"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/01/2019

Jurisprudência 2018 (152)


Falta de citação;
facto não imputável ao réu


1. O sumário de RE 13/9/2018 (845/17.2T8ENT-A.E1) é o seguinte: 

I - Sendo a citação o acto receptício pelo qual se dá conhecimento ao réu de que contra si foi proposta uma determinada acção e se insta o mesmo a vir ao processo assumir a sua defesa, a falta desse acto de chamamento impede que o mesmo exerça o seu direito de defesa e, por isso, quando verificada, acarreta, de harmonia com o preceituado no artigo 187.º alínea a) do CPC, mercê de tão grave violação do princípio do contraditório, a anulação de tudo o que for processado posteriormente à petição, salvando-se apenas esta.

II - A falta de citação configura nulidade principal, que pode ser arguida em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (artigo 198.º, n.º 2, do CPC), sendo que no caso em apreço tendo a Recorrente arguido a nulidade decorrente da invocada falta de citação, logo que teve intervenção no processo, a mesma não pode considerar-se sanada, conforme decorre a contrario do disposto no artigo 189.º do CPC.

III - Para que a presunção de conhecimento do acto decorrente do envio da carta registada para a morada da ora executada seja ilidida, e se conclua pela falta de citação/notificação do destinatário nos termos do art.º 195.º n.º 1 al. e) do CPC não basta a prova pela embargante de que não teve conhecimento do mesmo, sendo ainda necessário que esta demonstre que a falta de conhecimento da notificação ocorreu por facto que não lhe seja imputável, conforme expressamente exige o segmento final da referida alínea e) do n.º 1 do artigo 188.º. 

IV - Tendo-se provado que a Embargante passou a residir em Lisboa sem ter alterado a morada constante de todos os seus documentos oficiais, não podemos concluir, em termos de causalidade objectiva, que a conduta da requerente em nada tenha contribuído, em termos adjectivos, para que o acto de notificação da injunção não tenha chegado oportunamente ao seu conhecimento.

V - Assim, não é possível ter-se por preenchida a previsão da alínea e) do n.º 1 do art.º 195.º relativa à falta de citação da embargante, por facto que não lhe seja imputável.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] nos termos do artigo 188.º, n.º 1, do CPC, ocorre falta de citação, no caso de notificação a) Quando o acto tenha sido completamente omitido; b) Quando tenha havido erro de identidade do citado; c) Quando se tenha empregado indevidamente a citação edital; d) Quando se mostre que foi efectuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste, tratando-se de pessoa colectiva ou sociedade; e) Quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável.

No caso dos autos, não existem dúvidas de que a embargante alegou e provou que efectivamente não teve conhecimento do procedimento de injunção, porquanto se demonstrou que a filha da executada/embargante recebeu a notificação do procedimento de injunção mas não a entregou à mesma.

Porém, conforme se sintetizou no recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.04.2018 [
Proferido no processo n.º 6418/12.9TBMAI-A.P1[...]], «para se concluir pela falta de citação nos termos do art.º 195.º n.º 1 al. e) do CPC, não basta a alegação pelo destinatário de que não teve conhecimento do acto de citação, é ainda necessário que seja alegado e provado não só que tal aconteceu, mas ainda que aconteceu devido a facto que não lhe é imputável».

De facto, para que a presunção de conhecimento do acto decorrente do envio da carta registada para a morada da ora executada seja ilidida, e se conclua pela falta de citação/notificação do destinatário nos termos do art.º 195.º n.º 1 al. e) do CPC não basta a prova pela embargante de que não teve conhecimento do mesmo, sendo ainda necessário que esta demonstre que a falta de conhecimento da notificação ocorreu por facto que não lhe seja imputável, conforme expressamente exige o segmento final da referida alínea e) do n.º 1 do artigo 188.º. 

Na situação em presença, a primeira instância considerou que sendo certo «que a notificação não foi entregue à executada/embargante pela sua filha (…) tal facto só à executada/embargante pode ser imputável.

Não pode a executada/embargante escudar-se no facto da sua filha não lhe ter entregue a notificação quando só sobre aquela primeira recaía o ónus de cuidar de averiguar da correspondência recebida numa morada que a mesma bem sabia ser a única do conhecimento do exequente e das autoridades públicas, sem que tenha procedido à sua alteração como se impunha a partir do momento em que deixou de ter residência permanente em Marinhais.

Entende-se, assim, que a executada/embargante só não recebeu a notificação por facto a si imputável, pelo que não ocorre falta de notificação».

Conforme decorre das conclusões das respectivas alegações, a Recorrente aceita que a carta para a sua notificação no procedimento de injunção foi remetida para a morada correcta - entenda-se, a que constava no contrato de arrendamento e consta em todas as bases de dados indicadas na matéria de facto -, mas considera que reside alternadamente, na morada em Lisboa e nesta morada de Marinhais em alguns fins-de semana, pelo que, de harmonia com o preceituado no n.º 2 do artigo 82.º do Código Civil[10], tem-se por domiciliada em qualquer um dos lugares indicados. Portanto, a falta de conhecimento da notificação que lhe foi enviada, apenas pode ser imputável à sua filha, que não lhe entregou tal correspondência.

Vejamos.

A falta de citação configura nulidade principal, que pode ser arguida em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (artigo 198.º, n.º 2, do CPC), sendo que no caso em apreço tendo a Recorrente arguido a nulidade decorrente da invocada falta de citação, logo que teve intervenção no processo, a mesma não pode considerar-se sanada, conforme decorre a contrario do disposto no artigo 189.º do CPC.

E este regime compreende-se porquanto sendo a citação o acto receptício pelo qual se dá conhecimento ao réu de que contra si foi proposta uma determinada acção e se insta o mesmo a vir ao processo assumir a sua defesa, a falta desse acto de chamamento impede que o mesmo exerça o seu direito de defesa e, por isso, quando verificada, acarreta, de harmonia com o preceituado no artigo 187.º alínea a) do CPC, mercê de tão grave violação do princípio do contraditório, a anulação de tudo o que for processado posteriormente à petição, salvando-se apenas esta.

Estando assente que no caso em apreço a embargante não recebeu efectivamente a notificação para ir ao procedimento de injunção deduzir a sua defesa, importa verificar se tal ocorreu, por facto que não lhe é imputável.

No recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.07.2018 [Proferido no processo n.º 1965/13.8TBCLD-A.C1.S1 [...]], a respeito da expressão legal “causa não imputável ao requerente” contida no artigo 323.º, n.º 2 do CC, relativamente à data em que se presume efectuada a citação para efeitos de interrupção da prescrição, na esteira de entendimento já anteriormente vertido nos arestos ali indicados, afirmou-se que tal expressão «deve ser interpretada em termos de causalidade objectiva, ou seja, quando a conduta do requerente em nada tenha contribuído, em termos adjectivos, para que haja um atraso no acto de citação».

Ora, um dos exemplos apontados como podendo integrar um facto que não seja imputável ao citando tem sido precisamente a “falta de entrega de correspondência por alguma razão”, conforme referido no citado aresto da Relação do Porto de 11.04.2018. Também FERREIRA DE ALMEIDA [In Direito Processual Civil, vol. I, Almedina 2010, pág. 533] afirma que esta causa invalidante do processado justifica-se «pela certeza de que, sem culpa sua, o réu não chegou a ter conhecimento da citação por esta não lhe ter sido transmitida pelo receptor».

Aplicando este entendimento na espécie, a executada alegou e demonstrou - conforme os factos provados em 12 e 13 evidenciam -, que pese embora a correspondência que era remetida para a Rua de … n.º …, em Marinhais, habitualmente fosse recolhida pela sua filha, a qual fazia depois a entrega à mãe quando esta ia a Marinhais, nesta situação a filha da executada/embargante recebeu a notificação do procedimento de injunção mas não a entregou à executada/embargante.

Assim, caso se tivessem igualmente demonstrado factos tendentes a concluir que a executada residia alternadamente nesta morada e na de Lisboa, até poderíamos concordar com a Recorrente. Porém, a Recorrente oportunamente não os alegou e, consequentemente, os mesmos não se encontram demonstrados. E, como é sabido, o recurso não serve para tratar questões novas que não foram oportunamente alegadas em primeira instância.

Deste modo, salvo o devido respeito pelo entendimento preconizado pela Recorrente, pese embora a falta de notificação do procedimento de injunção tenha sido arguida tempestivamente pela executada com o fundamento a que alude o artigo 188.º alínea e) do CPC, invocando e demonstrando não ter tido conhecimento da injunção porque a filha, que nas circunstâncias descritas, recolhia e lhe entregava a correspondência, não o fez quanto a esta, o certo é que da demais factualidade provada - e não impugnada pela Recorrente -, não decorre que exista uma situação de residência alternada mas sim uma mudança de residência para Lisboa.

De facto, provou-se que até 01 de Fevereiro de 2016 a executada residiu em Marinhais na Rua de … n.º …. Porém, atentos os vários quilómetros que tinha que percorrer diariamente de Marinhais para Lisboa e vice-versa, e os custos que essas deslocações acarretavam, optou por arrendar, a partir de 1 de Fevereiro de 2016, uma casa em Lisboa, perto do seu local de trabalho, sendo que a partir de 1 de Fevereiro de 2016, a executada/embargante passou a residir naquela morada em Lisboa e só ia a Marinhais em alguns fins-de-semana. Ou seja, da factualidade provada decorre que a Embargante mudou o seu centro de vida para Lisboa, tanto assim que nem sequer vai a Marinhais todos os fins de semana.

Consequentemente, tendo passado a residir em Lisboa sem ter alterado a morada constante de todos os seus documentos oficiais, não podemos concluir, em termos de causalidade objectiva, que a conduta da requerente em nada tenha contribuído, em termos adjectivos, para que o acto de notificação da injunção não tenha chegado oportunamente ao seu conhecimento.

Pelo exposto, face aos factos alegados no requerimento de embargos e perante a factualidade que resulta provada quanto aos procedimentos de notificação realizados, não é possível ter-se por preenchida a previsão da alínea e) do n.º 1 do art.º 195.º relativa à falta de citação da embargante, por facto que não lhe seja imputável."


[MTS]