Ac. STJ 4/2014, de 19/5
interpretação
1. O sumário de STJ 11/9/2018 (25261/11.6T2SNT-D.L1.S2) é o seguinte:
I - A aplicação do segmento uniformizador do AUJ n.º 4/2014, de 20-03, mostra-se limitada às situações em que o credor promitente-comprador não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência.
II - Este confinamento retira da alçada do AUJ os contratos-promessa que se encontrem incumpridos à data da declaração da insolvência, uma vez que não se pode configurar a situação de o administrador não os cumprir.
III - Tais casos mostram-se submetidos ao regime geral ínsito no art. 755.°, n.º 1, al. f), do CC, que não faz depender o direito de retenção atribuído ao beneficiário da promessa de transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel da circunstância de o mesmo não ser um consumidor.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O acórdão recorrido julgou não reconhecido o direito de retenção relativamente aos quatro imóveis apreendidos para a massa insolvente sustentado no AUJ n.º 4/2014, de 20-03 (publicado no DR 1ª série, de 19-05-2014) e por a Recorrente, enquanto credora, não se integrar no conceito de consumidor.
Insurge-se a Recorrente pugnando pela inaplicabilidade do decidido no AUJ n.º 4/2014 à situação dos autos por o incumprimento dos contratos promessa celebrados com a sociedade declarada insolvente ser anterior à declaração de insolvência, não decorrendo pois de acto do administrador da insolvência. Pretende, por isso, que lhe seja reconhecido o direito de retenção sobre os imóveis apreendidos com as necessárias consequências na graduação dos créditos reconhecidos.
Tal pretensão merece acolhimento.
Mostra-se definitivamente decidido no processo o reconhecimento do crédito da BB - Imóveis Unipessoal, Lda., aqui Recorrente, no montante de 280.000,00€ [...], acrescido dos juros de mora vencidos desde 08-01-2010 e vincendos até integral pagamento e juros compulsórios desde a data do trânsito da sentença na parte referente ao reconhecimento do crédito de capital.
Por forma a situar e caracterizar o crédito que se encontra reconhecido à Recorrente cabe referir que o mesmo tem origem em (dois) contratos promessa de compra e venda de (quatro) imóveis celebrados com a AA - Construções, Lda. (contrato de 21-05-2008, que teve por objecto os imóveis identificados como verbas 5 e 9 da massa insolvente; contrato de 05-05-2008, que teve por objecto os imóveis identificados como verbas 8 e 6 da massa insolvente), sendo que sobre cada um dos imóveis, à data da apreensão, incidia(m) hipoteca(s) voluntária(s) (relativamente às verbas 5 e 6, a favor da Caixa Económica CC; quanto às verbas 8 e 9, a favor do então Banco DD, SA) – cfr. n.ºs 4, 5 e 2, dos factos provados.
Resulta ainda incontroverso no processo que os referidos contratos promessa, em que ocorreu a entrega antecipada dos imóveis, ou seja, com tradição, foram definitivamente incumpridos por culpa da sociedade declarada insolvente (não compareceu à escritura marcada, deixou de estar disponível para estabelecer qualquer contacto, designadamente tendo deixado de receber correspondência e não deduziu qualquer oposição na acção de resolução dos contratos intentada pela promitente compradora, a aqui Recorrente [...]), tendo tal incumprimento ocorrido muito antes da declaração de insolvência, ou seja, anteriormente a 31-01-2012.
O acórdão recorrido, socorrendo-se da doutrina fixada no AUJ n.º 4/2014, concluiu pela inverificação do pressuposto necessário para o reconhecimento à Recorrente/credora do direito de retenção relativamente aos imóveis apreendidos: a qualidade de consumidora.
E se é certo que a intervenção da Recorrente nos negócios celebrados (para revender as referidas fracções no exercício da sua actividade comercial) não integra o conceito de consumidora, o reconhecimento do seu direito de retenção não se encontra dependente dessa qualificação por não lhe ser aplicável o segmento uniformizador do Acórdão n.º 4/2014, de 20-03.
Relativamente à questão da delimitação do âmbito de aplicação do segmento uniformizador AUJ n.º 2014, de 20-03, em que se sustenta o acórdão recorrido – “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído na alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do Código Civil” –, tem vindo a ser consistentemente decidido neste Supremo Tribunal que o mesmo se circunscreve às situações em que o credor promitente-comprador não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência [Cfr. neste sentido Acórdão do STJ de 29-07-2016, Processo n.º 6193/13.0TBBRG-H.G1.S1 [...] pois que, conforme salienta o acórdão desta 6ª Secção, de 11-05-2017, o AUJ 4/2014 fez instituir um regime especial em sede insolvencial, por forma a que apenas os promitentes-compradores consumidores cujo contrato tenha sido resolvido após a declaração de insolvência, pudessem gozar de privilégio em relação à hipoteca, em sede de graduação de créditos. [Processo n.º 1308/10.2T2AVR-R.P1.S1 [...]]
Este confinamento retira da alçada do AUJ os contratos promessa que se encontrem incumpridos à data da declaração da insolvência uma vez que, nesses casos, não se pode configurar a situação de o administrador não os cumprir.
A este respeito, na configuração do negócio jurídico em curso para efeitos do disposto nos artigos 102.º e seguintes do CIRE, explicita o supra citado acórdão de 20-07-2016 “Mas importa ir mais longe e questionar quais são estes contratos que o administrador da insolvência não cumpre.
A resposta é dada pelo artigo 102.º do CIRE. Ainda que este não contenha um princípio tão geral como a sua epígrafe sugere e a solução que consagra tenha que ser integrada e completada pelos artigos seguintes – mormente em matéria de contrato-promessa pelo artigo 106.º - o certo é que o regime ai estabelecido é fundamentalmente um regime para contratos em curso ou em fase de execução, em que não há ainda cumprimento total do contrato por qualquer uma das partes. É essa execução que é suspensa e é o cumprimento, que ainda seria exigível ao devedor insolvente que o administrador pode recusar – quer essa recusa seja uma resolução ou antes deva ser concebida como uma reconfiguração contratual.
E daí que a doutrina tenha sublinhado que o regime dos artigos 102.º e seguintes do CIRE não se aplica a contratos que já foram resolvidos anteriormente à data da declaração de insolvência, encontrando-se agora em uma fase de liquidação.
A este respeito observa FERNANDO DE GRAVATO MORAIS que «o incumprimento definitivo (imputável ao promitente-vendedor) da promessa de compra e venda (por exemplo, com a alienação do bem (…) com a recusa séria e categórica em cumprir ou com a resolução ilegítima daquele promitente) que importe a extinção do contrato-promessa antes da declaração de insolvência – no caso de entrega da coisa ao promitente-comprador que sinalizou a promessa – gera a aplicação das regras civilistas» acrescentando que «verificada a insolvência posteriormente á extinção do contrato não cabe aplicar o disposto no art. 106.º, dado que o regime integrado no capítulo IV, referente aos “efeitos sobre os negócios em curso” pressupõe que o cumprimento ainda seja possível».
Também L. MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS afirma que «se tiver havido resolução do contrato por qualquer uma das partes antes da declaração de insolvência, não estamos perante um negócio em curso no sentido do Capítulo IV do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas»”.
Reportando-nos à situação sob apreciação e na sequência do já acima sublinhado, o incumprimento definitivo dos contratos promessa em causa ocorreu em data muito anterior à declaração da insolvência [...]; como tal, não há que fazer observar, no caso, a doutrina fixada pelo AUJ n.º 4/2014, mostrando-se, por isso, irrelevante para o reconhecimento à Recorrente do direito de retenção a circunstância da mesma não poder ser considerada consumidora ao intervir como promitente compradora nos negócios que firmou com a sociedade declarada insolvente.
Não sendo de observar a jurisprudência fixada no AUJ n.º 4/2014, no caso sob apreciação, há que o submeter ao regime geral ínsito no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, que não faz depender o direito de retenção atribuído ao beneficiário da promessa de transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel da circunstância de o mesmo não ser um consumidor.
A tal respeito refere o citado acórdão de 29-07-2016 “(…) a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica a interpretação restritiva proposta por um sector da doutrina: o legislador pode ter tomado a parte pelo todo e ter-se limitado a referir uma das situações socialmente mais relevantes. No entanto qualquer situação de detenção pelo promitente-comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção. O legislador terá sido sensível à grande repercussão do contrato-promessa como um passo muito frequente no iter negocial que conduz à transmissão da propriedade – sendo que, de resto, o contrato-promessa pode estar associado a uma execução específica e em certos casos o promitente-comprador é mesmo um possuidor.
Este direito de retenção, já existente e sendo garantia de um crédito não subordinado, não é afectado pela declaração de insolvência, como decorre do artigo 97.º do CIRE”.
Consequentemente, mostrando-se verificados, no caso, os requisitos previstos no artigo 755.º, n.º1, alínea f), do Código Civil, há que reconhecer à Recorrente os direitos de retenção sobre os imóveis que constituem as verbas 5, 6, 8 e 9 da massa insolvente."
[MTS]