Audiência prévia; nulidade processual;
gestão processual
1. O sumário de RP 27/9/2017 (136/16.6T8MAI-A.P1) é o seguinte:
I - O art. 591.º do CPC estabelece a regra: realização da audiência prévia; os artigos seguintes ocupam-se das excepções: o art. 592.º dos casos em que a audiência prévia não tem lugar, o art. 593.º dos casos em que a audiência prévia pode ser dispensada.
II - Quando a acção houver de prosseguir (i. é., não deva findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados) e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa (ou apreciar excepção dilatória que não tenha sido debatida nos articulados ou que vá julgar improcedente) deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento.
III - A não realização da audiência prévia nos casos em que a mesma tem lugar e não pode ser dispensada gera uma nulidade processual, não obstando a isso a circunstância de previamente à decisão o juiz ter anunciado às partes que se julgava em condições de decidir de mérito.
IV - Mesmo que se admita que se as questões a decidir forem muito simples e a decisão sobre elas for pacífica na jurisprudência e na doutrina, o juiz poderá, no uso do poder de simplificação e agilização processual e adequação formal, não realizar a audiência prévia, a decisão de não a realizar deverá ser fundamentada e precedida do convite prévio às partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de o fazer e, querendo, alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência se esta tivesse lugar.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Nos termos do artigo 591.º do Código de Processo Civil, findos os articulados ou após as diligências ordenadas no despacho pré-saneador se a ele houver lugar, é convocada audiência prévia destinada a algum ou alguns dos fins seguintes: a) realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º; b) facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; c) discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate; d) proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º; e) determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º; f) proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes; g) programar, após audição dos mandatários, os actos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respectivas datas.
Este preceito legal estabelece a regra: realização da audiência prévia. Os preceitos seguintes ocupam-se das excepções: o artigo 592.º da definição dos casos em que pura e simplesmente a audiência prévia não tem lugar, o artigo 593.º da definição dos casos em que a audiência prévia pode ser dispensada.
A audiência prévia não se realiza (artigo 592.º) sempre que a acção não tenha sido contestada mas a revelia seja inoperante e/ou o processo deva findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados. Nestes casos, é a própria lei processual que não prevê a realização da audiência prévia pelo que a mesma não tem de ser dispensada por despacho.
Em todas as demais situações a lei prevê a audiência prévia, pelo que, no respeito pelo princípio da legalidade dos actos processuais, em regra a mesma deve ser realizada só podendo deixar de o ser nos casos em que a própria lei permite a sua dispensa (artigo 593.º).
A lei processual apenas autoriza o juiz a dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e, a realizar-se, a audiência prévia só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º.
A forma expressa e taxativa como estas disposições estão redigidas permite concluir com segurança que quando a acção houver de prosseguir(isto é, não deva findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados) e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa (ou apreciar excepção dilatória que não tenha sido debatida nos articulados ou que vá julgar improcedente) deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento. É o que resulta claro da não inclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º no elenco das situações para que remete o n.º 1 do artigo 593.º e da relação necessária entre o artigo 592.º e o artigo 593.º.
Preside a esta opção a intenção de facultar às partes a última oportunidade de exporem os seus argumentos para convencer o juiz sobre a solução de mérito a proferir, tendo o legislador optado pela solução de que isso se processe em sede de audiência prévia e, portanto, de forma oral através da discussão entre os intervenientes. Esta última oportunidade encontra-se, por exemplo, nas acções não contestadas em que a revelia é operante, caso em que não obstante o réu não tenha apresentado contestação lhe é permitido apresentar alegações, nessa ocasião por escrito (artigo 567.º).
Nessa medida, o despacho proferido nos autos após a realização de diligências ordenadas ao abrigo do n.º 2 do artigo 590.º do Código de Processo Civil e imediatamente antes da sentença, no qual a Mma. Juíza a quo dispensou a realização da audiência prévia é afinal um despacho ilegal por não estar verificada nenhuma das situações em que lhe era legalmente permitido dispensar a realização desse acto processual.
Não impede essa conclusão a afirmação constante do despacho de que as partes foram alertadas previamente do «propósito manifestado pelo tribunal de imediato conhecimento do mérito da causa». São aspectos distintos a intenção de conhecer de imediato do mérito e o acto em que esse conhecimento tem lugar. Se a lei permite expressamente que se conheça imediatamente do mérito na própria audiência prévia, o anúncio espúrio da intenção não pressupõe necessariamente a afirmação do local e/ou acto em que a intenção vai ser concretizada, isto é, que o vá ser na audiência prévia ou fora desta.
Mais relevante que isso é a circunstância de a lei não permitir ao juiz que dispense a realização da audiência nos casos previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º do Código de Processo Civil ou, tão-pouco, que possa entender fazê-lo no uso de um poder discricionário.
Pode questionar-se se, não obstante, o juiz pode dispensar a realização da audiência, fazendo uso já não um poder discricionário, como aqui teve lugar de forma ilegal, mas o poder de gestão processual na dimensão do poder de simplificação e agilização processual (artigos 6.º e 547.º).
Temos sérias reservas sobre essa possibilidade. Com efeito, estamos perante uma situação em que o legislador regulou de forma pensada e pormenorizada a tramitação processual, estabelecendo diferenças entre os actos a praticar consoante a situação verificada e sopesando de forma expressa o caso de o passo que se segue ser apenas o do conhecimento do mérito. Acresce que a solução legal de impor a realização da audiência possui, como vimos já, serve o objectivo coerente e justificado de levar às últimas consequências o princípio do contraditório, explorando as virtualidades da discussão oral entre os intervenientes dos argumentos pelos quais a decisão deve ser uma ou outra, sendo difícil de conceber um processo equitativo que prescinda dessa discussão oral sem, ao menos, a substituir pela possibilidade de apresentação de alegações escritas.
Podemos, contudo, aceitar que em casos limite, quando as questões a decidir forem muito simples e a decisão sobre as mesmas for pacífica na jurisprudência e na doutrina, essa preocupação do legislador possa não fazer sentido e o juiz possa, no uso do seu poder de simplificação e agilização processual e adequação formal proferir a decisão por escrito sem realizar a audiência prévia.
Mesmo nesses casos, entendemos que a decisão de prescindir desse acto processual prescrito na lei deve ser fundamentada e precedida não da manifestação da intenção de o fazer, mas, sobretudo, do convite prévio às partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de o fazer e da permissão às partes de alegar por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência se esta tivesse lugar.
O caso dos autos não se enquadra claramente nessa hipótese porque nem as questões a decidir são simples, nem têm obtido uma resposta consensual na doutrina e da jurisprudência, nem o despacho foi fundamentado no exercício desse poder do juiz, nem, por fim, as partes foram previamente auscultadas sobre a possibilidade de não se realizar a audiência prévia.
Temos assim que foi cometida nos autos uma irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa e se converte numa nulidade processual (artigo 196.º do Código de Processo Civil).
Isto mesmo foi decidido no Acórdão desta secção da Relação do Porto de 24-09-2015, em que interviemos como 1.º Adjunto, proferido no processo n.º 128/14.0T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt, e do qual passamos a respigar a seguinte fundamentação complementar:
«Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII pode extrair-se: “A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas acções não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas acções que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados.
No que respeita aos seus fins, a audiência prévia tem como objecto: (i) a tentativa de conciliação das partes; (ii) o exercício de contraditório, sob o primado da oralidade, relativamente às matérias a decidir no despacho saneador que as partes não tenham tido a oportunidade de discutir nos articulados; (iii) o debate oral, destinado a suprir eventuais insuficiências ou imprecisões na factualidade alegada e que hajam passado o crivo do despacho pré-saneador; (iv) a prolação de despacho saneador, apreciando excepções dilatórias e conhecendo imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; (v) a prolação, após debate, de despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova”.
[MTS]