"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/09/2018

Informação (236)


Processo Civil Europeu

O sítio www.lynxlex.com fornece informações interessantes e úteis sobre a jurisprudência do TJ e da Cour de cassation na área do Direito Internacional Privado e do Processo Civil Europeu.


28/09/2018

Jurisprudência 2018 (82)


Recurso; valor da sucumbência;
revista excepcional; admissibilidade


1. O sumário de STJ 22/2/2018 (2219/13.5T2SVR.P1.S1) é o seguinte:

I - O valor da sucumbência relevante para a admissibilidade de recurso deve ser aferido, em caso de recurso para o Supremo, pela diferença entre o valor fixado no acórdão da Relação e o fixado na sentença de 1ª instância (se este não foi oportunamente impugnado pela parte que pretende interpor recurso de revista);

II - O acesso à revista excecional não prescinde da verificação dos pressupostos gerais de admissibilidade do recurso, designadamente os relacionados com a natureza e conteúdo da decisão (art.º. 671º), valor do processo ou da sucumbência (art.º. 629º, nº1), legitimidade (art.º. 631º) e tempestividade (art.º. 638º).

III - Para se determinar se é, no caso, de admitir a revista excecional, deve começar por se apurar se, no caso concreto, estão preenchidos os requisitos gerais de admissibilidade da revista, rejeitando logo o recurso, sem necessidade de apreciação dos requisitos específicos, se se concluir que não se mostram verificados tais requisitos.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Estabelece-se no art. 629.º, n.º 1, do CPC que “o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.”.

A exigência complementar em razão da sucumbência foi introduzida no Código de Processo Civil pelo DL nº 242/85, de 9 de Julho e teve em vista restringir as questões que devem ser submetidas à apreciação dos tribunais superiores, evitando que sejam confrontados com decisões em processos, cujo valor ou sucumbência não exceda determinado montante.

A lei consagra, assim, um regime misto quanto à admissibilidade do recurso, fazendo depender a recorribilidade, cumulativamente, do valor da causa (alçada) e da proporção do decaimento (sucumbência), a qual deve ser superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão impugnada.

Nesta conformidade, uma vez que o valor da alçada da Relação está fixado em EUR 30.000,00 (cf. DL 303/2007, de 24 de Agosto e art.º. 44º, da Lei nº 61/13, de 26 de Agosto), os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça estão limitados, em regra, às decisões proferidas em processos cujo valor seja igual ou superior a EUR 30.000,01 e em que o recorrente tenha ficado vencido em valor igual ou superior a EUR 15.000,01.

Importa, porém, ter presente que, para efeitos de admissibilidade da revista, segundo a tese que fez vencimento no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 10/15, de 14.5.2015, DR, I Série, 123, de 26.6.2015, cuja doutrina subscrevemos sem reservas, “a parte que aceita tacitamente, não recorrendo, uma condenação, em 1ª instância não pode, perante a procedência, total ou parcial, na Relação, do recurso interposto pela parte contrária contra aquela decisão, interpor recurso de revista deste acórdão, invocando, como sucumbência, a diferença entre o valor do pedido inicial e o valor fixado na 2ª instância (como se a sucumbência na 1ª instância não tivesse, para ela, transitado em julgado).”

Em suma:

O valor da sucumbência relevante para a admissibilidade de recurso deve ser aferido, em caso de recurso para o Supremo, pela diferença entre o valor fixado no acórdão da Relação e o fixado na sentença de 1ª instância (se este não foi oportunamente impugnado pela parte que pretende interpor recurso de revista)."

[MTS]


27/09/2018

Jurisprudência 2018 (81)


Penhora de créditos;
crédito futuro


1. O sumário de STJ 22/2/2018 (329/14.0TBPSR-E.E1.S1) é o seguinte:

I – Se as partes, depois de terem dado um contrato promessa de permuta como resolvido, acordam em celebrar um aditamento ao mesmo e uma escritura de retificação convertendo-o em contrato promessa de compra e venda, tal significa a sua repristinação.

II – A penhora de um crédito detido pela executada em consequência da celebração do contrato prometido a que diz respeito o contrato promessa de alienação do prédio é uma penhora de um crédito futuro, determinado quanto ao seu objeto e sujeitos.

III – Perante a notificação de penhora de um direito, o terceiro pode assumir uma das seguintes atitudes:

a. reconhecer a existência do crédito, tacitamente – nada dizendo – ou de modo expresso;

b. reconhecer a existência do crédito, mas declarar que a sua exigibilidade depende de prestação do executado;

c. impugnar a existência do crédito;

d. fazer qualquer outra declaração sobre o crédito penhorado que interesse à execução.

IV – Respondendo o terceiro notificado nos seguintes termos
“… cumpre-nos informar que na presente data não somos detentores de nenhum crédito à executada, o contrato que celebramos com a mesma encontra-se em fase de reapreciação visto que o objeto do mesmo se encontrava onerado com um Contrato de Arrendamento, sendo que tal facto era desconhecido da promitente compradora. Nesta fase encontramo-nos a resolver a questão com a executada. O cumprimento da nossa prestação ainda não é devido. Logo que a questão for resolvida viremos posteriormente informar V. Exa.”, fica reconhecida a existência do contrato promessa e, bem assim, que da projetada celebração do contrato definitivo emergirá para a executada um crédito equivalente à prestação que por si lhe será devida.

V – Esse reconhecimento serve de base à formação dum título executivo em que se pode fundar uma execução contra o terceiro devedor.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

Discorda a recorrente da afirmada inexistência de título executivo, baseada no entendimento – adotado no acórdão -, segundo o qual, na resposta dada pela “CC” na sequência da notificação que lhe foi feita nos termos do art. 856º, nº 1, esta não reconheceu a existência do respetivo crédito, sustentando que, diversamente, “na carta de 17/05/2010, em resposta à notificação para penhora de créditos, a Recorrida não nega a existência do crédito, afirmando apenas que o mesmo, à data, não estava vencido e não estaria eventualmente determinado, mas que, logo que o vencimento ocorresse, se comprometia a informar, de imediato, o AE.” (conclusão 1ª.).

Dissentem, pois, o Tribunal da Relação e a recorrente na interpretação que fazem desta declaração.

Comecemos por recordar o conteúdo, tanto da notificação que à ora executada foi feita, como da resposta que a esta mereceu esta mesma notificação.

A primeira tinha, além do mais que aqui não releva, o seguinte teor:

“Fica(m) pela presente formalmente notificado(s) que, nos termos do 856º do Código de Processo Civil, se considera penhorado o crédito que a executada BB detém em consequência da celebração do contrato prometido a que diz respeito o contrato promessa de alienação do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de P…, contrato esse registado pela Ap. nº 1…2, de 2009/05/20, ficando este à ordem do signatário, até ao montante de 42.926,35 Euros. Mais requer a V. Exa. que envie cópia do referido contrato promessa, devidamente certificada, assim com informação sobre se o contrato prometido já foi celebrado e em que data e Cartório. (sublinhado nosso)

Isto mostra que se está perante penhora de pretenso crédito, que poderia ainda não estar constituído, vindo à titularidade da executada inicial BB, apenas quando esta e a ora executada “CC”, dando cumprimento ao que haviam convencionado, viessem a celebrar o contrato prometido na promessa de permuta que haviam outorgado; isto, claro está, no caso, efetivamente verificado, de o negócio prometido, na altura, não estar ainda concretizado.

Em causa está, pois, um direito que, à data, era um crédito futuro - a prestação que a executada inicial BB teria a haver da “CC” aquando da celebração do contrato, a cuja outorga ambas se comprometeram através do contrato promessa referido.

Salvo o devido respeito por opinião diversa, e sufragando o entendimento que sobre a matéria adotam Miguel Teixeira de Sousa [ “Acção Executiva Singular”, pág. 265] e Rui Pinto [“Manual da Execução e Despejo”, Coimbra Editora, pág. 618], consideramos que nada obsta à sua penhorabilidade, pois que, embora futuro, o crédito em causa é determinado quanto ao seu objeto e sujeitos.

Obtida esta conclusão, atentemos, agora, na resposta dada pela notificada, aqui executada e recorrida.

Foi do seguinte teor:

“Notificados que fomos por V. Exa. cumpre-nos informar que na presente data não somos detentores de nenhum crédito à executada, o contrato que celebramos com a mesma encontra-se em fase de reapreciação visto que o objeto do mesmo se encontrava onerado com um Contrato de Arrendamento, sendo que tal facto era desconhecido da promitente compradora. Nesta fase encontramo-nos a resolver a questão com a executada. O cumprimento da nossa prestação ainda não é devido. Logo que a questão for resolvida viremos posteriormente informar V. Exa.”.[...].

Aferir o sentido que a esta declaração pode ser atribuído tem uma importância determinante para a questão de saber se existe título executivo.

Na verdade, perante a notificação de penhora, feita nos termos do anterior art. 856º, nº 1, equivalente ao art. 773º, nº 1, do atual CPC, o terceiro pode assumir uma das seguintes atitudes [Cfr. Lebre de Freitas, “A Ação Executiva À luz do Código de Processo Civil de 2013”, 6ª edição, pág. 284 e sgs. e Rui Pinto, obra citada, pág. 622 e segs.]:

a. reconhecer a existência do crédito, tacitamente – nada dizendo – ou de modo expresso – art. 856º, nº 3, equivalente ao art. 773º, nº 4 do atual CPC e 856º, nº 2, equivalente ao art. 773º, nº 2 do atual CPC, respetivamente;

b. reconhecer a existência do crédito, mas declarar que a sua exigibilidade depende de prestação do executado, ou seja, invocar a exceção de não cumprimento de obrigação recíproca – art. 859º, nº 1, equivalente ao atual art. 776º, nº 1 do CPC;

c. impugnar a existência do crédito – art. 858º, nº 1, equivalente ao atual art. 775º, nº 1 do CPC.

d. fazer qualquer outra declaração sobre o crédito penhorado que interesse à execução. [Hipótese autonomizada por Lebre de Freitas, na obra citada, a pág. 285]

Na hipótese aludida em c., mantendo o exequente a penhora, o crédito passa a ser tido como litigioso – art. 858º, nº 2, idêntico ao atual art. 775º, nº 2 do CPC.

Na referida em b., seguindo-se os termos definidos no art. 859º, nºs 2 a 4 – correspondentes aos atuais arts. 776º, nºs 2 a 4 do CPC -, pode haver lugar, por apenso, a uma execução para exigir a prestação do executado, caso este, tendo este confirmado a declaração [...], não satisfaça a prestação, ou passará a ter-se o crédito como litigioso, no caso de o executado impugnar a declaração e o exequente manter a penhora.

Finalmente, na primeira das hipóteses figuradas “fica imediatamente assente (a existência do crédito) no âmbito do processo executivo, podendo como tal ser adjudicado ou vendido (…) e servindo o ato de reconhecimento de base à formação dum título executivo em que se pode fundar uma execução contra o terceiro devedor (que não pague …), por meio de substituição processual (do executado pelo exequente, mas constituindo título executivo a declaração de reconhecimento do devedor).” [Lebre de Freitas, obra citada, pág. 285].

No caso, é manifesto que não houve reconhecimento tácito do crédito da executada BB, pois que a “CC” não se remeteu ao silêncio.

Também é de excluir o reconhecimento do crédito com invocação de exceção de não cumprimento, por parte da “CC”.

Perscrutando o conteúdo e significado da declaração prestada, também não vemos que se possa atribuir à mesma a natureza de impugnação do crédito por parte da terceira, pretensa devedora.

E é escasso, a nosso ver, o significado e valor que lhe atribui o acórdão impugnado, ao reduzi-la a uma mera “declaração que interessa à execução”.

Há que reconduzi-la e avaliá-la à luz do circunstancialismo em que foi proferida, tendo presente que constituía a resposta da “CC” a notificação através da qual lhe fora comunicado que se considerava penhorado o crédito que sobre ela viria a deter a executada BB quando celebrado fosse o contrato prometido na promessa de alienação, entre ambas celebrada, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Sor, contrato esse registado pela Ap. nº 1…2, de 2009/05/20. [...]

A afirmação da “CC” no sentido de que, naquela data, a executada não detinha sobre ela qualquer direito de crédito e que o contrato promessa por elas celebrado se encontrava em reapreciação, significa tão só que, então, o crédito penhorado ainda se não havia constituído por não ter sido ainda celebrada a permuta prometida, da qual emergiria o crédito objeto da penhora.

De modo algum compromete o reconhecimento que faz desse crédito futuro, quando profere, naquele mesmo contexto, a afirmação segundo a qual : “O cumprimento da nossa prestação ainda não é devido. Logo que a questão for resolvida viremos posteriormente informar V. Exa.”.

Reconhece, em termos que não deixam margem para dúvida razoável, a existência do contrato promessa e, bem assim, que da projetada celebração do contrato definitivo emergirá para a executada BB um crédito equivalente à prestação que por si lhe será devida.

Daí a afirmação que a sua prestação ainda não é devida e a assunção do compromisso de prestar a pertinente informação nos autos logo que a questão surgida no âmbito do contrato promessa seja ultrapassada.

Cremos, assim, poder afirmar que a “CC”, ora recorrida, reconheceu a existência do crédito futuro em causa, sendo este o sentido a extrair da sua declaração, prestada após a notificação que lhe foi efetuada e no quadro do demais circunstancialismo fáctico descrito.

É com este sentido que vale a sua declaração, o sentido que dela extrairia um declaratário normal, “ou seja, medianamente instruído e diligente” [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª edição, Vol. I, pág. 223], colocado na posição do real declaratário, perante o comportamento do declarante – art. 236º, nº 1, do C. Civil.

Chegados a esta conclusão uma outra se impõe – a de que esse reconhecimento pode servir “de base à formação dum título executivo em que se pode fundar uma execução contra o terceiro devedor (que não pague …)” [Lebre de Freitas, obra citada, pág. 285].

Ora, o direito de crédito penhorado veio a constituir-se aquando da celebração do negócio de compra e venda descrito no facto provado nº 24, sendo que naquele ato, como acima salientámos, a ora executada CC satisfez duas das parcelas do preço pelo qual adquiriu o prédio à executada inicial – cfr. os factos nºs 24 e 25.

Como acima dissemos já, o contrato promessa retificado por essa mesma escritura corresponde ao inicialmente outorgado, através do qual as partes se comprometeram na futura alienação – primeiro por permuta e, mais tarde, por compra e venda – do imóvel referido no facto provado nº 3.

Aquando da celebração da compra e venda, a CC, SA devia ter considerado a existência dessa penhora, cumprindo aquilo a que, por virtude dela, ficara adstrita, aliás de acordo com o que se comprometera fazer após a respetiva notificação – cfr. facto provado nº 20.

Não tendo depositado à ordem do agente de execução a quantia de € 42.926,35, de acordo com a notificação que lhe fora feita, deixou de cumprir a obrigação que sobre ela impendia, assim incorrendo na previsão normativa do nº 3 do art. 860º do CPC então vigente.

Existe, pois, título executivo e obrigação exequenda, não procedendo a oposição e não podendo manter-se o acórdão recorrido."

[MTS]



26/09/2018

Bibliografia (Índices de revistas) (105)



CP Rev.

-- CP Rev. 9 (2018-1)


Bibliografia (722)

 
-- Röthemeyer, Musterfeststellungsklage / Spezialkommentar zu den §§ 606-614 ZPO (Nomos Verlag: Baden-Baden 2019)

-- Saenger (Ed.), Zivilprozessordnung / Familienverfahren | Gerichtsverfassung | Europäisches Verfahrensrecht / Handkommentar, 8.ª ed. (Nomos Verlag: Baden-Baden 2019)


Jurisprudência 2018 (80)


Advogado; segredo profissional;
levantamento



1. O sumário de STJ 15/2/2018 (1130/14.7TVLSB.L1.S1) é o seguinte:

I - É admissível a revista se não se verifica a situação prevista no art. 639.º, n.º 3, do CPC (conclusões deficientes, obscuras, complexas ou insuficientes) – o que sempre legitimaria convite ao aperfeiçoamento – nem, muito menos, a situação de falta absoluta de conclusões, de que fala o art. 641.º, n.º 2, al. b), do CPC.

II - Na generalidade, entende-se por segredo profissional a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é exigido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão.

III - No caso do advogado, o segredo profissional está disciplinado no art. 92.º do EOA, permitindo a cláusula geral do seu n.º 1, que se incluam no referido segredo, para além das elencadas, outras situações que conflituem com os interesses que ela visa proteger.

IV - Radicando no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, o dever de segredo profissional transcende a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação para com o constituinte, para com a própria classe, a OA e a comunidade em geral.

V - Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue.

VI - Deve, porém, ceder, excepcionalmente, perante outros valores que, no caso concreto, se lhe devam sobrepor, designadamente, quando os elementos sob segredo se mostrem imprescindíveis para a protecção e efectivação de direitos ou interesses jurídicos mais relevantes.

VII - No caso dos autos, é ilegítima a recusa da OA, impondo-se o levantamento do segredo profissional atinente a documentação integrante do processo interno de nomeação de patrono, sendo este de inegável importância para a decisão da causa.
 


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Entendeu o acórdão recorrido que, no caso, não está em causa apurar a verificação de qualquer facto de que a ré, patrona oficiosa do autor, tenha tido conhecimento em virtude do exercício do patrocínio e da relação assim estabelecida com o seu patrocinado.

Desenvolve este entendimento nos seguintes termos:

“Aliás, não se vislumbra como considerar de maneira diferente ponderando que o que está em causa é precisamente avaliar se, como o autor alega, inexistiu qualquer contacto entre o requerente do apoio judiciário, ora autor e o patrono nomeado, a ora ré, no período subsequente à nomeação e pelo menos até 22-02-2013, data em que o autor invoca que a ré atendeu o seu telefonema.

Ponderando os temas de prova enunciados pelo tribunal de primeira instância, a colaboração pedida à Ordem dos Advogados é pertinente à averiguação da seguinte matéria:

- Se nos dias que se seguiram à nomeação da ré, o autor não foi contactado pela ré e as tentativas de contacto telefónico com a mesma, através dos números ... e ..., revelaram- -se infrutíferas, dado que esta nunca atendeu os telefonemas efectuados pelo autor – número 2 dos temas de prova.

- Se após três meses de tentativas de contacto, no dia 22-02-2013 a ré atendeu a chamada efectuada para o telemóvel n.º ..., tendo então dito ao autor que: ‘a audiência de julgamento realizou-se no dia 19/2/2013; o autor tinha sido notificado pelo Tribunal para tal; não atende chamadas sem número; não contactava ninguém por escrito, por não receber verbas no Instituto Financeiro do Ministério da Justiça, a Lei do Apoio Judiciário obrigava os beneficiários a escrever aos Patronos, caso estes não atendessem os telefones’. (…)

Em suma, considerando que o tipo de informação solicitada à AO, afigura-se-nos que os elementos pretendidos não se encontram a coberto do segredo profissional imposto à advogada ora demandada, pelo que não se justifica sequer avaliar a situação em termos de levantamento de sigilo.

Acrescente-se que a ponderação de eventuais razões associadas, no âmbito do pedido de escusa, a factos de natureza pessoal e provada com nenhuma relação com o processo judicial propriamente dito, a que a AO vagamente alude – mesmo que estivesse em causa documentação alusiva a escusa, e não está, como já se referiu – extravasa o âmbito deste incidente e portanto escapa à apreciação desta Relação – essas razões enquadram-se na previsão do n.º 3, alínea b) do art. 417º do C.P.C.”.

Perspectiva diametralmente oposta tem a Ordem dos Advogados, que defende, nas conclusões do recurso, que a documentação solicitada está abrangida pelo sigilo profissional de advogado e que o acórdão recorrido viola o disposto no artigo 92º, n.º 1, alínea b) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo DL 145/2015, de 9 de Setembro.

Vejamos:

Na generalidade, entende-se por segredo profissional a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é exigido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão.

O segredo profissional de advogado está disciplinado no artigo 92º do EOA, aí se dispondo:

1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem [i]dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

A cláusula geral do n.º 1 do artigo 92º permite que se incluam no segredo profissional de advogado, para além das elencadas, outras situações que conflituem com os interesses que ela visa proteger.

O dever de guardar segredo profissional tem as suas raízes no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, mas também na dignidade da advocacia e na sua função de manifesto interesse público.

Nas palavras de António Arnauld [Iniciação à Advocacia”, página 66], o fundamento ético-jurídico do sigilo profissional de advogado radica no princípio da confiança e na natureza social da função forense.

A obrigação de segredo transcende, por consequência, a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral.

Isso mesmo foi afirmado no acórdão da Relação de Lisboa de 23.02.2017:

“A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra- -individual e institucional que, por razões de economia, poderemos reconduzir à confiança sobre que deve assentar o exercício de certas profissões”.

Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue. O segredo profissional não é só, em rigor, um dever do advogado por pertencer a uma classe, mas é, e sobretudo, um dever de toda essa classe e, por isso, vinculativo e obrigatório para cada membro dela [Parecer do Conselho Geral de 02.04.1981, em ROA, ano 41, páginas 900 e seguintes].

Saliente-se que, além dos factos, o sigilo profissional abrange ainda quaisquer documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo – cfr. n.º 3 do artigo 92º.

Deferido a um qualquer cidadão, pelos serviços competentes da Segurança Social, o pedido de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, é a Ordem dos Advogados quem procede à nomeação de advogado ao beneficiário do apoio, através do adequado processo interno, tramitado nos termos do Regulamento de Organização e Funcionamento do Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais na Ordem dos Advogados (Regulamento n.º 330-A/2008 de 24 de Junho).

É nesse processo que se coligem as informações relacionadas com a nomeação do patrono, bem como todos os requerimentos e exposições dirigidos por este à Ordem dos Advogados, nomeadamente os que digam respeito a incidentes ocorridos durante o patrocínio.

Poremos, assim, o enfoque na alínea b) do n.º 1 do artigo 92º, supostamente violada pela decisão recorrida.

Recorde-se que o que aí se determina é que está obrigado ao segredo o advogado relativamente a factos de que tenha tomado conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados.

Explicita-se essa obrigação mediante o seguinte raciocínio: o advogado tem necessariamente de expor ao colega, que exerce o cargo na Ordem, e este, por seu turno, obriga-se ao sigilo nos mesmos termos do originário depositário dos factos sigilosos, havendo assim como que uma sucessão no dever do sigilo.

Poderá obtemperar-se que uma coisa é o dever do advogado guardar segredo, em função do cargo desempenhado na Ordem dos Advogados, e outra coisa será a própria Ordem escudar-se no dever de guardar segredo para não divulgar os dados pretendidos.

Contudo, nos termos do artigo 1º, n.º 2, do EOA, a Ordem dos Advogados é uma pessoa coletiva de direito público, pertencendo à administração autónoma do Estado e desempenhando as suas funções, incluindo a função regulamentar, de forma independente dos órgãos do Estado. É mediante a actividade desenvolvida pela Ordem dos Advogados que se articulam os interesses profissionais dos advogados com o interesse público da justiça, cabendo-lhe, entre outras atribuições, colaborar na administração da justiça e assegurar o acesso ao direito.

Não custa, pois, aceitar que a própria Ordem dos Advogados, ao intermediar a relação de patrocínio entre o advogado nomeado e o beneficiário do apoio judiciário, esteja vinculada à obrigação de não divulgar factos que lhe tenham sido transmitidos pelo advogado nomeado no âmbito do processo interno de nomeação de patrono. Dizendo esses factos respeito à actividade da advocacia, que a Ordem superiormente regula com total autonomia, impõe-se a necessária reserva de modo a preservar a indispensável dignidade da função.

Evidentemente que, como qualquer outro segredo profissional (v. g., médicos, enfermeiros, funcionários públicos, contabilistas certificados, agentes de execução, etc.), o segredo profissional de advogado não é absoluto. Ele cede, excepcionalmente, perante outros valores que, no caso concreto, se lhe devam sobrepor, designadamente, quando os elementos sob segredo se mostrem imprescindíveis para a protecção e efectivação de direitos ou interesses jurídicos mais relevantes.

Cremos ser este o caso.

Considerando os contornos da relação material controvertida e os temas sujeitos a prova, acima identificados, afigura-se que a documentação solicitada à Ordem dos Advogados, atinente ao processo interno de nomeação de patrono, é de inegável importância para a decisão da causa.

Pelo que, sendo ilegítima a recusa, impõe-se o levantamento do segredo profissional, devendo a Ordem dos Advogados juntar ao processo “cópia dos esclarecimentos/exposições apresentadas pela Ré no âmbito do processo de nomeação de patrono n.º 13619/2010”."


[MTS]


25/09/2018

Jurisprudência 2018 (79)


Providência cautelar não especificada;
recurso; conclusões

1. O sumário de RP 26/4/2018 (5219/17.2T8VNG-A.P1) é o seguinte: 

I - As conclusões do recurso são a indicação sintética dos fundamentos por que se pede a alteração, revogação ou anulação da decisão. Cumprem importante missão de levantamento das questões controversas, procurando evitar a impugnação geral, vaga, imprecisa e indefinida, mas, também, a viabilização do exercício do contraditório, de modo a não criar dificuldades acrescidas à posição da outra parte, privando-a de elementos importantes para organizar a sua defesa, em sede de contra - alegações.
 
II - O ónus imposto na parte final do art.º 639º, nº 1, do Código de Processo Civil - da conclusão sintética - deve ser interpretado com moderação, importando mais ver em tal imposição uma recomendação de boa técnica processual, do que um comando rigoroso e rígido, a aplicar com severidade e sem contemplações.
 
III - Se, com base num contrato de mandato sem representação, o mandatário adquire uma quota de uma sociedade comercial para a transferir para o mandante e, em vez disso, promove, como sócio e gerente da sociedade, uma assembleia geral para aprovação de um aumento do capital social para um valor tão elevado que reduz a quota a entregar ao mandante de 57% para 2,478% do capital, perspetivando-se mesmo a dissolução da sociedade por vontade dos sócios (qualidade que o Requerente ainda não tem mas já deveria ter), deve ser admitido procedimento cautelar que acautele o interesse do requerente/mandante enquanto não for proferida decisão final no processo principal de execução específica do contrato de mandato.
 
IV - A tutela cautelar da posição do mandante, não obstante não ser ainda sócio da sociedade, assenta no direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva já proposta, ao abrigo do nº 2 do art.º 362º do Código de Processo Civil, sendo adequada a providência cautelar comum ou não especificada.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Dispõe o nº 1 do art.º 380º do Código de Processo Civil que “se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável”.

A providência específica da “suspensão de deliberações sociais” visa antecipar determinados efeitos resultantes da sentença da ação (principal) declarativa, da nulidade ou da anulabilidade, prevenindo assim a execução de uma deliberação formal ou substancialmente inválida, mas suscetível de se repercutir negativamente na esfera jurídica do sócio ou da sociedade ou outra pessoa coletiva. Exerce uma função instrumental relativamente às ações de declaração de invalidade de deliberações sociais.

A causa de pedir desta providência deve respeitar a factos cujo apuramento sumário permita a conclusão, com grau de probabilidade necessário, pela verificação dos seus requisitos legais, traduzindo-se o pedido na suspensão dos efeitos da deliberação não executada ou ainda não integralmente executada. Faz sentido o seu uso quando a situação litigiosa tenha origem numa deliberação cuja execução se pretenda evitar, com a alegacão dos prejuízos que daí possam decorrer.

Compreende-se, pois, a determinação legal prevista no nº 3 do art.º 381º do Código de Processo Civil, de que, a partir da citação e enquanto não for julgado em l.ª instância o pedido de suspensão, não é lícito à associação ou sociedade executar a deliberação impugnada, ou o que dela falta executar.

Para que a providência seja decretada, hão de verificar-se os pressupostos conaturais das providências, o fumus boni juris, correspondente, no caso, à probabilidade da verificação de um desses vícios geradores de nulidade ou de anulabilidade da deliberação, e o periculum in mora que a lei faz corresponder à verificação, em termos de probabilidade, do perigo de ocorrência de dano apreciável decorrente da execução da deliberação inválida.

A legitimidade para a instauração do procedimento cautelar de suspensão da deliberação a lei depende da qualidade de sócio (art.º 380º, nº 1, do Código de Processo Civil) e a legitimidade passiva para a ação ou para a suspensão pertence unicamente à sociedade (art.º 60º, nº 1, do CSC.) [A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, 4ª edição, IV volume, pág. 90].

Com toda a evidência, não é este o procedimento cautelar destinado a acautelar o direito que o Requerente invocou. Não só não tinha ele legitimidade ativa para instaurar a ação de invalidade de uma deliberação social ou o referido procedimento cautelar especificado, como a ação principal não visa qualquer desses fins, não está em causa a suspensão de qualquer deliberação social e não foi demandada a sociedade.

A Requerente não usou, e bem, do referido procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais.

Nenhum outro procedimento cautelar especificado se adequa às caraterísticas do caso concreto - sobretudo, face à necessária ponderação do risco de lesão especialmente prevenido por cada uma das providências específicas previstas na lei - , pelo que a única via possível de ação cautelar é a que o Requerente usou, ou seja, o procedimento cautelar comum ou providência cautelar não especificada, aquele que tem cariz residual. Portanto, aquele que constitui o instrumento apropriado à dedução e apreciação de pretensões de natureza cautelar que não têm guarida em qualquer dos restantes procedimentos.

O Requerente respeitou o princípio da legalidade das formas processuais, observando o que consta do nº 3 do art.º 362º do Código de Processo Civil.

Dispõe ainda o art.º 362º do Código de Processo Civil:

«1- Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
 
2- O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor.
(…).».

Entendeu-se na decisão recorrida que o Requerente pretende “obter efeitos semelhantes aos de um procedimento de suspensão de deliberações sociais, sem que se verifiquem os respetivos pressupostos, relativamente a uma eventual deliberação social, à margem da necessária ponderação a efetuar por forma a harmonizar os interesses contrapostos, do Requerido, em cuja esfera jurídica se poderá repercutir de forma negativa a execução de uma deliberação social de aumento de capital ou de dissolução da sociedade, e a sociedade, que poderá sofrer uma perturbação e até mesmo um prejuízo com a suspensão da deliberação social, até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na ação principal, tanto mais que não lhe é dada a possibilidade de exercer o respetivo contraditório, por não ser parte no presente procedimento, o que contraria o já mencionado princípio da legalidade das formas processuais”.

Acrescenta que, “ainda que assim não se entendesse, o eventual direito de propriedade de uma quota com o valor nominal de €2.850,00, atualmente representativa de 57% do capital social da sociedade D…, Lda., a adquirir por força da decisão final a proferir na ação principal, não confere ao Requerente o direito de interferir na sociedade à qual é alheio, através de uma limitação do direito de voto do Requerido, impedindo a sociedade de formar e exteriorizar livremente a sua vontade por meio de deliberação social, por forma a salvaguardar uma posição que o Requerente, neste momento, não tem, na referida sociedade”.

Ainda na perspetiva da sentença, a expetativa de aquisição do direito pelo Requerente não pode justificar a sua interferência na vida da sociedade através da imposição ao Requerido de um comportamento omissivo, impedindo-a de deliberar sobre os assuntos que o conjunto dos sócios entenda relevantes para o exercício da sua atividade, até ao trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida. Daí que o eventual direito a adquirir por força da decisão que vier a ser proferida na ação principal só possa ser exercido pelo Requerente no futuro, concluiu a sentença.

Invoca o Requerente a celebração de um contrato de mandato sem representação entre ele, na qualidade de mandante, e o Requerido, na qualidade de mandatário.

Estaremos, assim, perante uma situação de interposição real de pessoas: o interposto atua em nome próprio, mas no interesse e por conta de outrem, por força de um acordo entre ele e um só dos sujeitos. Devem cumprir-se duas finalidades: uma imediata, consistente em ato ou atos a praticar pelo mandatário e, normalmente por terceiros e uma mediata, através da qual o mandatário deve transferir, para o mandante os efeitos daquele ou daqueles atos. Enquanto os não transferir, o mandatário adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos atos que celebra (art.ºs 1157º, 1180º e 1181º, nº 1, do Código Civil).

O Requerido estará, por isso, na posse de 57% do capital social da D… que adquiriu em nome próprio, com a obrigação de o transferir para o Requerente em execução do mandato. Enquanto a transferência do direito não for efetuada, exerce o direito e assume as obrigações de corrente do negócio que efetuou com terceiro. Os direitos e obrigações decorrentes do negócio produzem-se na esfera jurídica do mandatário, que fica com a obrigação de os transferir para a pessoa por conta de quem age, ou seja, o mandante. É o mandatário que adquire os direitos e assume as obrigações dos atos que celebra, porém com a obrigação de os transferir para o mandante, por conta de quem agiu, através de um novo ato (alienação solutionis causa) cuja causa é precisamente a “causa mandati”.

Conforme a alegação do Requerente, o Requerido não cumpriu o mandato na parte em que deveria ter transferido para o primeiro as ações que adquiriu por conta dele. Não podendo nós adiantar o resultado da ação principal, a verdade é que lhe foi dada a configuração de uma ação de execução específica, pela qual se visa obter os efeitos da declaração negocial, ou seja, a transferência para o Requerente da propriedade de uma quota com valor nominal de €2.850,00, representativa de 57% do capital social da D… e respetivo registo oficioso na Conservatória do Registo Predial (pedido principal).

É, sem dúvida, uma ação constitutiva, destinada a autorizar uma mudança na ordem jurídica, mediante o exercício pelo Requerente de um direito potestativo.

O direito emergente de decisão a proferir pode justificar o recurso à providência cautelar comum, como resulta expresso no nº 2 do art.º 362º do Código de Processo Civil."

[MTS]



24/09/2018

Bibliografia (721)


-- Muroni, Raffaella, L'azione ex art. 2932 c.c. / Contributo allo studio del giudicato costitutivo. (Jovene Editore: Napoli 2018)


Jurisprudência 2018 (78)


Processo de inventário; decisões do notário;
recurso


1. O sumário de RP 26/4/2018 (9995/17.4T8VNG-A.P1) é o seguinte:

I - A resolução dos problemas que forem surgindo na aplicação do novo Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei 23/2013 de 5 de Março, designadamente quanto à articulação da intervenção do notário e do juiz neste processo, tem sempre de passar pela noção de que no nosso ordenamento jurídico a função jurisdicional é reserva do juiz, por imposição constitucional. 

II - Mesmo na falta de previsão expressa no novo RJPI, se está em causa uma situação que carece de tutela jurisdicional efectiva, tem de admitir-se a impugnação para o tribunal da decisão proferida pelo notário em sede de processo de inventário.

III - Das decisões do notário proferidas em sede de processo de inventário passíveis de serem impugnadas, é competente para delas conhecer o juiz do tribunal de 1ª instância territorialmente competente, podendo recorrer-se, nos casos que não são expressamente previstos, ao procedimento análogo contemplado no art.º 57.º n.º 4 do RJPI que confere aos interessados a possibilidade de impugnarem judicialmente a decisão do notário sobre a forma à partilha. 

IV - Das decisões proferidas pelo juiz de 1ª instância cabe recurso para a Relação, nos termos gerais, de acordo com o regime de recursos previsto no art.º 76 do RJPI e C.P.C. 

V - Estando em causa a impugnação da decisão do notário em incidente de impedimento e suspeição suscitado no âmbito de processo de inventário subsequente ao divórcio para partilha dos bens comuns, é competente para o apreciar o juízo de família e menores territorialmente competente, de acordo com o art.º 122.º n.º 2 da LOSJ.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Alega a Recorrente que a competência do Juízo de Família e Menores para a apreciação do recurso interposto da decisão do Notário resulta do art.º 67.º do C.P.C. e do art.º 122.º n.º 2 da LOSJ e que a não se considerar este tribunal o competente, essa competência sempre seria do Juízo Local Cível, para onde o processo deve ser remetido.
 
A decisão sob recurso considerou o tribunal incompetente para a admissão e apreciação do recurso interposto pela Requerida, com fundamento no entendimento de que não existe qualquer norma, designadamente no RJPI, que determine a possibilidade de recurso para o tribunal de 1ª instância da decisão proferida pelo Notário na matéria em causa, não referindo porém qual o tribunal ou entidade competente para apreciar e decidir a questão…
 
A resposta sobre a competência para a apreciação do recurso que incide sobre a decisão do Notário proferida em incidente de impedimento ou suspeição, no âmbito do processo de inventário, exige que se teçam algumas considerações prévias sobre o novo regime jurídico do processo de inventário. [...]

Não competindo nesta sede fazer a avaliação do processo legislativo que veio a culminar no actual Regime Jurídico do Processo de Inventário, importa porém reter a ideia de que nele foi considerado necessário contemplar a intervenção do juiz no processo de inventário, designadamente com a prolação de decisão judicial final no processo, homologatória da partilha, não o desjudicializando por completo e assim se procurando acautelar questões de inconstitucionalidade que decorriam daquela Lei 29/2009 de 29 de Junho.
 
Não podemos esquecer que a função jurisdicional está constitucionalmente atribuída apenas aos tribunais, determinando o art.º 202.º n.º 1 da CRP que os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo. Está prevista nesta norma a denominada reserva da função jurisdicional cujo exercício compete ao juiz.
 
A delimitação do âmbito da função jurisdicional não tem sido isenta de controvérsia, havendo porém que ter sempre em consideração o n.º 2 do art.º 202.º da CRP que estabelece: “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.”
 
Não cabendo aqui definir ou delimitar com precisão o âmbito da função jurisdicional, designadamente por referência a outras funções do Estado, como a administrativa, afigura-se para o que agora nos interessa, e à luz da previsão do art.º 202.º n.º 2 da CRP, que é suficiente e pacífica a ideia de que o processo de inventário não pode deixar de ser visto como um processo em que se coloca a necessidade de se dirimirem conflitos de interesses privados. 
 
O processo de inventário tem como finalidade ou objectivo alcançar a partilha dos bens comuns dos interessados, precisamente nos casos em que os mesmos se encontram em desacordo ou conflito para a sua efectivação, já que se estiverem de acordo quanto à partilha dos bens têm forma de a realizar sem recorrer a este processo.
 
Por outro lado, a previsão do n.º 2 do art.º 202.º da CRP já mencionado, permite-nos dizer que só os actos materialmente jurisdicionais têm de ser praticados por juízes, podendo admitir-se, tal como decorre do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 144/2006, que não juízes pratiquem actos que embora tendo conteúdo decisório não sejam materialmente jurisdicionais. 
 
Afigura-se que é a partir destes pressupostos que a Lei 23/2013 de 5 de Março veio estabelecer o novo Regime Jurídico do Processo de Inventário, por um lado atribuindo ao notário diversas competências no âmbito deste processo, e por outro lado, nele prevendo igualmente a intervenção do juiz, em razão da natureza do processo em questão e do facto dos notários não poderem, no exercício da sua actividade, invadir o domínio da função jurisdicional que por imperativo constitucional cabe exclusivamente ao juiz.
 
Tendo presente estas ideias verificamos que no novo RJPI, na repartição de competências entre cada um dos intervenientes, o legislador previu diversas situações que considerou carecerem de tutela jurisdicional efectiva, cuja resolução atribuiu ao tribunal, à luz da reserva da função jurisdicional que cabe ao juiz.
 
A circunstância de terem passado a existir dois intervenientes no processo de inventário - Notário e Juiz - com a preponderância conferida ao papel do Notário na tramitação e decisão deste processo, veio trazer problemas na articulação da intervenção em concreto destas duas entidades no processo, que nem sempre tem vindo a revelar-se linear, não só pela existência de situações de fronteira difíceis de qualificar e integrar na competência de cada um, mas também pelo facto de nos depararmos com situações cuja resolução o legislador não previu expressamente na lei que estabelece o novo RJPI. 
 
A passagem para os Notários da tramitação e decisão de questões que se colocam no âmbito do processo de inventário, não pode naturalmente significar que os mesmos tenham passado a exercer a função jurisdicional, já que esta, por determinação constitucional está atribuída em exclusivo aos tribunais e ao juiz. Não podendo equipara-se a função do notário à função do juiz, antes se impondo que se tenha como presente a sua diferenciação, não deixa porém o novo regime jurídico de colocar questões que não são claras e que se prendem precisamente com a definição dos limites da função e competências de cada um: do notário e do juiz.
 
Afigura-se que a resolução dos problemas que forem surgindo na aplicação de uma lei que ainda encerra muitas interrogações, tem sempre de passar, por um lado, pela noção de qual é no nosso ordenamento jurídico, legal e constitucional, a posição do notário e a posição do juiz e, por outro lado, tal como nos diz Nuno de Lemos Jorge, in. Função do Notário e Função do Juiz no Regime Jurídico do Processo de Inventário – Lei 23/2013 de 5 de Março, Revista Julgar n.º 24, pág. 129, pelo reconhecimento de que “…o novo processo de inventário é um verdadeiro processo, com a finalidade de realização da justiça do caso concreto que é comum a outros processos e não pode deixar de iluminar o intérprete.”
 
Surgindo o Notário como a entidade encarregada de dirigir e em alguns casos de decidir no processo de inventário, é prevista igualmente ainda que de forma mais pontual a intervenção do Juiz neste processo, dispondo o art.º 3.º n.º 7: “Compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz.”
 
As intervenções do juiz de 1ª instância consagradas no diploma em questão, não deixam de encerrar algumas incongruências, na constatação de que este ao mesmo tempo que é chamado a proferir decisão em primeira instância, é igualmente chamado a decidir como juiz de recurso.
 
O art.º 66.º n.º 1 do RJPI prevê a intervenção do juiz, sempre necessária em sede de processo de inventário, atribuindo-lhe competência para proferir a decisão homologatória da partilha, em 1ª instância. Desta decisão do juiz, de acordo com o disposto no art.º 66.º n.º 3 cabe recurso para o Tribunal da Relação.
 
Outras normas existem neste diploma que contemplam a eventualidade da intervenção do juiz no processo, como juiz de recurso, intervenção esta que pode ser suscitada quer por iniciativa das partes com a impugnação de decisão proferida pelo notário, de que é exemplo quer o art.º 16.º n.º 4 quando dispõe: “Da decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns cabe recurso para o tribunal competente, no prazo de 15 dias a partir da notificação da decisão, o qual deve incluir a alegação do recorrente.”, quer o art.º 57.º n.º 4 que prevê a possibilidade da impugnação do despacho sobre a forma da partilha para o tribunal de 1.ª instância competente. 
 
A intervenção do tribunal chamado a decidir questões que se colocam no processo de inventário, pode vir ainda a resultar da iniciativa do próprio notário, quando o mesmo entende remeter as partes para os meios comuns, conforme resulta do art.º 16.º n.º 1 que dispõe: “O notário determina a suspensão da tramitação do processo sempre que, na pendência do inventário, se suscitem questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, remetendo as partes para os meios judiciais comuns até que ocorra decisão definitiva, para o que identifica as questões controvertidas, justificando fundamentadamente a sua complexidade.”
 
Não pode deixar de ver-se nestas normas a concretização legal da salvaguarda do princípio da reserva do juiz no exercício da função jurisdicional, a que já se aludiu.
 
Mas no âmbito da tramitação do processo de inventário atribuída ao notário, podem vir ainda a ocorrer outras situações para além daquelas em que o RJPI prevê expressamente a intervenção do juiz, designadamente enquanto juiz de recurso, em que esta se impõe, quer por se suscitarem questões semelhantes àquelas que nela são regulados e assim o determinam, quer pelo facto de se tratarem de questões que, pela sua natureza exigem uma tutela jurisdicional efectiva, não podendo deixar de considerar-se incluídas no exercício da função jurisdicional, por imperativo de ordem constitucional. 
 
As ideias gerais que sinteticamente se expuseram, ajudam-nos mais facilmente a definir qual é o tribunal competente, que deve ser chamado a decidir em caso de necessidade de tutela jurisdicional efectiva, designadamente em sede de impugnação ou recurso das decisões proferidas pelo Notário, mesmo nas situações que não estão expressamente previstas no novo RJPI, mas que se podem colocar no âmbito do processo de inventário, 
 
O facto de no Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei 23/2013 de 5 de Março, não existir qualquer norma expressa que regulamente esta questão da impugnação em geral das decisões proferidas pelo notário, quando necessário, e em particular daquelas que são emitidas em incidente de incumprimento e suspeição, apenas nos pode levar a reconhecer que estamos perante uma lacuna da lei, que importa integrar de acordo com os princípios estabelecidos no art.º 10.º do C.Civil, ou seja, em primeiro lugar com recurso à avaliação das normas e princípios que resultam deste mesmo diploma.
Parece-nos claro que tal competência não pode deixar de estar atribuída aos tribunais de 1ª instância. 
 
Senão vejamos.
 
Em primeiro lugar, considera-se que essa é a solução que melhor dá acolhimento e se integra na opção do legislador em contemplar a intervenção obrigatória, de dois intervenientes – notário e juiz de 1ª instância - no processo de inventário, ainda que em diferente medida, e a que corresponde à melhor articulação entre as diferentes competências de cada um, na tramitação daquele processo.
 
Em segundo lugar, porque essa é desde logo a solução prevista no novo RJPI para outras situações, em que é ao juiz de 1ª instância que é conferida a competência não só para a prática de actos jurisdicionais no âmbito do processo de inventário, como também para apreciar as decisões do notário em sede de recurso, como acontece na previsão do art.º 16.º n.º 4 já mencionado, ou para conhecer a impugnação da decisão deste sobre a forma à partilha, contemplada no art.º 57.º n.º 4 do RJPI.
 
Em terceiro lugar, importa considerar ainda a propósito da competência dos tribunais em razão da hierarquia, o disposto nos art.º 67.º e 68.º do C.P.C. Quanto aos tribunais de 1ª instância estabelece o art.º 67.º: “Compete aos tribunais de 1.ª instância o conhecimento dos recursos das decisões dos notários, dos conservadores do registo e de outros que, nos termos da lei, para eles devam ser interpostos”, enquanto o art.º 68.º relativamente às Relações, lhes confere competência para os recursos interpostos de decisões proferidas pelos tribunais de 1ª instância, para além daqueles que por lei sejam da sua competência.
Finalmente, mais se refere, que a situação do legislador contemplar a possibilidade de recurso das decisões dos notários e conservadores para o tribunal de 1ª instância não é aliás nova, sendo disso exemplo a previsão do art.º 3.º da Lei nº 82/2001,de 03 de Agosto, que dispõe sobre a remessa do processo para o tribunal competente para decidir o recurso da decisão do conservador; ou o art.º 10.º do Decreto-lei nº 272/2001, de 13 de Outubro, que estabelece que “das decisões do conservador cabe recurso para o tribunal judicial da 1ª instância competente em razão da matéria no âmbito da circunscrição a que pertence a conservatória.” 
 
Não nos esquecemos do art.º 76.º do RJPI que se refere ao regime de recursos. Contudo, este artigo contempla o regime de recursos precisamente das decisões que venham a ser proferidas pelo juiz de 1ª instância no âmbito do processo de inventário, não se reportando ao recurso de qualquer decisão proferida pelo notário. O mesmo alude à aplicação do regime de recursos previsto no C.P.C. com referência ao recurso da decisão homologatória da partilha, decisão esta que cabe ao juiz, nos termos do art.º 66.º do RJPI e não ao notário. Como já se viu, no âmbito do processo de inventário o juiz também é chamado a decidir em primeira instância. 
 
Só das decisões do tribunal de 1ª instância é que cabe recurso para o Tribunal da Relação; as decisões do notário não são decisões proferidas no âmbito da função jurisdicional pelo que delas não pode haver recurso directo para a Relação.
 
No sentido de que é o tribunal de 1ª instância e não o tribunal da Relação o competente para conhecer, em primeira linha, do recurso de decisão proferida pelo notário em sede de processo de inventário, tem vindo aliás a pronunciar-se a jurisprudência dos nossos tribunais da Relação, de que são exemplo os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/06/2017 no proc. 109/17.1YRCBR e de 09/05/2017 no proc. 86/17.9YRCBR, ambos in. www.dgsi.pt neste último se referindo: “… resulta das disposições ora transcritas que das decisões proferidas por notário, expressamente passíveis de recurso (como o é in casu, cf. artigo 16.º, n.º 4, do RJPI), cabe recurso para o Tribunal da 1.ª instância que for o territorialmente competente, a interpor no prazo e regimes ali fixados, ao passo que o recurso da sentença homologatória da partilha, porque proferido pelo Juiz desse Tribunal de 1.ª instância, é dirigido ao Tribunal da Relação territorialmente competente, como o determina o citado artigo 66.º, n.º 3, uma vez que vem interposto de decisão judicial e não do notário.” 
 
A doutrina tem vindo a expressar igual entendimento. Veja-se Lopes Cardoso, in. Partilhas Judiciais, pág. 82 ss. que refere: “vale dizer que a discordância da decisão notarial interlocutória deve manifestar-se através dum requerimento de impugnação para o Juiz dirigido ao Notário.”
 
Também Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita, in. Manual do Processo de Inventário à Luz do Novo Regime, pág. 230, ensinam-nos a propósito do regime de recursos previsto no art.º 76.º do RJPI com remissão para o C.P.C.: “…apenas se aplica a decisões tomadas pelo tribunal e não pelo notário, uma vez que as decisões tomadas por este último apenas poderão ser objecto de impugnação para o Tribunal de 1.ª instância territorialmente competente nos casos especialmente previstos na lei ou nas situações que temos vindo a apontar.”.
 
Posto isto, afigura-se que podemos retirar a seguinte conclusão: das decisões do notário proferidas em sede de processo de inventário, passíveis de serem impugnadas, é competente para conhecer da impugnação o juiz do tribunal de 1ª instância territorialmente competente, podendo recorrer-se, nos casos que não são expressamente previstos, ao procedimento análogo contemplado no art.º 57.º n.º 4 do RJPI que confere aos interessados a possibilidade de impugnarem judicialmente a decisão do notário sobre a forma à partilha. Das decisões proferidas pelo juiz de 1ª instância cabe recurso para a Relação, nos termos gerais, de acordo com o regime de recursos previsto no art.º 76 do RJPI e C.P.C. 
 
Se é certo, conforme refere o Exm.º Juiz a quo, que ao tribunal de 1ª instância não lhe está atribuída competência para conhecer recursos de apelação nos termos previstos no C.P.C., já não pode deixar de se lhe reconhecer competência para a apreciar a impugnação da decisão proferida por notário, ainda que impropriamente denominada e apresentada como recurso de apelação.
 
Com respeito à situação concreta que nos ocupa, põe-se ainda a questão de saber qual o tribunal de 1ª instância competente em razão da matéria para a apreciação da impugnação suscitada: se o juízo de família e menores como pretende a Recorrente, se o juízo local cível.
 
A resposta a esta questão tem de ser encontrada no âmbito da Lei da Organização do Sistema Judiciário aprovada pelo Decreto-Lei 62/2013 de 26 de Agosto. 
 
Aos juízos locais cíveis, como se sabe, o legislador veio atribuir-lhes competência residual, para julgarem causas não atribuídas a outros juízos ou tribunal, estabelecendo o art.º 130 n.º 1 da LOSJ: “Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.”
 
Em face desta previsão, importará então apurar em primeiro lugar se estamos perante uma causa atribuída ao juízo de família e menores.
 
A LOSJ vem na subsecção IV nos art.º 122.º a 124.º regular sobre a competência dos juízos de família e menores. No art.º 122.º é prevista a competência destes juízos quanto a matérias relacionadas com o estado civil das pessoas e família, sendo contempladas no n.º 1 deste artigo diversas acções que compete a estes juízos preparar e julgar; acrescenta o n.º 2: “Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”
 
No caso em presença estamos perante uma questão suscitada no âmbito de um processo de inventário que corre termos com vista à partilha dos bens comuns do casal, subsequente ao divórcio. Competindo aos juízos de família e menores exercer a competência conferida aos tribunais nestes processos de inventário específicos, considera-se que é o juízo de família e menores o competente para conhecer da impugnação da decisão do notário proferida em sede de incidente de impedimento e suspeição suscitado no âmbito daquele processo.
 
Por estar em causa a impugnação de uma decisão do notário proferida em incidente de impedimento e suspeição suscitado por uma das partes em processo de inventário, e por não a desconhecermos, impõe-se fazer uma referência à posição que tem vindo a este respeito a ser defendida por Sofia Henriques, in. O Regime de Impedimentos e Suspeições do Notário no Âmbito do Processo de Inventário, Revista Julgar, pág. 139/140, para, como todo o respeito, dela se discordar.
 
Entende a Autora do estudo citado, depois de concluir que o notário em face das competências que lhe foram legalmente atribuídas no âmbito do processo de inventário, deve considerar-se sujeito ao regime de impedimentos e suspeições previsto e estabelecido para o juiz no Código de Processo Civil, que é ao Presidente do Tribunal da Relação territorialmente competente que cabe o conhecimento da impugnação da decisão do notário proferida nestes incidentes, uma vez que é também a este que por força do disposto nos art.º 122.º n.º 2 e 119.º n.º 3 do C.P.C. está atribuída competência para decidir dos impedimentos e suspeições dos juízes, normas que entende serem aplicáveis. 
 
Não importa agora aqui cuidar de saber se se aplica aos Notários o regime de Impedimentos e Suspeições previstos para os juízes no Código de Processo Civil, ou antes em exclusivo o que está previsto nos diplomas que regulam a sua actividade, como sejam o Estatuto do Notariado, o Código do Notariado e o Estatuto da Ordem dos Notários, uma vez que tal não constitui objecto do presente recurso.
 
Sempre importa referir porém que o notário enquanto entidade oficial revestida de fé pública, está sujeito ao seu Estatuto, no qual é previsto um regime próprio de incompatibilidades e de exclusividade.
 
Na opção do legislador em atribuir ao notário o papel preponderante que este tem agora em sede de processo de inventário, escolhendo-o de entre outras classes de profissionais para a tramitação de tal processo, não terá sido alheia a ponderação da exigência de independência e imparcialidade que lhes é imposta, designadamente pelo seu próprio Estatuto. 
 
No Estatuto da Ordem dos Notário aprovado pela Lei 155/2015 de 15 de Setembro são os art,º 72.º a 75.º que estipulam sobre os impedimentos e imparcialidade do notário; o Estatuto do Notariado, aprovado pela Decreto-lei 26/2004 de 4 de Fevereiro, prevê os princípios da legalidade, autonomia, imparcialidade e exclusividade nos art.º 11.º a 15.º e também o Código do Notariado vem estabelecer no seu art.º 5.º os impedimentos dos notários. Em nenhum destes diplomas é porém regulamentado o procedimento que deve ocorrer quando um incidente destes é suscitado perante o notário, nomeadamente no âmbito do processo de inventário, e modo de reagir à decisão que sobre ele venha a incidir. Designadamente, não é atribuída tal competência à Ordem dos Notários.
 
O novo RJPI faz apenas uma alusão ao impedimento do notário, quando no art.º 3.º n.º 2 estabelece: “Em caso de impedimento dos notários de um cartório notarial, é competente qualquer dos outros cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão.” Neste diploma não é porém contemplada qualquer outra previsão ou regulamentação especificamente direccionada para os impedimentos e suspeições do notário.
 
Não podemos porém concordar com o entendimento defendido, de que a competência para decidir dos impedimentos e suspeições dos notários é das Relações e nestas do Presidente do Tribunal da Relação, em equiparação do procedimento previsto no Código de Processo Civil para os impedimentos e suspeição dos juízes, uma vez que, por um lado, tal solução parte da equiparação da função do notário no processo de inventário à do juiz, contendendo com a avaliação do novo RJPI nos termos em que o entendemos e ficaram expostos, assente na necessária distinção das funções de cada um daqueles intervenientes no âmbito do processo de inventário, e por outro lado, considera-se que a solução para o suprimento das lacunas existentes neste diploma deve ser procurada, em primeiro lugar, no âmbito deste mesmo regime.
 
Em conclusão, não se vê razão que possa justificar que relativamente a uma decisão de um incidente de impedimento ou suspeição proferida pelo notário que surge no âmbito da tramitação do processo de inventário, seja dada uma solução diferente da que se expressou, quanto à forma como deve ser impugnada a decisão do notário em qualquer outro incidente que aí surja e que careça de tutela jurisdicional. Ou seja, na falta de previsão expressa no novo RJPI e estando em causa uma situação que carece de tutela jurisdicional efectiva, tem de admitir-se a impugnação da decisão proferida pelo notário, para o tribunal de 1ª instância competente para intervir no processo de inventário.
 
Chegamos então à conclusão de que, na situação em presença, é competente para a apreciar a decisão proferida pela Exm.ª Notária no incidente de impedimento e suspeição suscitado no processo de inventário, o juízo de família e menores territorialmente competente.
 
Impõe-se assim a revogação da decisão recorrida que entendeu ser o juízo de família e menores incompetente para a admissão e conhecimento do recurso interposto pela interessada, considerando-se o juízo de família e menores competente para apreciar e decidir a impugnação da decisão da Exm.ª Notária em causa, proferida no âmbito de processo de inventário subsequente ao divórcio, para partilha dos bens comuns."
 
[MTS]