"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/01/2019

Jurisprudência 2018 (146)


Direito de superfície;
inalienabilidade; impenhorabilidade


1. O sumário de STJ 12/7/2018 (9934/13.1T2SNT-A.L1.S1) é o seguinte:

I - O direito de superfície, definido no art. 1524.º do CC, pode assumir carácter perpétuo ou temporário, permitindo ao superficiário um aproveitamento integral das utilidades da obra ou plantação.

II - Tal direito convive, no entanto, necessariamente, com o direito de propriedade sobre o terreno, o direito do fundeiro, direito maior, como evidencia o facto de a lei lhe reconhecer, sem reciprocidade, direito de preferência na alienação ou na dação em cumprimento daquele (art. 1535.º do CC), caso em que se consolida a propriedade através da reunião na sua pessoa dos dois direitos, com a consequente extinção do direito de superfície (art. 1536.º, n.º 1, al. d), do CC).

II - A expressa consagração no art. 1534.º do CC da transmissibilidade, por acto entre vivos ou por morte, quer do direito de superfície, quer do direito de propriedade do solo, mostra que o primeiro é, por princípio, passível de ser penhorado e judicialmente vendido no âmbito da acção executiva movida contra o superficiário.

III - Porém, o direito de superfície administrativa sobre um bem do domínio privado de uma pessoa colectiva pública (no caso, o Município embargante) está sujeito às limitações decorrentes do regime especial a que se mostra submetido (Lei dos Solos, aprovada pelo DL n.º 794/76, de 05-10, em vigor à data da sua constituição – art. 12.º do CC) e ao consignado na escritura pública da sua constituição.

IV - Traduzindo-se a penhora na apreensão judicial de bens do executado com vista à sua ulterior venda (art. 824.º do CC), deve entender-se que as coisas ou direitos cuja venda esteja dependente da anuência de outrem (que não o executado ou o exequente) não podem ser objecto de penhora, dado que não tem sentido permitir a prática de um acto preparatório da transmissão do bem ou direito em causa, sem o consentimento de que depende a sua posterior alienação.

V - Tendo as partes consagrado, na escritura pública de constituição do direito de superfície, outorgada em 30-08-1982, a proibição de venda desse direito sem a autorização do Município (proprietário do solo), não pode a sua transmissão ser concretizada, sem esse consentimento, pela via da venda judicial.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Vistas as conclusões da alegação do recorrente, as quais delimitam o objecto do recurso (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), a questão nuclear a decidir passa por saber se o direito de superfície cedido pelo Município de … ao Hockey Clube CC, contra o qual o recorrente moveu acção executiva, é inalienável e, consequentemente, insusceptível de penhora.

Sobre esta questão as instâncias divergiram, considerando a 1ª instância que se trata de um direito passível de penhora e decidindo a Relação em sentido contrário com base no entendimento de que «estamos perante uma verdadeira situação de inalienabilidade do direito de superfície de que é titular o embargado Hockey Clube CC, constituído pela escritura pública realizada no dia 30 de agosto de 1982, tendo por objecto o prédio urbano sito em …, freguesia de …, concelho de Sintra, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 3…, com a área de 12.913 m2, e que lhe foi cedido pelo dono do solo desse prédio, o Município de ….
A alienação de tal direito de superfície, no âmbito do processo executivo de que os presentes embargos de terceiro são apenso, sem o consentimento do aqui embargante Município de …, significaria uma evidente violação, quer do contrato de constituição daquele direito, quer do disposto no nº 2 do art. 20º do Dec. Lei nº 794/76, de 05.11 (vigente à data da celebração do contrato, entretanto revogado, mas aplicável á concreta situação aqui em apreço, pelas razões acima referidas), representando, consequentemente, uma flagrante e injustificável violação do direito do dono do solo».

A razão encontra-se com o Tribunal da Relação.

O direito de superfície surge definido no artigo 1524º do Código Civil como «a faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações», dizendo-se fundeiro o dono do solo e superficiário o titular da construção implantada ou da plantação. [...]

A expressa consagração no artigo 1534º do Código Civil da transmissibilidade por acto entre vivos ou por morte quer do direito de superfície, quer do direito de propriedade do solo, mostra que o mesmo é, por princípio, passível de ser penhorado e judicialmente vendido no âmbito de acção executiva movida, designadamente, contra o superficiário.

Embora se esteja perante uma só coisa, tudo se passa, em sentido jurídico, como se a mesma tivesse sido idealmente cindida em partes dotadas de autonomia que lhes permite serem excepcionalmente objecto de diversos direitos reais de garantia, como a hipoteca e a penhora (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.11.2017, subscrito pela ora relatora, proferido na Revista nº. 231/06.8TBBRR.L3.S1, e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1987, pág.602).

Importa distinguir, contudo, se o direito de superfície é constituído por particulares – em superfície civil – ou pelo Estado ou pessoas colectivas de direito público em terrenos do seu domínio privado – em superfície administrativa–, uma vez que o regime legal aplicável não é o mesmo. Na verdade, no primeiro caso, aplica-se o estatuído no Código Civil, enquanto, no segundo caso, tem aplicação legislação especial e, só subsidiariamente, o Código Civil (artigo 1527º deste diploma).

A possibilidade de constituição da superfície administrativa, apareceu regulada na Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, cujo artigo 22º estabelecia: «Só o Estado, as autarquias locais e as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa podem constituir, em terrenos do seu domínio privado, o direito de superfície», dispondo no artigo 25º ser possível constar, entre o mais, do título de constituição do direito de superfície a dependência de autorização do proprietário do solo para a alienação daquele direito (nº 1 al. b)).

Posteriormente, veio a Lei dos Solos, aprovada pelo DL nº 794/76, de 5 de Outubro, consagrar no artigo 5º que:

«1. Os terrenos já pertencentes à Administração (…) não podem ser alienados, salvo a pessoas colectivas de direito público e empresas públicas, devendo apenas ser cedido o direito à utilização, mediante a constituição do direito de superfície, dos terrenos destinados a empreendimentos cuja realização não venha a ser efectuada pela Administração».

E, regulando o regime especial da superfície administrativa no capítulo IV, veio estabelecer no artigo 20º que:

«1. Na constituição do direito de superfície serão sempre fixados prazos para o início e conclusão das construções a erigir e serão adoptadas as providências que se mostrem adequadas para evitar especulação na alienação do direito.

2. Para os fins do disposto na última parte do número anterior poderá convencionar-se, designadamente, a proibição da alienação do direito durante certo prazo e a sujeição da mesma a autorização da Administração.

3. A Administração gozará sempre do direito de preferência, em primeiro grau, na alienação por acto
inter vivos (…)».

Revogada pela Lei nº 31/2014, de 30 de Maio, a referida Lei dos Solos (DL nº 794/76, de 5 de Outubro), manteve, neste particular, o regime legal assim estabelecido, apesar das subsequentes alterações nela introduzidas pelo DL nº 313/80, de 19 de Agosto, pelo DL nº 400/84, de 31 de Dezembro, e pelo DL nº 307/2009, de 23 de Outubro.

Esse regime legal especial tinha «subjacente a filosofia de que o Estado nunca deve alienar o solo de que seja civilmente titular mas apenas proporcionar o seu aproveitamento a particulares, quando não possa ou não queira ele próprio providenciar nesse sentido», como decorre do segmento final do nº 1 do transcrito artigo 20º e dá nota Menezes Cordeiro (loc. cit., pág. 718), citado no acórdão agora sob censura.

O embargante Município de … outorgou com o Hockey Clube CC escritura pública, realizada em 30 de Agosto de 1982, por intermédio da qual cedeu ao segundo o direito de superfície sobre o prédio identificado, da qual resulta que a cedência, (i) feita pelo prazo de 99 anos, prorrogáveis, (ii) foi gratuita, (iii) teve por objecto a construção de um parque de jogos, (iv) revertendo aquele direito de superfície para o Município de … (fundeiro) com todas as benfeitorias introduzidas no terreno sobre o qual foi constituído, sem o direito a qualquer indemnização para o superficiário Hockey Clube CC, no caso de lhe ser destino diferente, (v) o qual não poderia transmitir o aludido direito de superfície sem a prévia autorização do Município de …, (vi) tendo preferência na sua aquisição, em caso de alienação consentida pelo Município Fundeiro.

A constituição do direito de superfície nas referidas condições foi aceite pelo Hockey Clube CC, mantendo-se a situação inalterada aquando da penhora daquele direito de superfície na acção executiva que lhe foi movida pelo embargado BB, ali exequente, para pagamento coercivo da quantia exequenda (€ 211.832,29), penhora registada através da Ap. 2 de 2013/08/05.

Não nos oferece dúvidas que estamos em face da constituição de um direito de superfície administrativa sobre um bem do domínio privado de pessoa colectiva pública, como é o Município embargante, submetida ao regime especial da Lei dos Solos aprovada pelo DL nº 794/76, de 5 de Outubro, em vigor na data da sua constituição por contrato (artigo 12º do Código Civil).

Como tal, sujeito às limitações legais decorrentes do respectivo regime especial e ao consignado na escritura pública que o corporiza o contrato, na qual as partes consagraram, além do mais, a proibição da venda do direito de superfície sem a autorização do Município proprietário do solo.

Subjacentes à cláusula de inalienabilidade sem aquela autorização, estavam, como se viu, preocupações do legislador com a especulação na alienação do direito de superfície, que não são afastadas pelo facto de a transmissão se operar através de venda judicial, a qual se rege, compreensivelmente, pelas regras do mercado e tem por finalidade obter o melhor preço para solver o crédito do exequente.

Os artigos 736º e 737º do Código de Processo Civil enunciam os bens absolutamente ou relativamente impenhoráveis, entre os quais figuram as coisas ou direitos inalienáveis.

Traduzindo-se a penhora na apreensão judicial de bens do executado com vista à sua ulterior venda judicial (artigo 824º do Código Civil), deve entender-se que as coisas ou direitos cuja venda esteja dependente da anuência de outrem, que não o executado ou o exequente, não podem ser objecto de penhora.

Não tem sentido permitir a prática de um acto preparatório da transmissão do bem ou direito em causa, sem o consentimento de que depende a sua posterior alienação.

A circunstância de os bens ou direitos se encontrarem no comércio ou serem em abstracto alienáveis não é, por si só, bastante para que possam ser objecto de penhora. Necessário é que a transmissão, em concreto, dos bens ou direitos a penhorar, dependa apenas da vontade do credor.

A propósito de um caso paralelo – penhora de quota quando a escritura de constituição da sociedade faça depender a cessão do consentimento da sociedade –, escreveu Alberto do Reis (Processo de Execução, vol. 1º Reimpressão, Coimbra Editora, 1982, pág. 344), que:

«Se os bens ou direitos não são, em absoluto, inalienáveis, mas só podem ser alienados em determinadas circunstâncias ou precedendo certos requisitos, para que a penhora seja admissível faz-se mister que concorram essas circunstâncias ou esses requisitos».

Acrescenta o mesmo autor que «a execução sacrifica a vontade do executado, prescinde dela, porque em consequência da eficácia do título executivo a posição do executado é a de sujeição; mas o que não pode, sem ofensa da ordem jurídica, é sacrificar a vontade de pessoas para quem o título executivo não tem eficácia alguma».

Esta é a situação do direito de superfície penhorado na execução, posto que a penhora foi realizada sem o consentimento do Município de …, muito embora tivesse sido contratualmente clausulado que tal direito não podia ser alienado sem o consentimento daquele, proprietário do solo.

Se a transmissão daquele direito não pode realizar-se por iniciativa do superficiário sem o aludido consentimento, também não poderá concretizar-se, através da penhora, pela via da venda judicial.

Encontramo-nos, como afirma Lebre de Freitas (A Acção Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª ed., pág. 242), perante uma «limitação intrínseca inserta num esquema de cumprimento contratual» como é a que resulta da exigência de autorização do embargante para a transmissão do direito de superfície inserta na escritura de constituição deste direito.

Não nos merece, por conseguinte, o douto acórdão recorrido qualquer reparo, não podendo a penhora realizada subsistir, sob pena de ofender o direito do embargante, ora recorrido (artigo 342º nº 1 do Código de Processo Civil)."
 
[MTS]