"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/01/2018

Jurisprudência (770)


Matéria de facto; impugnação;
poderes da Relação


I. O sumário de STJ 7/9/2017 (959/09.2TVLSB.L1.S1) é o seguinte:

1. É hoje jurisprudência corrente, mormente do STJ, que a reapreciação, por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.

2. No âmbito dessa apreciação, dispõe o Tribunal da Relação de margem suficiente para, com base na prova produzida, em função do que for alegado pelo impugnante e pela parte contrária, bem como da fundamentação do tribunal da 1.ª instância, ajustar o nível de argumentação probatória de modo a revelar os fatores decisivos da reapreciação empreendida.

3. Todavia, a análise crítica da prova a que se refere o n.º 4 do artigo 607.º do CPC, mormente por parte do Tribunal da Relação, não significa que tenham de ser versados ou rebatidos, ponto por ponto, todos os argumentos do impugnante nem que tenha de ser efetuada uma argumentação exaustiva ou de pormenor de todo o material probatório. Afigura-se bastar que dessa análise se destaquem ou especifiquem os fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do tribunal.

4. Também nada obsta a que o tribunal de recurso secunde ou corrobore a fundamentação dada pela 1.ª instância, desde que esta se revele sólida ou convincente à luz da prova auditada e não se mostre fragilizada pela argumentação probatória do impugnante, sustentada em elementos concretos que defluam da prova produzida, em termos de caracterizar minimamente o erro de julgamento invocado ou que, como se refere no artigo 640.º, n.º 1, aliena b), do CPC, imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida.

5. O nosso regime de sindicância da decisão de facto pela 2.ª instância tem em vista não um segundo julgamento latitudinário da causa, mas sim a reapreciação dos juízos de facto parcelares impugnados, na perspetiva de erros de julgamento específicos, o que requer, por banda do impugnante, uma argumentação probatória que, no limite, os configure.

6. No caso vertente, o Tribunal da Relação atentou na motivação dada pelo tribunal da 1.ª instância a cada uma das respostas impugnadas, contrapondo-lhe o alegado pelos Recorrentes no sentido da pretendida alteração, considerando que, face à audição da prova, aquela motivação tinha suficiente sustento na prova produzida ali referenciada.

7. Por outro lado, as alegações dos Recorrentes em relação a cada uma dessas respostas, em parte de pendor conclusivo, não contêm elementos críticos que denotem fragilidade da ponderação objetivada pelo tribunal da 1.ª instância, em termos de exigir fundamentação detalhada de rebate.

8. Não se encontram razões para concluir que o tribunal
a quo, quer em face dos contornos da impugnação de facto traçados pelos Recorrentes, quer atenta a sua margem de ponderação e o relevo dos factos impugnados para a decisão da causa, no quadro da demais factualidade dada como provada e não provada, tenha incorrido em violação da disciplina processual na reapreciação da prova, mormente em sede do normativo constitucional e dos normativos legais invocados. 

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
 
"[...] o tribunal a quo expendeu a seguinte fundamentação:

«De acordo com o disposto no art.° 607.°, n.° 5 do NCPC (aplicável aos autos ex vi art.° 7.º, n.° l da Lei 41/2013, de 26.06) continua a vigorar no nosso ordenamento jurídico o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com convicção firmada acerca de cada facto controvertido.

Relativamente a toda esta matéria de facto impugnada, importa dizer que, ouvida que foi a gravação dos respectivos depoimentos prestados em audiência, assim como examinados os documentos juntos aos autos, atenta a fundamentação que o tribunal a quo adiantou para as respostas dadas à matéria de facto dada como não provada e agora impugnada, nenhuma alteração se impõe efectuar nesta sede de recurso.

Com efeito, a fundamentação adiantada tem eco nas declarações prestadas pelas testemunhas em sede de julgamento e referidas na sentença recorrida, como decorre da respectiva audição de tais declarações.

Ora, a respeito da maior ou menor credibilidade que o tribunal a quo deu ou deveria ter dado às testemunha JJ, "cujo o depoimento não mereceu credibilidade por parte do Tribunal, não só pelo seu manifesto envolvimento em toda a situação e interesse na mesma, como também por ter sido um depoimento vago, contraditório, incongruente e inverosímil face, nomeadamente à escritura celebrada no dia 23.12.2005", impõe-se dizer que a apreciação da prova no tribunal de recurso envolve sempre um risco de valoração de grau mais elevado que na 1.ª instância, onde são observados os princípios da imediação, da concentração e da oralidade.

Por outro lado, no domínio da prova testemunhal, vigora o princípio da livre apreciação das provas - cfr. art° 396° do CC - segundo a convicção que o julgador tenha formado acerca de cada facto, de acordo com o disposto no art° 607°, n° 5 do NCPC (anterior art° 655.°, n.° l do CPC), sem embargo, naturalmente, do dever de as analisar criticamente e especificar os fundamentos decisivos para a convicção formulada - cfr. art° 607°, n° 4, do NCPC (anterior art° 653°, n° 2, do CPC).

Como se tem entendido, a reapreciação, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, da decisão da 1.ª instância quanto à matéria de facto deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessárias, face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova, sendo inúmeros os factores relevantes na apreciação da credibilidade de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto directo com os depoentes na audiência.

Não obstante a reapreciação da matéria de facto, no que ao tribunal de recurso se refere, esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação – à excepção da prova vinculada – no processo de formação da sua convicção deverá ter-se em conta que dos referidos princípios decorrem aspectos de relevância indiscutível - reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões - na valoração dos depoimentos pessoais que melhor são perceptíveis pela 1.ª instância.

Ao tribunal de recurso caberá, sem esquecer tais limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova produzida e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimentos comuns, não bastando para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.

A decisão factual do tribunal baseia-se numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, pelo que a fonte de tal convicção - obtida com beneficio da imediação e oralidade -apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

O que se não verifica no caso dos autos, onde a prova dos factos essenciais à decisão da causa, alegados pelos ora recorrentes, e sobre quem recaía o ónus da sua prova (cfr. art° 342°, n° 2 do CC) - a procedência da presente acção implicava, como condição prévia essencial, que os recorrentes fizessem prova da existência de abuso de representação por parte de JJ na venda do imóvel dos autos à recorrida CC, S.A. e da existência de simulação na referida venda - não se mostra produzida, não permitindo os elementos de prova agora apreciados impor uma decisão diversa da alcançada pelo tribunal a quo»

Ora, a disciplina processual no respeitante à reapreciação, por parte do Tribunal da Relação, da decisão de facto impugnada comporta numa das suas vertentes fundamentais – a que aqui releva – os parâmetros de investigação e análise crítica da prova, em conformidade com o disposto no artigo 662.º, n.º 1, e nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 5, aplicável, com as necessárias adaptações, aos acórdãos da Relação por via do artigo 663.º, n.º 2, do CPC.

Neste domínio, incumbe ao tribunal de revista o controlo dos parâmetros formais ou balizadores a observar pela Relação nos termos dos citados normativos.

Assim, no que respeita à reapreciação da decisão de facto, compete ao tribunal de revista ajuizar se o Tribunal da Relação observou o método de análise crítica da prova prescrito no n.º 4 do indicado artigo 607.º, mas já não imiscuir-se na valoração da prova feita, segundo o critério da livre e prudente convicção do julgador, genericamente editado no n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

É hoje jurisprudência seguida por este Supremo Tribunal que a reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte do tribunal de 2.ª instância, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.

No âmbito dessa apreciação, dispõe o Tribunal da Relação de margem suficiente para, com base na prova produzida, em função do que for alegado pelo impugnante e pela parte contrária, bem como da fundamentação do tribunal da 1.ª instância, ajustar o nível de argumentação probatória de modo a revelar os fatores decisivos da reapreciação empreendida.

Todavia, a análise crítica da prova a que se refere o n.º 4 do artigo 607.º do CPC, mormente por parte do Tribunal da Relação, não significa que tenham de ser versados ou rebatidos, ponto por ponto, todos os argumentos do impugnante nem que tenha de ser efetuada uma argumentação exaustiva ou de pormenor de todo o material probatório. Afigura-se bastar que dessa análise se destaquem ou especifiquem os fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do tribunal.

Também nada obsta a que o tribunal de recurso secunde ou corrobore a fundamentação dada pela 1.ª instância, desde que esta se revele sólida ou convincente à luz da prova auditada e não se mostre fragilizada pela argumentação probatória do impugnante, sustentada em elementos concretos que defluam da prova produzida, em termos de caracterizar minimamente o erro de julgamento invocado ou que, como se refere no artigo 640.º, n.º 1, aliena b), do CPC, imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida.

Com efeito, o nosso regime de sindicância da decisão de facto pela 2.ª instância tem em vista não um segundo julgamento latitudinário da causa, mas sim a reapreciação dos juízos de facto parcelares impugnados, na perspetiva de erros de julgamento específicos, o que requer, por banda do impugnante, uma argumentação probatória que, no limite, os configure.

No caso dos autos, o Tribunal da Relação atentou na motivação dada pelo tribunal da 1.ª instância a cada uma das respostas impugnadas, contrapondo-lhe o alegado pelos Recorrentes no sentido da pretendida alteração, considerando que, face à audição da prova, aquela motivação tinha suficiente sustento na prova produzida e ali referenciada.

Por outro lado, as alegações dos Recorrentes em relação a cada uma dessas respostas, em parte de pendor conclusivo, não contêm elementos críticos que denotem fragilidade da ponderação objetivada pelo tribunal da 1.ª instância, em termos de exigir fundamentação detalhada de rebate.

Assim, no domínio do artigo 8.º da base instrutória, trata-se de saber se os promitentes-vendedores, ainda no decurso do mês de julho de 2005, diligenciaram junto da BANCO LL a concessão de um crédito no valor de € 300.000,00, o qual teria como garantia patrimonial o penhor de um depósito bancário de igual montante.

O tribunal da 1.ª instância considerou que não foi apresentada qualquer prova, nomeadamente documental de tais diligências junto das identificadas entidades bancárias, sendo que a testemunha JJ se limitou a proferir afirmações sobre o assunto sem que as mesmas estivessem sustentadas documentalmente, o que, manifestamente, se mostrou insuficiente para considerar como provados tais factos.

Sustentam, no entanto, os Recorrentes que tal facto deve ser dado como provado, porque, tal como resulta da matéria dada como provada no ponto 12, a integração da resposta dada pela BANCO LL, conforme doc. n.º 4 petição inicial - dirigido a KK e por este assinado) com o depoimento de KK (Pai) no registo 20150305135956 1273919 871037 permite concluir que, a 16/08/2015, foi autorizada e aprovada por aquela instituição bancária um empréstimo de € 300.000,00, tendo por base um penhor de depósito bancário.

É certo que da resposta ao artigo 9.º da base instrutória, vertida no ponto 1.12 dos factos provados acima consignados consta que:

Após análise preliminar da referida instituição de crédito, a 16 de agosto de 2005, foi rececionada por KK a comunicação da BANCO LL, dando conta da autorização e deferimento do empréstimo solicitado com expressa menção das condições financeiras e contratuais (doc. de fls. 79).

Tal resposta foi fundada no teor do documento de fls. 79 em conjugação com o depoimento da testemunha KK que confirmou a receção do referido documento e a aposição da sua assinatura no mesmo.

Não obstante isso, o tribunal da 1.ª instância considerou que não fora apresentada qualquer prova, nomeadamente documental – desmerecendo, nesse sentido, o depoimento de JJ –, que fosse suficiente para concluir que os promitentes-vendedores tivessem, ainda no decurso de julho de 2005, diligenciado junto da BANCO LL por tal concessão, entendimento esse que foi sufragado pela Relação com base na audição da prova.

De resto, os Recorrentes não explicitam sequer em que termos é que o depoimento da testemunha KK (pai) permite a conclusão que pretendem, de modo a justificar maior esforço argumentativo pelo tribunal de recurso.

Seja como for, não se divisa que a pretendida resposta positiva ao artigo 8.º da base instrutória, tal como a resposta positiva dada ao artigo 9.º, assuma, no vasto quadro da demais factualidade provada e não provada, aqui não impugnada, relevo no plano da alegada simulação do contrato de compra e venda celebrado entre os A.A. e a 1.ª R. em 23/12/2005.

Em sede das respostas aos artigos 17.º, 18.º e 19.º da base instrutória, os Recorrentes limitam-se à mera conclusão de que a pretendida resposta positiva a tal matéria é corroborada pelo depoimento de KK (pai), sem explicitarem qualquer argumento probatório extraído deste depoimento de modo a procurar desvirtuar ou contrariar a fundamentação da 1.ª instância, também sufragada pela Relação com base na audição da prova. Perante a falta de qualquer argumento probatório nesse sentido, não cremos que fosse exigível ao tribunal a quo empreender outro esforço de análise crítica. [...]

O tribunal da 1.ª instância considerou que «a única prova apresentada sobre as relações pessoais, profissionais e negociais estabelecidas entre JJ e DD, foi o depoimento da testemunha JJ, o qual não mereceu credibilidade por parte do Tribunal, não só pelo seu manifesto envolvimento em toda a situação e interesse na mesma, como também por ter sido um depoimento vago, contraditório, incongruente e inverosímil face, nomeadamente à escritura celebrada no dia 23.12.2005. (...)».

Tal entendimento foi sufragado pela Relação com base na audição da prova, não pondo em causa aqueles dados objetivos de aferição de credibilidade, nomeadamente face às considerações feitas pelos Recorrentes sobre esse depoimento.

E também aqui não se afigura que a resposta pretendida releve, no quadro dos demais factos dados como provados e não provados, para efeitos de comprovar a alegada simulação do contrato de compra e venda celebrado entre os A.A. e a 1.ª R. em 23/12/2005.

Em suma, não se encontram razões para concluir que o tribunal a quo, quer em face dos contornos da impugnação de facto traçados pelos Recorrentes, quer atenta a sua margem de ponderação e o relevo dos factos impugnados para a decisão da causa, no quadro da demais factualidade dada como provada e não provada, tenha incorrido em violação da disciplina processual na reapreciação da prova, mormente em sede do normativo constitucional e dos normativos legais invocados pelos Recorrentes."


[MTS]