"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/01/2019

Jurisprudência 2018 (145)


Sentença de 1.ª instância; omissão de pronúncia;
revista; baixa do processo
 
1. O sumário de STJ 12/7/2018 (2069/14.1T8PRT.P1.S1) é o seguinte:

I – Constando do acórdão recorrido a análise de uma questão que só em sede de recurso foi apreciada, não pode dizer-se que, quanto a ela, hajam sido proferidas duas decisões conformes, pelo que se não verifica a dupla conformidade impeditiva de recurso de revista.

II – A questão do abuso do direito, que é de conhecimento oficioso, não está sujeita ao princípio da preclusão consagrado, quanto aos meios de defesa do réu, no art. 573º do CPC, visto caber nas exceções previstas no seu nº 2.

III – Cometida na 1ª instância omissão de pronúncia quanto à questão referida em II, sem que a Relação a haja suprido, não pode o STJ suprir a correspondente nulidade por omissão de pronúncia, por força das disposições conjugadas dos arts. 679º e 665º do CPC.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nas conclusões 1ª a 22ª o recorrente aborda a questão da nulidade que imputa à sentença proferida na 1ª instância, por não ter conhecido da exceção do abuso do direito em que a recorrida teria incorrido ao propor a presente ação, nulidade que, invocada nas alegações da apelação, foi tida como não verificada, como vimos, pelo acórdão recorrido que afirmou tratar-se de questão que não fora suscitada nem resultava dos factos apurados.

Vejamos se assim é.

Ao contestar a ação o ora recorrente alegou que:

- a recorrida foi citada para a ação executiva em 28.02.1994, mas nada fez, aceitando a pendência da execução contra si e conformando-se com toda a situação jurídica e jurídico-processual com que se defrontava, designadamente, com as penhoras no seu salário durante uma década e meia, contra as quais jamais reagiu – cfr. os arts. 16º, 18º 19º e 24º;

- a segurança e a certeza jurídicas, bem como a solidez das decisões emanadas do exercício da função jurisdicional não se compadecem com alterações supervenientes, ao sabor das partes que, inertes foram em determinado momento, ativistas pretendam ser em momentos históricos posteriores – cfr. os arts. 27º e 28º.

Estas alegações foram feitas no segmento da contestação em que o recorrente arguia a exceção perentória da preclusão do direito da executada, aqui autora e recorrida, a impugnar o direito constante do título executivo e que contra ela era exercido.

Pode, por isso, pensar-se que então não era ainda evidente que estivesse a ser invocado o exercício abusivo, por parte da autora, do direito que invocava, sendo, aliás, certo que a invocação da preclusão – causa extintiva desse direito – era incompatível com a invocação do exercício abusivo deste, o qual pressupõe, logicamente, a existência do mesmo direito (a ser abusivamente exercido).

Porém, após a réplica da autora, foi proferido a fls. 156 despacho convidando o réu Banco BB a responder ao abrigo do princípio do contraditório, o que este fez através do articulado junto a fls. 158 e segs.; e nele o réu retomou os factos sobreditos, agora reconduzindo-os, já de forma expressa, ao exercício abusivo do direito invocado pela autora, enquanto “venire contra factum proprium” – cfr. os arts. 19º, 20º a 22º e 32º deste articulado de resposta.

A questão do abuso do direito, que é de conhecimento oficioso, não está sujeita ao princípio da preclusão consagrado, quanto aos meios de defesa do réu, no art. 573º, visto caber nas exceções previstas no seu nº 2. Por isso, ainda que se possa entender que o réu a não invocara ao contestar, a partir daqueloutro articulado, é matéria que ficou flagrantemente incluída no leque de questões submetidas pelas partes à apreciação do tribunal – constituídas pelos pedidos formulados, causas de pedir invocadas e exceções deduzidas – e cujo conhecimento era imposto pelo nº 2 do art. 608º.

Todavia, o saneador sentença não fez qualquer referência à questão do exercício abusivo do direito por parte da autora, assim incorrendo na nulidade por omissão de pronúncia prevista na primeira parte da al. d) do nº 1 do art. 615º.

Não podemos, por isso, acompanhar o acórdão recorrido quando desatendeu a arguição desta nulidade feita pelo apelante, uma vez que a sua afirmação segundo a qual “(…) manifestamente esta questão não foi suscitada quer expressa, quer implicitamente (…)” é desmentida, como vimos, pela realidade processual que os autos evidenciam, por isso se impondo a sua revogação.

Uma vez reconhecido pelas instâncias que a autora é titular do direito que pretende fazer valer na ação, impunha-se que apreciassem se havia, ou não, abuso desse direito.

Porém, isso não foi feito.

A omissão de pronúncia cometida na 1ª instância, apesar de geradora de nulidade nos termos sobreditos, poderia ter sido suprida pela Relação, nos termos do nº 2 do art. 665º.

Mas o mesmo não se passa em sede de julgamento pelo STJ, já que o art. 679º, ao mandar aplicar ao recurso de revista as disposições relativas ao julgamento da apelação, excetua aquele art. 665º; assim, uma vez que se impõe, pelas razões já expostas, a revogação do acórdão, deverão os autos baixar à 2ª instância para que aí se aprecie a questão do abuso do direito a que nos vimos referindo."

3. [Comentário] Com o devido respeito, não se percebe a baixa do processo à 2.ª instância ordenada pelo STJ.

Do referido no acórdão, resulta o seguinte:

-- A 1.ª instância cometeu (ou teria cometido) a nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre a questão do abuso do direito;

-- A 2.ª instância alega, "por sete vezes", que "o agora Recorrente não invocara, na 1ª instância, o instituto do abuso de direito" e, por isso, entende que não houve nenhuma omissão de pronúncia na 1.ª instância.

Tendo havido pronúncia, ainda que equivocada, da 2.ª instância sobre a questão da omissão de pronúncia cometida pela 1.ª instância relativa ao abuso do direito, não se percebe por que razão o processo deve baixar àquela 2.ª instância. Bem ou mal, a 2.ª instância já se pronunciou sobre a inexistência da omissão de pronúncia da 1.ª instância.

O acórdão afirma que a ressalva do art. 665.º CPC que consta do art. 679.º CPC impõe essa baixa à 2.ª instância. Quer dizer: dado que o disposto no art. 665.º CPC não é aplicável ao julgamento da revista, havendo uma omissão de pronúncia cometida pala Relação, o STJ, ao contrário do que sucede na apelação, não pode conhecer do objecto da revista.

Salvo o devido respeito, esta orientação comporta um duplo equívoco quanto à aplicação daquele primeiro preceito:

-- O art. 665.º CPC só poderia aplicar-se se a Relação tivesse deixado de conhecer de alguma questão; ora, não é o que sucede no caso concreto, dado que a Relação conheceu, embora equivocadamente, da questão da omissão de pronúncia da 1.ª instância sobre o invocado abuso do direito;

-- A principal razão pela qual o art. 679.º CPC ressalva a aplicação ao julgamento da revista do disposto no art. 665.º CPC é porque há uma disposição específica -- que é o art. 684.º CPC -- sobre o conhecimento pelo STJ das nulidades do acórdão da Relação; ora, se tivesse havido alguma omissão de pronúncia pela Relação, seria aplicável o disposto no art. 684.º CPC (e não o art. 665.º CPC); no entanto, não havendo nenhuma nulidade do acórdão da Relação, também não há nenhum motivo para aplicar o estabelecido no art. 684.º CPC.

Em suma: o STJ deveria ter julgado a revista segundo o regime de substituição que resulta do estabelecido no art. 682.º, n.º 1, CPC.

MTS