a autora da acção intentada contra dois dos seus filhos, não podem ser habilitados, para em seu lugar, ocuparem a posição de autores, os filhos que nela figuram como réus, mas apenas os restantes.

“Baseou-se a decisão em que habilitação incidental respeita tão-só à transmissão da posição jurídica litigiosa, a qual não tem de coincidir com a transmissão universal dos direitos do falecido, a que respeita a acção autónoma de habilitação”.

No caso estamos perante a habilitação incidental, por falecimento de uma das partes no decurso da causa, pelo que nada obsta à mesma.

Contudo, a recorrida adianta um último argumento (que, note-se, nunca foi mencionado na decisão recorrida). Alega que “dado o carácter pessoal da doação, não é possível a qualquer parte substituir-se ao beneficiário da doação em caso de falecimento do mesmo, porquanto a própria natureza da doação pressupõe um carácter intransmissível dos direitos em causa”.

Cita como exemplo, o art. 949º nº 1 do Código Civil. Este preceito contudo, nada tem a ver com a transmissão para os sucessores do falecido donatário, mas com a determinação deste ou do objecto da doação efectuada por mandato.

No caso dos autos, o falecido autor arrogava-se donatário de uma avó, dirigindo a acção contra a sua mãe, imputando-lhe ter-se locupletado com os bens doados.

Discordamos da tese da recorrida de que os bens doados têm um carácter intransmissível.

Uma vez que integrem o património do donatário, os bens doados são transmissíveis por morte aos seus herdeiros, como decorre de várias disposições legais, como por exemplo o art. 965º do Código Civil no tocante às cláusulas modais inseridas no contrato de doação."

[MTS]